Reflexão

25 de castrismo: A vitória do capitalismo

Por Florestan Fernandes

Publicado na coluna Tendências e Debates, na Folha de São Paulo, dia 1 de janeiro de 1984

Florestan Fernandes. Ex-professor catedrático de sociologia da Universidade de São Paulo, ex-professor da Pontifícia Universidade Católica, ex-deputado federal pelo PT/SP, autor de vasta obra intelectual.

O capitalismo foi incapaz de introduzir na América Latina o ciclo de suas revoluções típicas. Para garantir o seu desenvolvimento, o capital teve de recorrer, com freqüência, a ditaduras cruéis. Oscilou sempre entre o conservantismo, a revolução política (pela cúpula) e reformas de superfície, de alcance social restrito, culminando na consagração da contra-revolução preventiva corno último recurso de autodefesa. Em confronto com esse quadro que se deve avaliar a revolução cubana. Ela retira a América Latina da constante das “revoluções interrompidas” e da retórica ideológica “liberal”, que proclama o reformismo e o nacionalismo democrático, enquanto o capital se vale da força bruta dos militares e da opressão corno um estilo de vida. A internacionalização das economias somente beneficia os interesses financeiros, racionais e estrangeiros. Os trabalhadores assistem atônitos ao espraiar de uma “abundância” que não as alcança e que multiplica sem cessar os índices de miséria, de imigrações dos miseráveis, de violência contra os desvalidos, de exclusão, espoliação e marginalização dos mais humildes.

A revolução cubana não só rompeu com esse paradigma, ela forjou uma realidade histórica oposta. Ela comprovou que a pobreza, a “apatia das massas” e o subdesenvolvimento não são obstáculos intransponíveis à mudança social revolucionária. Ficou patente que qualquer pais latino-americano tinha ao alcance das mãos uma saída revolucionária para os seus dilemas, insolúveis dentro do capitalismo. A Ilha possui pequeno porte geográfico e demográfico; fora reduzida a condição de produtor de um único artigo (o açúcar) e de único mercado importador e exportador (os Estados Unidos); sofrera intensa devastação, seja por seu poderoso vizinho, seja por classes dirigentes totalmente corruptas; conhecera, ao longo do tempo, o egoísmo frio de governos coloniais, de ditaduras mais ou menos impiedosas, de regimes democráticos de fachada e descobrira que nada poderia esperar de um Estado títere, um meio para outros fins das oligarquias internas, das plutocracias estrangeiras e do governo dos Estados Unidos. Os males do ciclo de trabalho da cana, a miséria crônica da maior porte dos menores, o desamparo dos velhos, o inferno em que se transformara a vida quotidiana das classes subalternas, a ruínas irreparável da maioria das famílias pobres não entravam em linha de conta na esfera política. Esta só cuidava do desenvolvimento caucionando pelos interesses da matriz e das classes privilegiadas locais. Tal situação não comportava alternativa e o grosso da população ou se submetia passivamente a uma ordem social perversa ou teria de recorrer a uma insurreição cruenta contra ela. A revolução social brotava, portanto, como um “produto natural’, o fruto maduro de uma ordem social que caminhava cegamente na direção de um desmoronamento explosivo.

A guerrilha, que conquistou o poder, não gerou por si mesma essa situação histórica revolucionária. Ela própria foi causada por tal situação, que iria exigir ainda, mais tarde, a aplicação de práticas guerrilheiras na condução do Estado revolucionário e em todas as esferas da vida. A guerrilha e o Exército rebelde que a substituiu, se constituíram no braço armado da revolução, primeiro para ater a ditadura de Batista, em seguida para derrotar o despotismo arrogante dos Estados Unidos, reduzir a escombros o antigo regime e lançar os alicerces de Cuba a revolucionaria. A revolução cubana encerrava uma época história e, o que é mais importante, abria a época histórica nova, impregnada de nacionalismo libertário, de antiimperialismo, de socialismo e de comunismo revolucionários. Uma confluência de ideais e de valores contraditórios, que se unificavam na pratica porque eram sustentadas por forcas sociais nativas e centrípetas e porque correspondiam a ascensão do Povo ao centro da cena histórica. A autonomia da Nação se configurava como expressão da vontade coletiva dos trabalhadores e a continuidade da revolução repousava em seus ombros, como a única classe revolucionária que aparecera como tal na história de Cuba. Os esquecidos e excluídos se convertiam, assim, na verdadeira garantia de que poderiam ocorrer zigue-zagues e até oscilações perturbadoras e retrocessos, mas eles não reduziriam a revolução cubana a uma “revolução interrompida”.

Isso não quer dizer que a revolução cubana tenha cumprido todas as suas tarefas no quadro histórico da pré ­transição. E óbvio que não. A pobreza e o subdesenvolvimento continuam lá, embora tenham deixado de ser uma fator de desigualdade crescente, de dominação, e iniguidades sociais e políticas, de exploração do homem pelo homem, de cruel hegemonia estrangeira. A diferenciação do sistema de produção enfrenta barreiras que nascem de condições naturais, com freqüência agravadas pela praga norte-americana. As bases materiais da instauração do socialismo são comprimidas naturalmente, exigem enormes e permanentes sacrifícios, impõem técnicas drásticas de acumulação e de centralização do planejamento, o que afeta negativamente e por vezes impede uma consolidação mais rápida da democracia proletária. Essas coisas não são ignoradas nem escamoteadas ideologicamente. Elas comparecem com objetividade nos discursos e escritos de Fidel Castro, nos relatórios do Partido Comunista Cubano e em outros documentos oficiais. De outro lado, elas são de conhecimento comum e fazem parte da reeducação pelos fatos duros da vida. Da criança ao velho, todos sabem o que custa o que consomem (como objetivação do trabalho humano produtivo), o que representa e qual e o destino do que deixam de consumir (como condição da igualdade e do desenvolvimento socialista) e por que o carro não pode ser posto adiante dos bois em todos os níveis (como ocorre com a instrução Pública, a assistência médica e hospitalar, o amparo à velhice, garantia de emprego e a defesa militar). Prevalece uma grande ansiedade por novas conquistas e pela superação das limitações e contradições imperantes – inclusive as que dizem respeito ao controle democrático do Estado revolucionário. Mas ninguém se dispõe a arriscar tudo o que se obteve em uma cartada afoita e infantil. Os “milagres” fazem parte da tradição capitalista, especialmente na periferia, porque as promessas nada valem.

O teste político da revolução cubana se delineia efetivamente na década de setenta. As metas mais ambiciosas de redimensionamento da produção e de aceleração concentrada do desenvolvimento econômico são concebidas em função da famosa crise da safra, uma crise que parecia econômica, mas era global e punha em questão a eficácia do governo e de todo o regime, o que Fidel Castro percebeu e aproveitou corajosamente. Parecia que essa década permitira dar um grande salto econômico, administrativo político, encerrando a fase preparatória a transição socialista propriamente dita. Contudo, perdas de safras, ocasionadas por fatores naturais, sabotagens de origem externa, oscilações nos mercados de preços, etc., interferiram nas previsões e no rendimento das programações. A década de oitenta herdou problemas que deveriam estar resolvidos ou, pelo menos, atenuados. Não obstante, os programas de experimentação e de implantação e de experimentação e de implantação do poder popular foram cumpridos a risca. Depois dos tateios iniciais da década de sessenta e de várias tentativas ulteriores de encetar a institucionalização do poder popular, finalmente emergia um salto qualitativo decisivo (com vistas a situação de Cuba). Subsistem muitas arestas e contradições, que não vem ao caso de bater aqui. Em sim mesmo o avanço é importantíssimo. Ele ajusta certos requisitos de organização do poder popular as bases materiais e aos ritmos históricos efetivos da revolução. Além disso, permite estabelecer um mínimo de controles democráticos institucionalizados sobre o planejamento, as tendências a burocratização e as atividades de um poderoso partido único. Não consigna nenhum passe de mágica com referência a autogestão operária ou outras manifestações da forma política de democracia socialista. Mas confere corpo e fluidez a influência organizada do poder pular. E, ao fazê-lo, recupera e refunde ideais tidos por guevarianos (embora sejam, na verdade, profundamente cubanos) de não permitir a preponderância do “desenvolvimento econômico” sobre a “revolução social” – Guevara se batia por uma interdependência, que faria socialismo e comunismo correrem paralelas em todas as transformações essenciais. A institucionalização do poder popular restabelece, portanto, o sentido histórico da revolução cubana. O socialismo não vem para ficar, mas ele precisa ser consolidado como condição para o advento do comunismo em uma etapa mais distante.

A revolução cubana, dessa perspectiva desvenda o futuro da América Latina. Uma nova civilização já começou a ser criada, em uma sociedade nova e por homens novos, libertos das servidões do colonialismo e do neocolonialismo. O que está em jogo não é mais o que se imaginou, na década de sessenta, ser “via cubana” para a revolução e o socialismo- a guerrilha. Após vinte cinco anos de vitória e aprofundamento da revolução, Cuba dá uma lição de humildade, de firmeza e de hombridade, inclusive, que a revolução possui vários caminhos na América Latina. Em um piano mais amplo, ela realiza uma síntese que torna o socialismo e o comunismo realidades nativas. Portanto, Cuba não exporta, como se disse com maldade, o “socialismo da miséria”. Ela é um dos países socialistas mais autênticos e o único que imprimiu vida estudante própria ao princípio da liberdade igualitária.

Florestan Fernandes. Ex-professor catedrático de sociologia da Universidade de São Paulo, ex-professor da Pontifícia Universidade Católica, ex-deputado federal pelo PT/SP, autor de vasta obra intelectual.

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