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Neurociência, cognição e dislexia

Vicente Martins

publicado em 02/09/2008

Aportes teóricos e pesquisas experimentais no campo da Neurociência, Psicologia Cognitiva e Linguística Clínica trazem, nos últimos cinco anos, achados importantes para os que atuam, no campo escolar, com crianças disléxicas, disgráficas e disortográficas.

Em seu Dislexias: descrição, avaliação, explicação, tratamento (Artes Médicas, 2001), Anne Van Hout e Françoise Estienne afirmam que, graças aos progressos das neurociências, os investigadores dos modelos de leitura e da sua aquisição, desenvolvimento e dificuldades recomendam o uso do termo dislexia no plural, ou seja dislexias, uma vez que os dados recentes exploratórios da dislexia e disfunções correlatas(disgrafia, disortografia) indicam muitas causas e manifestações bem como no agrupamento dos sintomas dislexiológicos.

São três os princípios psicolinguísticos para os profissionais que atuam com as crianças com dificuldades específicas na linguagem escrita.

 

 1º princípio – Desenvolvimento da Consciência fonológica

O desenvolvimento da consciência fonológica explica a maior parte dos casos de dislexia, disgrafia e disortografia. Os profissionais que atuam com disléxicos, digráficos e disortográficos precisam ter claramente, nos planos de avaliação e intervenção de fonologia e fonêmica. A fonologia deve ser entendida pelos profissionais como estudo dos sons da linguagem humana. É a fonologia  parte da lingüística que estuda os fonemas do ponto de vista de sua função na língua.

Falamos em consciência fonológica, segundo  Theodore L. Harris e Richard E. Hodges, em seu Dicionário de Alfabetização: vocabulário de leitura e escrita (Artes Médicas, 1999), quando há conscientização dos sons constituintes das apalavras durante o aprendizado de leitura e da soletração/grafia. Os componentes das palavras podem ser diferenciados de três maneiras, segundo os autores:

(1)   por sílabas, como /leis/, em que a palavra  tem, como observamos, apenas uma sílaba. A definição de sílaba é fonética:  uma vogal ou um grupo de fonemas que se pronunciam numa só emissão de voz, e que, sozinhos ou reunidos a outros, formam as palavras. Unidade fonética fundamental, acima do som.

(2)   Dentro da sílaba, por onsets e rimas, como /l/ e /leis/. Na língua portuguesa, a palavra onset pode ser traduzida por ataque. O ataque é foneticamente definido como  movimento das cordas vocais ao se posicionarem para realizar as articulações vocálicas. O ataque pode ser duro (glotalizado), com as cordas vocais cerradas e abertura repentina para a passagem do ar (como no alemão), ou suave e gradual, em que as cordas vocais se põem imediatamente em posição de vibração (como nas línguas românicas). Em outras palavras, diríamos que o ataque da sílaba é a parte inicial da sílaba constituída por uma ou mais consoantes, que antecedem o núcleo da sílaba. Nos casos em que não existe ataque, diz-se que a sílaba em questão possui um ataque vazio. Mais exemplos:  Na palavra “pai”, constituída por uma única sílaba, a oclusiva bilabial surda /p/ ocupa a posição de ataque.A rima da sílaba se define como . Rima da sílaba é considerado um constituinte silábico formado pelo núcleo (obrigatório) e pela coda (não obrigatória) de uma sílaba.Exemplos: Na palavra “mal”, constituída por uma única sílaba, a rima da sílaba corresponde à seqüência de vogal e de consoante lateral: /al/.

(3)   Por fonema, como /l/, /e/, /y/ e /s/. Fonema, estudado em todas as lições anteriores, categoria fonética fundamental para a compreensão da consciência fonológica, é unidade mínima das línguas naturais no nível fonêmico, com valor distintivo (distingue morfemas ou palavras com significados diferentes), porém ele próprio não possui significado (p.ex., em português as palavras faca e vaca distinguem-se apenas pelos primeiros fonemas/f/ e/v/). O fonema não se confunde inteiramente com as letras dos alfabetos, porque estas freqüentemente apresentam imperfeições e não são uma representação exata do inventário de fonemas de uma língua.

2º Princípio – Desenvolvimento da Consciência fonêmica

A noção de fonêmica se faz necessária no programa de intervenção psicopedagógica. Fonêmica é definida como ramo da análise lingüística que estuda a estrutura de uma língua no que se relaciona aos fonemas segmentais e sua distribuição na cadeia fônica. Segundo Theodore L. Harris e Richard E. Hodges, em seu Dicionário de Alfabetização: vocabulário de leitura e escrita (Artes Médicas, 1999), a consciência fonêmica é o dar-se conta dos sons(fonemas) que formam as palavras faladas. Esta conscientização não aparece quando as crianças pequenas aprendem a falar. Esta capacidade não é necessária para falar e entender a língua(gem) falada. Todavia, a consciência fonêmica é importante no aprendizado da lectoescrita (leitura, escrita e ortografia).

3º Princípio – Desenvolvimento da sensibilização às rimas 

 

Os modelos de intervenção psicopedagógica devem levar em conta no programa de treinamento as dificuldades dos disléxicos, disgráficos e disortográficos no tocante à sensibilização às rimas. Por  rima, podemos entender, a reiteração de sons (vocais, consonantais ou combinados) iguais ou similares, em uma ou mais sílabas, geralmente,  acentuadas, que ocorrem em intervalos determinados e reconhecíveis. Quando o leitor diante de textos versificados, rima é entendida como  apoio fonético recorrente, entre dois ou mais versos, que consiste na reiteração total ou parcial do segmento fonético final de um verso a partir da última tônica, com igual ocorrência no meio ou no fim de outro verso ou ainda a repetição de um som em mais de uma palavra de um mesmo verso (ex.: um canto santo de tão raro amor)

No mercado editorial, existem muitas obras que atuam diretamente na consciência fonológica e fonêmica de leitores disléxicos, disgráficos e disortográficos. Um bom exemplo é o livro de Denise Godoy, sob o título A Língua Travada: consonâncias em verso e prosa. A autora (denisegodoy@pop.com.br)  apresenta textos que devem ser lidos preferencialmente em voz alta em razão do objetivo que dirigiu a construção de cada um: trabalhar diretamente um grupo específico de consoantes da língua portuguesa. Pode ser utilizado em atividades de intervenção.

Vejamos o poema abaixo , de Denise Godoy, pronto para ser trabalhado com disléxicos que trocam as consoantes oclusivas /p/, /b/ e /m/ 

 

PROCURA 

Procurei a poesia do poema

Na beira do ribeirão

Pequeno, que lambe as bordas

Da mata do jatobá.

Busquei a beleza do mundo

Nos braços que embalavam um bebê,

Na música misteriosa dos amantes

E no murmúrio embaralhado das palavras.

Perdida na procura,

Descobri, no mundo, a paixão,

Na paixão, a beleza do poema,

E na beleza do poema,

A POESIA.

(Godoy, Denise. A Língua Travada: consonâncias em verso e prosa. Goiânia: Cânone Editorial, 2004. p.15)

Eis um poema para o trabalho, em sala de aula, para disléxicos que trocam as consoantes oclusivas /t/ e /d/

 

 

DÁDIVA 

Tem Dias em que tudo é descanso.

Tem tardes douradas

Em que o Cristalino teima em mostrar

Que ali a natureza é dádiva

E deslumbramento.

Tem noites em que a luminosidade

De estrelas já desaparecidas, insiste

Em entrar na retina.

Tem dias, tem tardes, tem noites.

Tem o verde, o horizonte,

A trilha, a mata.

Tem deuses a nos dizer

Que a vida é dádiva, é dor, é dúvida

E histórias a nos contar

Que a vida é mistério, festa e fantasia.

(Godoy, Denise. A Língua Travada: consonâncias em verso e prosa. Goiânia: Cânone Editorial, 2004. p.18)

Importante salientar, aqui, que a aliteração e assonância favorecem a consciência fonológica e fonêmica durante a alfabetização em leitura para disléxicos, disgráficos e disortográficos.

No campo da literatura, entendemos aliteração como a repetição de fonemas idênticos ou parecidos no início de várias palavras na mesma frase ou verso, visando obter efeito estilístico na prosa poética e na poesia. Por exemplo, é exemplo de aliteração a frase:  rápido, o raio risca o céu e ribomba.  A aliteração ocorre, em geral, em ‘rima inicial, repetição, no início de duas ou mais palavras vizinhas, das mesmas letras ou sílabas, geralmente, para fins expressivos, poéticos ou literários.

A assonância, por sua vez, desenvolve a consciência fonológica ou fonêmica à medida que favorece aos disléxicos, disgráficos e disortográficos a percepção da semelhança ou igualdade de sons em palavras próximas. Na estilística, fala-se em assonância quando do uso do mesmo timbre vocálico em palavras distintas, especialmente no final das frases que se sucedem ou na  prosa ou na poesia, repetição ritmada da mesma vogal acentuada para obter certos efeitos de estilo. Por exemplo, temos exemplo de assonância na frase: ardem na alvorada as matas destroçadas.

 

Para a intervenção nos casos de dislexia, apontaríamos a  a ludologia como uma prática pedagógica que favorece o aprendizado da leitura dos disléxicos, disgráficos e disortográficos

Na pedagogia, falamos em ludologia lectoescritora como uma esfera de conhecimento que abrange tudo o que diz respeito a jogos e passatempos e brincadeiras infantis com fins de assegurar o aprendizado das habilidades cognitivas instrumentais como leitura, escrita e ortografia.  O trava-língua e a parlenda são exemplos de ludologia lectoescritora.

Estudos

Que tratam sobre atividades indicadas para a intervenção psicolinguísticas em casos de dislexia, disgrafia e disortografia, assinam que o trava-língua promove a consciência fonológica das crianças com dificuldades em leitura, escrita e ortografaia.

O trava-língua é uma espécie de jogo verbal que consiste em dizer, com clareza e rapidez, versos ou frases com grande concentração de sílabas difíceis de pronunciar, ou de sílabas formadas com os mesmos sons, mas em ordem diferente, como: no meio do trigo tinha três tigres

 

Por fim, os achados na área da psicolinguística apontam que a parlenda melhora a memorização dos disléxicos, disgráficos e disortográficos.

A parlenda pode ser definida como declamação poética para crianças, acompanhada por música. Especificamente, ocorre parlenda quando os professores ou profissionais que intervêm em casos de dislexia, disgrafia ou disortografia através de rima infantil utilizada em brincadeiras e jogos desde a educação infantil.

Quando crianças na educação infantil, portanto, no processo de aquisição da linguagem, seja no trava-língua ou parlenda, ou qualquer outro jogo prosódico, já apontam indícios de dificuldades na fala, serão, no primeiro ciclo do ensino fundamental, fortes candidatos às dificuldades de ingresso no mundo da linguagem escrita, especialmente na leitura,  habilidade cognitiva em que terão que transformar os sons da fala, os fonemas, em signos alfabéticos do sistema escrito da sua língua materna.

 

Vicente Martins é professor da Universidade Estadual Vale do Acaraú(UVA), em Sobral, Estado do Ceará. E-mail: vicente.martins@uol.com.br

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