Educação Em questão

A Epistemologia da Universidade segundo Carlos Subirats Rüggeberg

Por Elena Godoy

publicado originalmente como <www.partes.com.br/emquestao/auniversidade.asp>

Elena Godoi é professora universitária.
elenagodoy2109@hotmail.com

O fim da ditadura, no início dos anos 80, fazia esperar a volta de uma normalidade na vida política, cultural e científica e, portanto, uma profunda renovação no mundo universitário brasileiro. Essa renovação não teve lugar. Embora houvessem acabado as nomeações a dedo e mudado os cargos acadêmicos através das eleições, o mundo universitário não experimentou a transformação democrática que inicialmente se deu na vida política brasileira. Não houve uma verdadeira transição democrática na Universidade. Isso possibilitou com que ficassem praticamente intactas algumas das estruturas autoritárias da Universidade da ditadura. Assim, por exemplo, à semelhança do que acontecia durante aquele período, a vida universitária continua regida por detentores de cargos administrativos cuja legitimidade está à margem de sua capacidade docente ou pesquisadora. Hoje, da mesma maneira que ontem, a administração universitária, por um lado, e a qualidade científica e docente, por outro, continuam sendo instâncias paralelas que, em alguns casos, estão representadas por grupos com interesses não apenas diferentes, mas radicalmente opostos. A falta de democracia no mundo universitário permitiu que clãs de funcionários, algumas vezes de forma independente, outras vezes subordinados, em primeiro lugar, aos interesses de partidos políticos e, em segundo lugar, aos interesses de grupos de pressão de características diversas (…), tenham se transformado em poderosíssimos grupos de pressão que impõem sua lei à margem de qualquer racionalidade acadêmica baseada em critérios de qualidade e de competitividade.

Uma das diferenças fundamentais entre os atuais detentores de cargos e seus predecessores durante a ditadura está basicamente no fato de que os primeiros, isto é, os novos mandantes aprenderam a usar a mídia. De fato, é comum ver grupos de reitores com aspecto circunspecto – todos eles dependentes de grupos de pressão alheios ao mundo acadêmico – lançando clamores sobre a importância da qualidade da docência ou sobre a necessidade de estabelecer sólidos contatos entre a Universidade e a empresa. Da mesma forma, encontramos notícias sobre as Universidades nos jornais: de informações absolutamente banais até as aparentemente cruciais para melhorar a qualidade dos estudos universitários (…). A pesar de sua diversidade, todas as informações que aparecem na mídia têm as mesmas características: os problemas universitários se colocam a partir de uma perspectiva irreal e nunca se aborda de forma clara e direta o problema básico que sustenta a degradação da Universidade brasileira que é a corrupção nos processos de contratação do professorado e da eleição de docentes para os cargos administrativos.

Embora, do ponto de vista técnico, o valor das intervenções na mídia dos novos caciques universitários seja absolutamente banal, não há como subestimar sua importância do ponto de vista de sua repercussão midiática. De certo modo, elas contribuem para tranquilizar e confundir a opinião pública quanto ao degradado ambiente acadêmico. O importante desse espetáculo midiático evidentemente não é o vazio dos conteúdos, mas a ficção que se cria de que “está se fazendo algo para melhorar a situação nas Universidades brasileiras”. Nesse sentido, se trata de um discurso realmente eficaz, pois a nova demagogia midiática pinta uma imagem dourada de modernidade. A conivência com o novo caciquismo acadêmico não é nenhum segredo, visto que no debates televisivos, nas informações em jornais, etc., se omite sistematicamente a presença de professores, estudantes, etc., que possa levantar a questão do novo autoritarismo da Universidade brasileira, que denuncie a falta de qualidade da docência ou as gravíssimas carências das bibliotecas e instalações e, muito especialmente que denuncie os procedimentos “caciquis” que regem os concursos e eleições de docentes para os cargos administrativos. Na realidade, existe uma complicada rede de relações que na prática se transforma em conivência de fato entre a mídia, determinados partidos políticos e os clãs que realmente controlam a Universidade.

Entretanto, embora o uso da mídia introduza uma mudança significativa – pelo menos para fora de seu ambiente – na atuação da burocracia militarizada das nossas Universidades, os procedimentos que servem para controlar o professorado continuam sendo os mesmo que existiam durante a ditadura: os novos ditadorzinhos continuam usando práticas repressivas para apagar literalmente qualquer vestígio de oposição, crítica ou denúncia da degradação do mundo acadêmico.

Os mecanismos fundamentais para consolidar o autoritarismo universitário e para manter em postos chave os grupos cientificamente incompetentes foram e continuam sendo os seguintes:

– o bloqueio sistemático de graduados, pesquisadores, profissionais, etc., que não tenham dado amostras prévias de lealdade aos clãs e máfias acadêmicas, que controlam os departamentos e outras estruturas universitárias. Esse mecanismo bloqueia inclusive a contratação de profissionais de prestígio internacional;

– um sistema burocratizado e mercenário de contratação de professorado que transformou os ‘concursos públicos’ em encenações surrealistas sem outra utilidade que a de legitimar virtuosamente decisões negras de clãs organizados à margem de qualquer consideração de tipo acadêmico, científico ou docente;

– a eliminação sistemática dos professores, pesquisadores, profissionais, etc., que não acatam a estrutura autoritária da Universidade. Isso se consegue basicamente negando a renovação de contratos aos professores ‘rebeldes’ – ou simplesmente críticos – em regime de contratação temporária e impedindo a progressão funcional dos professores ‘dissidentes’ com contrato indefinido.

Esse sistema está impedindo o desenvolvimento material da pesquisa e, sem dúvida, de uma nova ciência. (…)

Os novos caciques não têm nenhuma motivação para realmente melhorar a qualidade da docência, o desenvolvimento da pesquisa ou as relações com o mundo empresarial. Ao contrário. Esses virus sistêmicos adquiriram a imunidade através de uma política de ‘igualitarismo’universitário. (…) Com gestos semelhantes, muitas vezes, inclusive, contra o espírito progressista do próprio Ministério da Educação, tentam erguer todo tipo de obstáculos à mobilidade de estudantes e professores e, em especial, tentam impedir por todos os meios que o financiamento das Universidades se dê a partir de critérios competitivos em função da qualidade da docência e da pesquisa. É fácil explicar a atitude protecionista desses clãs: a institucionalização de critérios competitivos para a designação dos fundos do financiamento das Universidades brasileiras, a criação de uma verdadeira competitividade entre Universidades e a possibilidade da mobilidade de estudantes e professores os acuariam rapidamente e se cortaria pela raiz sua possibilidade de controlar os centros de poder universitários.

O fato de que os novos mandantes tenham conseguido que as Universidades não precisem competir entre si para obter um melhor financiamento impediu também criar uma administração universitária em função da qualidade de sua docência (…) Essa situação não só não diminuiu, mas aumentou na última década, ampliando em uma progressão inversa espantosa a brecha tecnológica entre as nossas Universidades e as dos países mais industrializados.

**************************

O que você leu até agora é uma tradução quase literal de um fragmento do artigo de Carlos Subirats Rüggeberg “Intrasiciones lingüísticas” publicado em Eduardo Subirats (ed.). 2002. Intransiciones. Crítica de la cultura española. Madrid: Editorial Biblioteca Nueva, pp.157-173.]. Foi preciso fazer apenas algumas mudanças:

España por Brasil
Universidades españolas por universidades (públicas) brasileiras
Vida política española por vida política brasileira
Franquismo por ditadura

A semelhança entre as situações do mundo acadêmico na Espanha e no Brasil é espantosa. Entretanto, pode se acrescentar ainda que no Brasil:

1 – a remuneração de docentes das instituições de ensino superior é baixíssima. Recentemente o Governo Federal anunciou o aumento de 70% nos salários dos professores. O anúncio bombástico sobre a generosidade e a preocupação com o ensino superior é para aqueles que não conhecem a situação real da composição desses salários acreditarem. Na realidade, são 10 ou 12%! Essa baixa remuneração agrava a situação se comparada com a espanhola. De fato, vejamos:

– as universidades brasileiras dificilmente contratariam “profissionais de prestígio” estrangeiros, oferecendo essas “fortunas” salariais;

– os professores brasileiros – doutores e mestres – ou correm atrás dos cargos administrativos remunerados (não é muito, mas vale), ou criam cursos de aperfeiçoamento e especialização aplaudidos pela mídia (“a universidade para a comunidade!”), ou, então, participam dos cursos de aperfeiçoamento e especialização muitas vezes duvidosos, viajando nos fins de semana para Feira de Santana ou para Caçador, sacrificando não só o seu lazer, como também as preciosas horas que poderiam ser dedicadas à pesquisa;

2 – as bolsas de pesquisa são escassas, enquanto a pressão das exigências de produtividade é enorme. Isso agravado muitas vezes pelo “caciquismo” imperante nas agências de fomento. O mesmo vale para os financiamentos das participações em congressos nacionais e internacionais, exigidas obrigatória e carrancudamente pelas tantas comissões de avaliação institucional (afinal, a universidade brasileira é pública e de qualidade!). E de novo: o mais importante para receber um quinhão dos dinheiros públicos é a lealdade ao clã;

3 – o “caciquismo” e os “clãs” (no Brasil, preferimos chamar esse fenômeno usando uma palavra menos aristocrática: “panelas”), que mandam dentro das universidades, estimulam a incompetência, desde que a lealdade “panelística” dos pretendentes aos cargos seja completa. Assim, não há problema de existirem pró-reitores sem título de doutor ou o mínimo decente de pesquisa. O mesmo vale para chefes de departamentos com a correção do que o título de doutor é exigido. Temos coordenadores de curso mestres ou graduados que, depois dos afastamentos e investimentos por parte da universidade, não tiveram a mínima competência para redigir suas dissertações ou teses…

4 – se na Espanha existe “um sistema burocratizado e mercenário de contratação de professorado que transformou os ‘concursos públicos’ em encenações surrealistas sem outra utilidade que a de legitimar virtuosamente decisões negras de clãs organizados à margem de qualquer consideração de tipo acadêmico, científico ou docente”, aqui, no Brasil, tais encenações às vezes ultrapassam qualquer capacidade de imaginação de um simples mortal, mesmo versado em obras surrealistas. Há casos, quando para pleitear – e ganhar – uma vaga de docente, disputada por várias áreas do mesmo departamento de uma universidade, o critério de desempate, critério este aclamado por unanimidade pela plenária composta, na sua maioria, por doutores e mestres, é a não-produtividade dos docentes… Ganha a área que menos publicou, orientou, participou em congressos, etc. Será preciso acrescentar que, passados meses ou anos após tal exemplar decisão, os currículos dos docentes que compõem a área permaneceram inalterados?

A incompetência é premiada e a “panela” satisfeita!

Enfim, a epistemologia da universidade é a mesma. Globalizada. Com apenas algumas variações culturais regionais…

Deixe um comentário