Socioambiental

Humanização do Direito Ambiental: em favor do bicho-homem

Humanização do Direito Ambiental: em favor do bicho-homem

Thiago Cássio d´Ávila Araújo

publicado em 23/01/2008

O Direito Ambiental é um ramo jurídico historicamente recente, gerado nas últimas décadas, notadamente a partir da Conferência da ONU realizada em Estocolmo em 1972, onde se proclamou a famosa “Declaração sobre o Ambiente Humano”, que começaria a traçar os princípios norteadores do novel ramo jurídico.
Por outro lado, nos meios de comunicação, nas discussões sociais, nos fóruns de discussões jurídicas, no meio político e nos ambientes empresariais, o assunto do momento é a crise ambiental. Fala-se muito em aquecimento global, derretimento de geleiras, desertificação, poluição, inundações, aumento do nível do mar, extinção de espécies da fauna e da flora, dentre outras catástrofes. Enfim, o meio ambiente desfila nas passarelas, é o assunto da moda.


Inobstante isso, tenho notado uma certa distância dos operadores do Direito em relação ao Direito Ambiental. Obviamente que muitos já o estudam, não sendo um ramo obscuro. Porém, refiro-me ao fato de que o Direito Ambiental ainda não penetrou na vida cotidiana dos operadores do Direito, estando distante de ter a mesma atenção dispensada a outros ramos jurídicos mais tradicionais, como Direito Civil ou Direito Penal, por exemplo.
Observe-se, ademais, que muitos cursos jurídicos universitários não adotaram o Direito Ambiental como disciplina obrigatória na grade curricular, uma ausência absolutamente injustificável. De outra banda, há faculdades de Direito que até elegem o Direito Ambiental como disciplina obrigatória, porém juntamente com Direito do Consumidor (em um só semestre!), de maneira que o aluno terá um só professor para as duas matérias…Como dificilmente alguém poderia estar preparado para lecionar disciplinas tão distintas (salvo exceções), posso imaginar que na maioria dos casos o Direito Ambiental é ensinado nas faculdades por professores improvisados, o que efetivamente não se coaduna com os melhores propósitos acadêmicos.


Fato é que, enquanto os cursos universitários, de Engenharia (impacto ambiental), Ciências Sociais (aspectos políticos e sociológicos da crise ambiental), Administração (responsabilidade ambiental) e Turismo (sustentabilidade e ecoturismo), para citar exemplos, estão amplamente empenhados em proporcionar ensino atualizado em questões ambientais, os profissionais egressos das faculdades de Direito (na maioria dos casos) não têm a mínima noção aceitável de Direito Ambiental. Ou seja: são bacharéis em Direito, porém sem condições de diálogo com governo, mercado e sociedade, nos assuntos ambientais.


Numa palestra que proferi recentemente em uma faculdade que não tinha Direito Ambiental em sua grade curricular obrigatória, pedi, perante uma plateia repleta de estudantes de Direito, que levantasse o braço quem já havia ao menos lido o art. 225 da Constituição Federal. Minha esperança era de que, no mínimo, o professor de Direito Constitucional houvesse ensinado algo sobre o “Estado Ambiental de Direito”. Vi poucos braços. A que se deve isso? Por que é perceptível que operadores do Direito e bacharelandos mantenham tal distância do Direito Ambiental e das normas ambientais constitucionais?
Os fatores de distanciamento dos operadores e estudantes do Direito em relação às questões e normas ambientais são muitos, tanto complexos quanto interligados. Porém, existe um fator principal. Na minha visão, o fator principal é a dissociação que o ser humano faz de si mesmo, em relação à Natureza. A raiz desse distanciamento é profunda, pois passa pela necessidade do ser humano de esquecer-se como ser civilizado, para lembrar-se como animal. Em outras palavras: ninguém se enxerga como um animal, e portanto, não pode dar atenção às questões ambientais.


Esse problema na área jurídica, particularmente, me parece mais forte, porque o Direito é exatamente o elemento regulador da vida em sociedade, e na faculdade de Direito aprende-se desde o início que a sociedade é o contraponto da Natureza, do “estado natural”. Some-se a isso o fato de que muitos confundem os significados de termos como “ambiente” e “Natureza”, como se fossem sinônimos, e temos um cenário perfeito para que o senso comum dos operadores e estudantes do Direito lhes conduza ao afastamento do estudo do Direito Ambiental.
Recentemente, recebi honroso convite para proferir palestra no Tribunal Superior do Trabalho sobre os “Princípios do Direito Ambiental”, em programa de conscientização para servidores daquela Corte (“TST Ambiental”).
Naquela oportunidade, demonstrei à respeitável plateia que nos enxergamos como seres fora da Natureza, utilizando-me de exemplo de guerra: as bombas atômicas da II Guerra Mundial…
Veja-se que quando Saddam Hussein, então Presidente do Iraque, na Guerra do Golfo, deu ordens (ao que consta) de destruição e incêndio de mais de 300 poços de petróleo do Kuwait, todos apontaram a ocorrência como uma descomunal tragédia ecológica no Golfo Pérsico. Os canais de televisão e a mídia impressa mostravam fotos de pássaros cobertos de petróleo, e todos nós pensávamos: “um desastre ambiental!”. No entanto, ainda nos dias atuais, poucos enxergam como desastre ambiental a explosão de bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki. Por quê?
A todo instante os seres humanos se distanciam da sua natureza animal, através dos aparelhos de construção social. Animais comem com garras; nós usamos talheres. Animais em desespero gemem e uivam; nós procuramos uma igreja e rezamos. Animais fazem sexo à frente de todos; nós tratamos como crime o sexo em público.


Obviamente, é melhor que assim seja, que haja uma civilização. Não estou propondo que retornemos ao estado selvagem. A questão que proponho é mais direta: apesar de todos os benefícios da civilização, jamais podemos nos esquecer de que somos animais, portanto, seres biológicos e, por conseguinte, sujeitos a doenças e morte, em razão da crise ambiental. Nisso consiste a humanização do Direito Ambiental! Dessa maneira é que nos lembraremos de que a crise ambiental afeta a nossa saúde, a nossa qualidade de vida, e pode inclusive determinar nossa morte.


O motivo pelo qual insisto nessa temática é que, conforme entendo, os operadores do Direito e estudantes universitários das faculdades de Direito só se aproximarão do Direito Ambiental quando compreenderem que a principal preocupação deste novo ramo jurídico não se dirige às plantas ou aos demais animais. É preciso que todos saibam que o Direito Ambiental existe para proteção do próprio ser humano! Um ser que, ao destruir o ambiente em que vive, a si mesmo põe em risco. Aproveitando versos da belíssima música “O Bicho Homem”, de Fagner/Francisco Carvalho, nós juristas devemos cantar: “Os rastros do homem no vento ou na água são rastros de fera/Mas que bicho é esse que se dilacera?”


Ouvi certa vez, de uma advogada, a seguinte pérola: “Eu nunca estudei Direito Ambiental porque na época do colégio eu não gostava de Biologia”. Ora, por esse fato e outros similares claramente se identifica que o Direito Ambiental deve ser reapresentado à comunidade jurídica. Os operadores e estudantes do Direito não podem continuar a confundir Direito Ambiental com estudo da Natureza, como se o Direito Ambiental fosse uma espécie de “biologia jurídica”.
Humanizar o ensino do Direito Ambiental é apresentar a proposta de que as normas jurídicas ambientais se dirigem à manutenção da vida humana, e mais que isso, buscam proporcionar parâmetros ambientais aceitáveis para a sadia qualidade de vida humana no planeta Terra.


O primeiro princípio da Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (ECO-92) é muito claro em pôr o ser humano no foco das discussões ambientais, quando proclama: “Os seres humanos estão no centro das preocupações com o desenvolvimento sustentável. Têm direito a uma vida saudável e produtiva, em harmonia com a natureza”.
Assim, as normas jurídicas ambientais disciplinam o equilíbrio ecológico (meio ambiente natural), promovem as cidades sustentáveis (meio ambiente artificial), respeitam os valores culturais (meio ambiente cultural) e regulam a situação das pessoas no desempenho de atividades profissionais (meio ambiente do trabalho), para que seja possível a continuidade da vida humana na Terra, e com qualidade.


É curioso que, ao olharmos uma carroça puxada por um cavalo, sintamos pena do cavalo, mas raramente do carroceiro. Na verdade, são dois animais sofrendo, mas só enxergamos um. Por isso, insisto: é preciso humanizar a visão que se tem do Direito Ambiental, como um ramo jurídico que cuida do ambiente humano.
Com efeito, o Direito Ambiental preocupa-se até mesmo com o fim da pobreza, ou ao menos com sua diminuição para níveis aceitáveis, porque esta, a pobreza, interfere diretamente no ambiente humano. Veja-se, por exemplo, o que reza a Declaração de Joanesburgo sobre Desenvolvimento Sustentável (2002):

“(…) 18. Acolhemos o foco da Cúpula de Joanesburgo na indivisibilidade da dignidade humana e estamos
resolvidos, por meio de decisões sobre metas, prazos e parcerias, a ampliar rapidamente o acesso às necessidades básicas como a água potável, o saneamento, habitação adequada, energia, assistência médica, segurança
alimentar e a proteção da biodiversidade. Ao mesmo tempo, trabalharemos juntos para nos ajudar mutuamente a ter acesso a recursos financeiros e aos benefícios da abertura de mercados, assegurar a capacitação e usar tecnologia moderna em prol do desenvolvimento, e assegurar que haja
transferência de tecnologia, desenvolvimento de recursos humanos, educação e treinamento para banir para sempre o subdesenvolvimento.”

Numa visão mais extrema, o Direito Ambiental quer evitar a extinção de uma espécie animal que é muito valiosa para todos nós: a espécie humana.
Humanizar o Direito Ambiental significa mostrar aos estudantes e operadores do Direito que essa disciplina hoje é essencial para manutenção da própria vida humana na Terra, de maneira que não adianta que se ocupem apenas dos ramos mais tradicionais do Direito. Por isso, os operadores e estudantes do Direito, mesmo aqueles que não gostavam de Biologia nos tempos de escola… Enfim, todos devem se conscientizar da importância do estudo e aplicação do Direito Ambiental em suas vidas profissionais.


Os estudantes de Direito devem exigir que a disciplina Direito Ambiental seja ministrada como disciplina obrigatória da grade curricular. Devem exigir isso do Reitor da Universidade e do Coordenador do Curso de Direito, incessantemente, até que os canais institucionais funcionem. Além disso, os estudantes devem exigir das Faculdades de Direito que promovam seminários anuais sobre Direito Ambiental, Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável.


Os operadores do Direito devem exigir das organizações a que estão vinculados – como Escola Superior da Advocacia da Seccional da OAB em que inscritos, Escolas da Magistratura, Escolas do Ministério Público, e assim por diante -, que organizem cursos, eventos, seminários e palestras de Direito Ambiental.
Despeço-me com as mesmas palavras que escrevi na apresentação de meu livro de Direito Ambiental, publicado pela Editora Fortium, de Brasília: “É necessário implantarmos uma justiça ambiental, que passa, necessariamente, pelo conhecimento do Direito Ambiental. Mas faz-se imprescindível lembrar: essa justiça ambiental não pode falhar, como também não pode tardar. Da procedência de mérito de nossas ações depende a sobrevivência humana na
Terra”.


Que se humanize, então, o Direito Ambiental, para o bem do bicho-homem. Que façamos advogados, juízes, promotores, procuradores, defensores públicos e estudantes de Direito perceberem que as normas ambientais regulam a própria vida humana, e sua relação com o ambiente. Acredito que assim será mais fácil utilizarmos o Direito em favor da vida e da sustentabilidade.

 

Thiago Cássio d´Ávila Araújo é Procurador Federal da Advocacia-Geral da União. Mestrando em Direito e Políticas Públicas no Centro Universitário de Brasília (UniCEUB). Ministra cursos e palestras em temas de Direito Ambiental e Políticas Públicas Ambientais.

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