Daniel Scisinio e as lembranças que voltam sempre
Por Gustavo Dumas
publicado em 11/11/2006
www.partes.com.br/cultura/musica/danielscisinio.asp
Gustavo Dumas
Do tanto que se poderia polemizar acerca da mudança de perfil na produção de música popular brasileira nas duas últimas décadas, longe deveria estar a demarcação de uma suposta crise de criatividade – porém é justo o que consagrados emepebistas mais enxergam em muitas leituras superficiais de cenário. A música brasileira vai bem, obrigado. Os conceitos de popular e de produção é que merecem revisão, mas não, em si, a qualidade da composição que tem sido feita. Esta é indubitável; porém, deve ser procurada, visitada entre ruas reais e virtuais, pesquisada, enfim. É ou não um problema da produção, que não faz aparecer tamanha produtividade? É ou não um problema conceitual, se encontra-se alvejado logo o “P” da MPB, que se tornou “impopular” ou outra coisa ou mesmo se fragmentou em subgêneros filiais nem sempre tão fáceis de encontrar dando sopa por aí? Hipóteses, a se pensar.
Em meio a tudo, o digno “ressurgimento” do samba, a sua inserção junto a novos públicos antes alheios ao samba como parte integrante fundadora da MPB lato sensu. O cantor e compositor niteroiense Daniel Scisinio insere-se num contexto já de pós-revalorização. Conquistado o prestígio, o samba carece ir além dos olhos do mercado, que não teve opção senão abdicar do pagodismo meloso e imbricar demagogicamente, constrangido, pela via do autêntico. Componente do grupo “Unha de Gato”, Scisinio pertence à vanguarda de uma geração que já se acostumou com a publicidade alcançada pelo nosso ritmo e daí segue, com um certo otimismo, rumo a um futuro, a uma renovação. Não mais se contentando com o propalado “resgate”, entende que deste faça parte o engenho, o esforço para a inovação, se bem que dentro dos alicerces constituídos, claro, e embora salvaguarde, em uma árdua rotina de bares e trabalhos nas noites, os (bons) princípios que fizeram o samba recuperar o espaço antes perdido para a onda de pseudomodernidade importada ou ainda imposta pelo mercado, que acusara de decadente um gênero que agoniza mas não morre. É isso o disco “Nova Poesia”, de Scisinio: reverência ao passado, flerte com um novo.
A bem da verdade, este namoro, em que pese seja declarado pelo título do CD – lançado pelo selo Niterói Discos, braço da iniciativa cultural da Prefeitura da ex-capital fluminense –, é tímido, reservado, respeitoso demais para com o “velho”, aqui entendido em todo o seu aspecto positivo. O novo é velho, e assim o velho se renova. Com esta solução, Scisinio constrói sua estreia: apostando em inéditas que preconizam uma fórmula que se encontra em ótima forma, como anuncia a faixa inicial, “O bom remador”, do mestre Wilson Moreira. Outras faixas se destacam, principalmente as que se sustentam no duo simplicidade/alegria bem tupiniquim, como “Bons tempos vividos” (do Trio Calafrio formado por Barbeirinho, Marcos Diniz e Luiz Grande, em participação mais que especial deste último e também da dupla Silvério Pontes e Zé da Velha), “Cadê Manel” (Scisinio com Bispo Helder), “Dona Neném” (parceria com Ilton do Candongueiro), “Festão” e “Terra da roça” (ambas de Scisinio). Algumas letras mereciam um tratamento mais à altura do título “Nova Poesia”, e aí o que se vê é uma certa repetição de imagens de gosto algo duvidoso. Nada, no entanto, que comprometa o espírito da proposta.
Ao operar em meio à revisão histórica por que passa nossa música, Daniel Scisinio vem se apresentar como artista com afinada voz própria, afirmando a necessidade de que se aceite procurar, para achar, característica que a música brasileira jamais deixou de possuir: criatividade. Cabe agora aos músicos, principalmente nas noites, nas rodas mais movimentadas, se incumbirem desta necessidade, e mostrarem as suas e as composições inéditas da montoeira de arteiros que nosso solo não cansa de ver nascer, entre lembranças que voltam sempre e provocam em muitos a vontade de tomar parte em memória musical tão rica.