Crônicas

A arte de ser mané


por Renato Mafra

Ser manezinho da ilha é lembrar do Miramar, na época em que o mar penetrava maliciosamente as entranhas da ilha.

É ter passado pela ponte Hercílio Luz, de pé ou de carro, quando ainda não existia a ponte Colombo Salles.

É ter passarinho, principalmente o Curió, e levá-lo para passear, pra pegar sol.

Uns acreditam que ser mané é ir, ou pelo menos ter ido, ao estádio Orlando Scarpelli assistir o Fiqueira jogar, outros acham que é ver o Avaí perder na Ressacada, mas independente de Avaí e Figueirense todos os manezinhos da ilha lembram bem do campo da liga, né?

Ser mané é saber pescar, é fazer tarrafa, conhecer as condições do mar, saber se vai chover, se vai fazer sol ou se vai cair o vento sul.

É escalar uma tainha, comer camarão, peixe frito com pirão d’agua e tomar uma cachacinha.

Ser mané é ficar jogando conversa fora, e resolvendo os problemas do Brasil, com os amigos no senadinho, ou então num daqueles banquinhos embaixo da figueira na praça XV.

É jogar dominó, mas também baralho e xadrez no centro da cidade.

Ser mané é acompanhar a procissão do nosso Senhor do Espaço? e ir a missa com a patroa aos domingos.

É conhecer e participar da festa do Divino Espírito Santo na praça da dona Tilinha, em frente ao quartel do Corpo de Bombeiros ou então lá no Ribeirão da Ilha.

Ser mané é saber que na Festa da Laranja, a mais famosa e tradicional festa da Trindade, tem de tudo menos laranja.

Ser mané é ter estudado no Instituto Estadual de Educação, o popular IEE, ou no Colégio Catarinense, no Coração de Jesus o tradicional colégio das irmãs, na Escola Técnica, no Silveira de Souza, no Aderbal do Estreito, no Bardal, no Imaculada Conceição, no Menino Jesus, é ter se formado na UFSC, muitos entretanto se formaram foi na escola da vida ou na universidade do mar.

Ser mané é ter participado da turma da Mauro Ramos, ou da turma da Agronômico, ou de nenhuma delas mas ter ficado com medo de encontrar com uma delas pela noite e tomar umas porradas.

Ser mané é falar bem rapidinho, entendesse? de preferência no diminutivo, sabe comé? não tem?

Ser mané é ter nascido em umas das praias do interior da ilha ou ter casa para veranear em Canasvieiras, Ponta da Canas, Cachoeira, Daniela, Jurerê Antigo…

Ser mané é ter nascido na maternidade Carmela Dutra ou na Carlos Correa, mas muitos, os mais antigos principalmente, nasceram foi em casa mesmo.

Ser mané é conhecer o Miguel Livramento, o Roberto Alves, o Cacau Menezes, o Renei Roberto e a Maria Odete, o JB Telles, o Fernando Linhares, o Aldírio Simões, o Miltinho Cunha, o Flecha…

Ser mané é ter frequentado o Arataka, a Lee88, o Scuna, o Vagão, a boate do 12 na época em que era no último andar da sede central, o Avante, a Chandon e obviamente ter ido naquela que é a rainha da noite florianopolitana: a Dizzy.

É saber um pouco de tudo e de tudo um pouco, mas sem se aprofundar muito, né?

É saber que açorda é um tipo de caldo de ovo e que concertada é uma bebida em que se mistura cachaça com café. É saber que coxinha de velha não é uma parte do corpo de uma senhora idosa, mas sim um um tipo doce feito com farinha de mandioca. É chupar laranja depois do almoço.

É nunca ter votado no Jorge Bonhausen, mas ter votado algum dia no Esperidião Amim, ou então no Jailson Barreto, na Angela Amim, no Grando, na Ideli, no Chiquinho, no Andrino, no Pedro Ivo…

É saber onde fica a rua 7 de Setembro, a Tenente Silveira, a Conselheiro Mafra, a Osmar Cunha, é saber que Jornalista Rubens de Arruda Ramos é o nome oficial da avenida beiramar norte.

Ser mané não é ter visto o Pelé ou o Zico jogar, esses todo mundo viu, mas é ter assistido um jogo com o Peçanha no gol, o Cabral, o Genilson, o Toninho e o Albeneir de centroavante, o Katinha e o Sebinho caindo pela direita, o Abel pela esquerda, o Zenon, o Balduíno, o Dito Cola e o Moacir pelo meio do campo, o Pinga pela lateral direita e o Casagrande e o Escurinho pela lateral direita, o Maneca de zagueiro ao lado do Roberto.

Ser mané é gostar da farra do boi, mas também defender os animais, numa atitude ecologicamente correta. É ter cachorro vira-lata em casa.

Ser mané não é conhecer o sambódromo do Rio de Janeiro ou ter ido no Gala Gay, mas é sair vestido de mulher no bloco Sou + Eu, no bloco do Lic ou do Doze, é ter desfilado pelo menos uma vez na vida lá na passarela Neguinho Quirido ou então em volta da praça XV pela Escola de Samba da Coloninha, no Consulado de Samba, na Protegidos da Princesa, é ter assistido ao desfile dos carros alegóricos do Tenentes do Diabo.

Enfim, ser mané é ter lembranças, saudades e ser um cara feliz, pois sabe quer acertou pelo menos uma coisa na vida: o lugar onde nasceu.

 

 

Renato Mafra, 34, solteiro, pai da Renata e namorado da Adriana, nascido e criado em Florianópolis-SC, típico cidadão de classe média brasileira não se interessava por culinária, considerava esta atividade reservada às mulheres, seguindo a frase de seus antepassados de que “cozinha é coisa de mulher”. Seu único interesse na cozinha era realmente comer, tendo inclusive a visão de que a alimentação servia exclusivamente para suprir as necessidade biológicas do ser humano.

Porém esta história começou a mudar aos 26 anos quando do término do seu primeiro casamento. Renato passou então a morar sozinho, a partir daí a cozinha da sua casa começou a solicitar sua frequência e também a chamar sua atenção. Começou a interessar-se pelas técnicas culinárias mas básicas, como cozinhar um arroz, fritar um bife, enfim essas coisas triviais do dia-a-dia. Seu interesse na área foi aumentando e passou a assistir os programas de culinária, começou a comprar algumas revistas especializadas na área e também alguns livros. Ao cabo de pouquíssimo tempo a gastronomia tornou-se um dos seus principais hobbies.

Hoje, como cientista social e mestrando am Antropologia pela Universidade Federal de Santa Catarina, nosso autor alia essas duas áreas de interesse – antropologia e gastronomia- para criar seus textos, procurando lançar o “olhar” antropológico sobre a culinária, observando-a como fenômeno do cotidiano. Desta forma, lançando seu olhar sobre a alimentação, Renato procura nos proporcionar uma reflexão sobre nossos hábitos e costumes, conciliando conhecimento, bom humor e sabor, ou como diz Jorge de Sá em “A Crônica” sobre o objetivo da literatura: “ensinar, comover e deleitar”.

 

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