Política Política e Cidadania

Quando querem transformar esperança em maldição

Revolta da Chibata

Quando querem transformar esperança em maldição

Josélia Gomes Neves
publicado em 08/07/2006

www.partes.com.brpolitica/joselianeves/esperanca.asp

 

 

A esperança dança, em corda bamba de sombrinha…

 Elis Regina

 

 

Josélia Gomes Neves Possui graduação em Pedagogia pela Fundação Universidade Federal de Rondônia (1989) – UNIR, especialização em Psicopedagogia (UCAM) e Mestrado em Desenvolvimento Regional e Meio Ambiente pela UNIR (2004). Atualmente é professora assistente da Fundação Universidade Federal de Rondônia – UNIR. Leciona no Curso de Pedagogia. Estuda e pesquisa na área da Educação e Alfabetização Intercultural, Educação Escolar em contextos indígenas, Didática Etnoambiental, Relações Sociais de Gênero/Currículo. Desde janeiro de 2007 é aluna do Curso de Doutorado em Educação Escolar da UNESP – Campus de Araraquara.
shiva.ro@uol.com.br

 

Este texto foi escrito em setembro de 2005, reflete sentimentos e inferências deste período, pois como alguém já falou, escritos são datados, precisam ser analisados a partir de seus contextos. Refere-se à crise política, a meu ver, a mais difícil enfrentada pelo Governo Lula.

Hoje tomando o devido distanciamento, revisito a questão e percebo, com alívio, que superei a idéia, de só enxergar tristeza e decepção de outrora, presentes quando cantarolava, Chico:  “Pede perdão pela duração dessa temporada, mas não diga nada que me viu chorando e pros da pesada diz que eu vou levando...” (Samba de Orly, Chico Buarque, Toquinho e Vinícius de Moraes)

A pergunta do título deste texto pode mobilizar muitas respostas, mas a que me interessa refletir agora, diz respeito a meu ver, a uma dura conquista construída resultado das lutas populares históricas e que se encontra tão ameaçada em função dos acontecimentos decorrentes da crise política que vivenciamos em 2005. Elejo como minha principal imagem a feição do presidente Lula: o operário que virou Presidente da República. Alguém que ocupou, portanto, um espaço não autorizado na perspectiva da História linear, conservadora e determinada.

Pra mim, essa é a principal questão didaticamente ensinada por esta crise que assola o governo do Partido dos Trabalhadores – entre outras interpretações, vejo como um ato pedagógico que objetiva mostrar qual é o nosso lugar, onde deve ficar os da Senzala, geograficamente claro, distanciados das decisões e dos direitos básicos que todas as pessoas têm, longe da Casa Grande.

Nunca foi tranquilo para as forças que tradicionalmente dirigiram nosso país, aceitar a ocupação destes espaços pelos trabalhadores e trabalhadoras. Nesta visão, faz sentido, interpretar esta prática como um conluio deliberado das elites sim na medida em que agora, de certa forma com nossa permissão, abatimento e desmoralização, procuram resgatar e retomar os lugares que historicamente afirmam lhes pertencer. “Apagaram tudo pintaram tudo de cinza a palavra no muro ficou coberta de tinta” (Gentileza, Marisa Monte)

As notícias cuidadosamente filtradas pela mídia contribuem para a produção de um convencimento no imaginário popular de que a gente não deu certo e o futuro, de acordo com essa visão, já se pode esperar, vai ser de muito, muito pão e bastante circo. “É pau, é pedra é o fim do caminho?” (Águas de março, Tom Jobim) É como se a cada instante nos convencessem, por exemplo, de que o lugar do Lula é exclusivamente como metalúrgico do ABC; que eu – atualmente professora de uma universidade federal deveria ter continuado no interior do nordeste, assumindo a sina tradicionalmente estabelecida e desempenhada pelas mulheres da minha família, casar e ter filhos, proibida de sonhar com outras coisas. “O meu pai foi peão, minha mãe solidão meus irmãos perderam-se na vida a custa de aventuras, descasei, joguei, investi, desisti, se há sorte eu não sei, nunca vi…”(Romaria, Renato Teixeira)

É como se apontassem para os nossos intelectuais e referências e dissessem: “Olha, Paulo Freire, não se iluda, a História é feita sim de determinismos e não de possibilidades”. Para Gramsci, “esse negócio de intelectual orgânico não se sustenta, trabalhador tem mesmo é que trabalhar e não sonhar em ser dirigente”. Para eles deve haver uma correspondência imutável entre sujeito e verbo: Trabalhador é para trabalhar; dirigente é pra dirigir. Confirmando: “A roda da saia mulata não quer mais rodar não senhor, não posso fazer serenata, a roda do samba acabou. A gente toma a iniciativa, viola na rua a cantar, mas eis que chega a roda viva e carrega a viola pra ” (Roda viva, Chico Buarque).

Essa guinada conservadora compromete duramente o projeto utópico, fortalece a velha idéia de que estes lugares não podem ser sonhados, conquistados e por nós ocupados, significa, conseqüentemente, empurrar uma luta imensa para trás, para o fim da fila e ainda, algo que não começou com a gente, mas envolve muitos e muitas das quais somos herdeiros, e que alguns sequer estão mais entre nós. “Você não sente, não e eu não posso deixar de dizer meu amigo! Que uma nova mudança em breve vai acontecer, o que algum tempo era novo, jovem, hoje é antigo e precisamos todos rejuvenescer!” (Velha roupa colorida, Belchior) Muitos não viram as mudanças, mas sabiam que elas chegariam, nunca aceitaram esse futuro pré-dado, não-problematizado, como:

O movimento conhecido como a Revolta da Chibata, evidenciou-se em 22 de novembro de 1910, contra os castigos determinados aos marinheiros. A revolta já vinha sendo preparada há meses, e eles estavam bem organizados, dominando com rapidez outras embarcações. Apontando os canhões para a cidade do Rio de Janeiro, exigiam o fim dos castigos corporais e a melhoria na alimentação, e o governo de Hermes da Fonseca, foi obrigado a atender às reivindicações e a conceder anistia aos líderes do movimento.

Entre eles, Antonio Cândido, o líder da Revolta da Chibata, denunciou a violação que os corpos sofriam por meio de duros castigos impostos aos marinheiros no Rio de Janeiro, em 1910. Os trabalhadores eram forçados a ingressar na marinha e só podiam dar baixa depois de 15 anos. Submetidos a trabalhos pesados, alimentação precária e salários muito baixos, padeciam de castigos físicos extremamente violentos, dentre os quais, a terrível chibata – um dos maus tratos, comuns na marinha brasileira, que tinha o costume de chicotear os marinheiros considerados faltosos. O contato com marinheiros de outros lugares contribuiu para a compreensão de que a violência sofrida não podia mais ser tolerada. No dia 22 de novembro deste mesmo ano, um dos marinheiros, Marcelino Menezes, foi condenado a 250 chibatadas, esse fato causou uma grande revolta e indignação, então os trabalhadores dos encouraçados de São Paulo e Minas Gerais organizaram um motim. Nesta ocasião, prenderam alguns oficiais, uma estratégia para por fim das agressões corporais, a redução de jornada de trabalho e o aumento salarial. O presidente Mal. Hermes da Fonseca anistiou os marinheiros. Tal atrevimento, porém, não foi perdoado pela elite dominante, alguns marinheiros líderes do movimento, pagaram com a vida, outros foram deportados, torturados e muitos outros permaneceram aprisionados durante toda a sua existência. Apesar da eliminação da chibata, os líderes do movimento acabaram presos e muitos morreram torturados. A principal liderança, o marinheiro João Candido, conhecido como “Almirante Negro” acabou sendo absolvido em 1912 e a chibata foi eliminada da marinha brasileira. “Há muito tempo nas águas da Guanabara, um herói do mar reapareceu na figura de um bravo feiticeiro, o que a História não esqueceu, conhecido como um navegante negro, tinha dignidade de um mestre-sala […] Rubras cascatas, jorravam das costas dos santos entre cantos e chibatas…” (O Mestre-sala dos mares, João Bosco)

Outra lição de luta e resistência foi demonstrada pelos guerreiros da Cabanagem, os moradores pobres das cabanas à beira dos rios amazônidas, que realizaram em 1835 a mais bem sucedida insurreição popular que colocou o controle da província nas mãos da população escrava, indígena e mestiça. Com esse movimento denunciavam suas péssimas condições de vida e as desigualdades sociais da época. As forças de sustentação do governo foram implacáveis com este movimento. “A geração da gente, não teve muita chance, de se afirmar de arrasar de ser feliz..” (Não vou sair, Celso Viáfora).

            Já a luta social da Balaiada, protagonizada pelo artesão Balaio ou Manuel dos Anjos Ferreira, líder de revolta de escravos e seus companheiros denunciava os conflitos raciais no Maranhão em 1838. Foram massacrados pela classe dominante da época representada pelo conhecido matador e enforcador de gente, o comandante Luis Alves de Lima e Silva, o Duque de Caxias, apontado nos livros didáticos tradicionais como vulto da história, mas que para nós, está mais para visagem. “Revela a leveza de um povo sofrido de rara beleza que vive cantando
profunda grandeza… A sua riqueza vem lá do passado de lá do congado
eu tenho certeza”. (Filhos de Ghandi, Clara Nunes).

E o que podemos dizer do significado dos quilombos, um mecanismo que materializava a liberdade, uma alternativa protagonizada pelo movimento negro de resistência a escravidão, vivenciada por aqueles e aquelas que nunca se conformaram com a idéia naturalizada pela moral escravocrata da época de que uma pessoa poderia ser proprietária de outra. A meu ver, o quilombo simbolizava uma outra carta de alforria, uma resposta autônoma, como se por si só dissesse: não é você que vai permitir a minha liberdade e sim eu mesmo, eu mesma, que se traduzia nas fugas em massa. “Ninguém ouviu um soluçar de dor, no canto do Brasil.   Um lamento triste sempre ecoou desde que o índio guerreiro foi pro cativeiro e de lá cantou.  Negro entoou um canto de revolta pelos ares, no Quilombo dos Palmares, onde se refugiou.  Fora a luta dos inconfidentes, pela quebra das correntes, nada adiantou. E de guerra em paz, de paz em guerra, todo o povo dessa terra, quando pode cantar, canta de dor.” (Canto das três raças, Mauro Duarte e Paulo César Pinheiro).

E poderíamos mencionar muitas outras lutas, como a das mulheres, dos indígenas, enfim, das pessoas anônimas que não viram as mudanças, mas trabalharam nela, apostaram que estava chegando e, em muitas situações comprometeram suas próprias vidas. “Quando colherem os frutos, digam o gosto pra mim… “ (Aos nossos filhos:Ivan Lins).

            Sinto-me profundamente envergonhada em função de alguns elementos evidenciados por esta crise, como a corrupção, por exemplo. Sinto-me devedora de todos e todas as pessoas que ao longo do processo histórico participaram e contribuíram com uma luta que hoje, com nossos erros e fraquezas, negamos, decepcionamos e, sobretudo não honramos, não continuamos. Pra mim, “[…] essa lembrança é o quadro que dói mais… “ (Como nossos pais, Belchior)

Olho para o Partido dos Trabalhadores e vejo um grande buraco, vai ser preciso rever muitas coisas: “Eu sei de tudo da ferida viva do meu coração…” (Como nossos pais, Belchior). Ainda estou muito triste. “Seu olhar não conta mais histórias, não brota o fruto e nem a flor e nem o céu é belo e prateado e o que eu era eu não sou mais…” (L’Avventura, Legião Urbana). Entretanto, nunca tive a ilusão de que o PT no governo fosse o paraíso na terra, mas pensava que nossas concepções iriam nos orientar na busca de soluções e caminhos transparentes e solidários. Sei que é ingenuidade supor que só as concepções poderiam responder por decisões mais coerentes, até porque a realidade opera com processos contraditórios, as coisas não estão dadas, há necessidade de construí-las, o que requer esforço político e muito trabalho, mas é difícil lidar com estas constatações.

 

Concluo este breve ensaio com a esperança presente nos versos do poeta político: “Há pessoas que lutam um dia e são boas, há outras que lutam um ano e são muito boas, mas há, aquelas que lutam a vida inteira. Estas pessoas são as imprescindíveis”. (Bertold Brecht). É isso aí, para o alto e para frente, sempre, porque o amanhã está vindo aí, para todos e todas nós que fazemos este país. Apesar de tudo, Lula faz sentido. Agora, é Lula, de novo, de forma nova, novamente: “Amanhã será um lindo dia, da mais louca alegria, que se possa imaginar […]. Amanhã mesmo que uns não queiram será de outros que esperam, ver o dia raiar, amanhã […], será pleno, será pleno…” (Guilherme Arantes). Seja bem vindo, amanhã, pode brotar.

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