Entrevistas

Meu leitor é um sujeito histórico. Entrevista com Zeh Gustavo

Foto: Jaqueline Novaes – P@rtes – 2008

Por Jaqueline Novaes

publicado em 04/05/2008

Foto:Jaqueline Novaes/P@rtes/2008
Zeh Gustavo constitui o heterônimo poético-musical do escritor Gustavo Dumas, autor de Mito da origem do futebol (Cone Sul, 1997), O povo e o populacro (Cone Sul, 1998) e Solturas, balões e bolinhas de papel (Damadá, 2001). O primeiro livro com a marca autoral de Zeh Gustavo, Idade do Zero (Escrituras Editora, 2005), teve prefácio de Mário Chamie e boa receptividade de crítica e público. Como compositor, Zeh Gustavo tem apresentado músicas em festivais pelo Brasil, além de ser figura presente nas rodas de samba do circuito boêmio fluminense.

1 – Em uma frase: qual é a perspectiva do quase?
É a perspectiva de um antes perdido, de um ente em redesenho e de um dentro partido que se volta para fora.

2 – Fale um pouco da sua poesia, do seu propósito poético e de como se dá seu processo criativo.
Entendo que minha poesia responde, sobremaneira, a um ímpeto meu, que é promover uma crítica da linguagem com o olhar direcionado para aspectos de poder imanentes e constantemente mal notados no uso que os grupos de dominação fazem da linguagem. A poesia talvez suporte como nenhum outro gênero esta potencialidade, transgressiva em essência, de desvirtuamento de lugares, de deslocamento de aptidões sígnicas. O tempo da poesia é um tempo de corte, com o jogo de apoio-e-impulso não-linear típica da construção em versos. Meu processo criativo se funda, pois, no reconhecimento deste fluxo e na afirmação daquela força expressiva tão próprios, a meu ver, da poesia.

3 – Os seus livros e artigos publicados anteriormente te sublinham como um artista de muitas inquietações. Você é um inquieto ou um desconstruidor?
Durmo pouco, ando para um lado e para o outro quando falo ao telefone e acho que vou morrer a qualquer momento. Sou um inquieto, não?! Só desconstruo, com minhas obrinhas, se é que o faço, edifícios cujos alicerces já se encontram suficientemente apodrecidos.

4 – Qual a sua perspectiva da desconstrução?
Escrever não é outra coisa senão selecionar, eliminar, combinar elementos conceptivos. Não existe, por isso mesmo, criação sem descriação, artefato sem expurgo. Fazemos opções e estas vão revelar que tipo de sujeito criador representamos. Normalmente, utiliza-se a pecha da desconstrução para enquadrar trabalhos que, do ponto de vista estético, oferecem resistência a um rotulamento imediato. Trata-se de um juízo de valor no trânsito para o depreciativo, no sentido de que pode vir a isolar uma determinada criação ou criador, e que revela nítida desorientação crítica diante de algo que ainda não foi analisado com o devido rigor e entrega. A minha perspectiva de desconstrução nada traz de novidade: é o eterno diálogo entre o que já existe como repertório, comum ou individualizado, com o que se deseja construir de único, indizível por outrem e, portanto, digno de perpetuação.

5 – Que autores influenciaram sua forma de escrever?
Acabo de responder uma pergunta idêntica, para o Algo a Dizer de abril… Posso falar então de autores que me influenciam ou me agradam ou me influenciarão para breve, contemporâneos meus?! Bom, vou só de quatro poetas que li mui recentemente: Tonico Mercador, Elida Escaciota, Fabio Weintraub e Pedro Candela. Este último assina a orelha do recém-nascido “A Perspectiva do Quase” e compusemos uma valsa juntos, chamada “Doidivina”.

6 – Consegue definir qual é a cara do seu leitor?
Meu leitor não é uma mesa. É um sujeito histórico. Em geral sensível, bacana e bom de copo e de papo.

7 – Onde começa e onde termina o Gustavo Dumas e o Zeh Gustavo?
Eis uma fronteira interessante, mal demarcada, cujo paralelo é a própria fronteira entre os gêneros textuais. O Dumas é o cara mais serinho e melancólico, do artigo, do conto, do panfleto, até. Já o Zeh é metido a engraçadinho, faz poesia, compõe samba e valsa, toma todas – não que o Dumas seja propriamente um abstêmio (risos)… Pretendo aproximá-los – quem sabe em um livro com duas assinaturas?!

8 – De que forma você vê a cultura popular nos tempos atuais de globalização?
Creio que as condições atuais apenas extremam um longo processo de massificação do gosto e pasteurização das manifestações de origem popular que vem consolidar no imaginário coletivo o fetiche do produto alienado. Ponho em dúvida a existência efetiva da oposição popular/erudito nos dias de hoje, até porque a cultura dita erudita teve de buscar público e até força de trabalho fora de seus ambientes tradicionais, com os efeitos da uniformização atingindo as classes mais abastadas economicamente. Por outro lado, perfazendo uma via de contramão, vejo parte dos agentes da cultura popular com disposição, ao menos no Brasil, para um soerguimento efetivo. Mas para isso é preciso ensejar uma disputa dura, desgastante, em vários setores da vida social acostumados com a dopagem do entretenimento pelo entretenimento. Uma coisa me parece certa: voltamos a incomodar!

9 – Quanto à divulgação de seus trabalhos… A internet tem contribuído para a difusão de sua obra?
A internet tem contribuído, sim. Contudo, o que confere credibilidade ainda é a boa e velha publicação de papel e, claro, uma ou outra matéria que publicam. Na internet falta o recorte: se difunde tanto, e tanta coisa, que muito se perde.

Foto: Jaqueline Novaes – P@rtes – 2008

10 – Me fale um pouco sobre o mercado livreiro.
O mercado livreiro me soa como um mercado de bens em franca expansão. Proporcionalmente, no entanto, e descontados os fenômenos pontuais e midiáticos, a participação da literatura neste mercado vem encolhendo, em números e, por isso, em importância. A literatura perde espaço para o utilitarismo da mensagem pronta e até para a curiosidade mórbida de quem para para ler, por exemplo, as agruras profissionais de Bruna Surfistinha. A literatura perde espaço nos meios (supostamente) intelectuais, com a visão estreita da tecnicização, da especialização da especialização da especialização, corrente na chamada “vida acadêmica”, que de

Jaqueline Novaes é produtora Editorial e gráfica. É editora de Livros da Partes.

vida tem bem pouco. A literatura perde espaço, ainda, por consequência do sucesso de algumas boas políticas públicas para o livro e para a educação básica, que, para efetivarem este alargamento substancial da base de leitores e de gente estudada que vimos nas últimas duas décadas, precisaram ceder na qualidade e na disciplina do estudo, da leitura, da capacidade crítica. Mais existe um outro drama, relevantemente revelador: o pouco crédito da poesia, em particular, nos meios que se definem como pensantes. Isso me leva a crer, pelos motivos expostos anteriormente, que estes meios estão pensando é pouco, isso sim! Como um efeito surreal deste péssimo cenário, acontece um aumento considerável do número de poetas, em parte porque falta discernimento crítico e sobra ego, mas não pode ser só isso. Tenho o palpite de que há uma percepção geral, porém ainda em estágio embrionário e diluído, de que a poesia pode constituir um front discursivo capaz de atordoar e pôr a corroer a cultura do espetáculo, pelas suas margens. E me parece óbvio que as grandes editoras não vão patrocinar uma maluquice dessas, não é mesmo?

11 – Por último, mas não menos importante: qual a pergunta que ninguém tem feito para você?
Não lembro de nenhuma em especial, mas sinto falta de pesquisarem vínculos, associações entre meus livros. Cada livro que escrevo e lanço é recebido como se fosse o primeiro. E na verdade pode ser o último.

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