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A Educação Escolar Indígena: perspectiva de um diálogo intercultural?

Josélia Gomes Neves

publicado em 05/11/2008

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Josélia Gomes Neves Possui graduação em Pedagogia pela Fundação Universidade Federal de Rondônia (1989) – UNIR, especialização em Psicopedagogia (UCAM) e Mestrado em Desenvolvimento Regional e Meio Ambiente pela UNIR (2004). Atualmente é professora assistente da Fundação Universidade Federal de Rondônia – UNIR. Leciona no Curso de Pedagogia. Estuda e pesquisa na área da Educação e Alfabetização Intercultural, Educação Escolar em contextos indígenas, Didática Etnoambiental, Relações Sociais de Gênero/Currículo. Desde janeiro de 2007 é aluna do Curso de Doutorado em Educação Escolar da UNESP – Campus de Araraquara.
shiva.ro@uol.com.br

Desde 2004 temos desenvolvido estudos e atividades envolvendo a educação escolar em contextos indígenas, o que tem demandado uma maior leitura e compreensão na relação educação e antropologia social. Nosso campo de trabalho tem sido, sobretudo a região central do Estado de Rondônia, uma pequena parte da Amazônia brasileira, que possui em seu território cerca de 38 etnias indígenas além dos povos isolados. Nosso contato tem sido principalmente no município de Ji-Paraná, com as etnias Arara e Gavião, habitantes da Terra Indígena Igarapé Lourdes.

Assim, no intuito de contribuir na produção de trabalhos que levem em conta o contexto amazônida e ainda oferecer uma possibilidade de interlocução junto aos discentes da UNIR com os quais convivo, é que proponho o presente texto, uma sistematização da trajetória da educação escolar indígena no Brasil.

A literatura sobre o caminho percorrido pela educação escolar indígena (SILVA; GRUPIONI, 1995) nos informa que de maneira geral, essa modalidade de educação, pode ser sistematizada em dois grandes momentos: da Educação Indígena Comunitária à Educação Indígena Etnocêntrica, Catequizadora e Integracionista e, desta para a Educação Escolar Indígena Específica, Diferenciada, Intercultural e Autônoma aspectos que discutiremos nesta seqüência:

1.1 – Da Educação Indígena Comunitária à Educação Indígena Etnocêntrica, Catequizadora e Integracionista.

No decorrer da história tradicional dos Povos Indígenas, o processo educativo, ocorria por meio de formas próprias de classificação e ordenamento, onde a responsabilidade pela construção do conhecimento e a socialização da cultura, das tradições, da língua, do jeito de interpretar o mundo, era compartilhado por todos e todas. A forma de comunicar, aprender e ensinar estes saberes – que encerram em si uma série de complexidades, mobilizavam todo o coletivo da aldeia. (RIBEIRO,1982).

As histórias de antigamente contadas pelos velhos apontam que a aula era dada dentro da maloca, ali eles explicavam os fenômenos do mundo através dos mitos, mas a escola indígena estava em todo lugar. Os filhos e filhas eram ensinados a registrar mentalmente os conhecimentos e práticas com o compromisso de explicá-los aos demais (MELLATI, 1980). O conjunto destes conhecimentos, os conteúdos da maloca, por um determinado tempo, foi interpretado como simples, básicos, imediatistas. Entretanto os estudos etnográficos atestaram que os grupos culturais possuem também diferentes formas de proceder quanto aos seus esquemas lógicos como, por exemplo, de observar, experimentar, estabelecer relações, elaborar indagações, entre outros.

Uma das referências fundamentais nesta discussão foi a contribuição de Lévi-Strauss (2002), na clássica obra O Pensamento Selvagem, onde adverte para o fato de que o conhecimento construído por estes povos não se limita apenas ao aspecto utilitário, conforme assinala: “É claro que um conhecimento desenvolvido tão sistematicamente não pode ser função apenas de sua utilidade prática” (p. 23). Ao combater ideias desta natureza, que explicitamente defendiam que o conhecimento dos povos ditos primitivos eram simples, uma vez que serviam exclusivamente para a sua sobrevivência, o etnólogo demonstra a sua complexidade já que o pensamento humano faz uso de diferentes lógicas, não necessariamente a lógica formal ocidental que recorrem em diferentes contextos culturais a variados tipos de vinculações. Portanto, “o pensamento selvagem é lógico no mesmo sentido e da mesma forma que o nosso” (LÉVI-STRAUSS, 2002, p. 296).

Ao consideramos estas premissas – de que todos os povos têm capacidade de produzir conhecimentos para explicar a sua realidade, observamos que ela se opõe à concepção muitas vezes presente nas narrativas elaboradas pelos cronistas viajantes. Estes viam, por exemplo, o homem e a mulher da Amazônia por meio de formas estereotipadas – pessoas acomodadas, preguiçosas, inconstantes, despreocupadas, desleixadas, etc, (GONDIM, 1994).

Nesta visão, fundamentada no etnocentrismo, as populações tradicionais são consideradas incapazes de assimilar os padrões da modernidade. Esta avaliação tem profundas implicações no desenvolvimento destes povos e que incidem particularmente no currículo indígena com implicações diretas no jeito de pensar e fazer a educação escolar indígena, situação muitas vezes expressas no livro didático.

A Educação Escolar Indígena como prática educacional sistematizada, através da escola, entra no contexto dos Povos Indígenas a partir do “contato” com os não-índios, por volta do século XVI. Esse modelo de educação baseava-se nos objetivos de catequização, civilização e integração destes povos, impossibilitando, quaisquer oportunidades de participação enquanto sujeitos de suas próprias aprendizagens.

Com essa característica bancária, no dizer de Paulo Freire, ela se coloca a serviço do opressor na medida em que se configura como importante estratégia colonizadora de depositar saberes dominantes, que aliadas ao controle político e outros mecanismos, permitiram uma série de violências contra estas populações: a submissão, a invasão das terras e a pilhagem, entre outras (BRASIL, 1998). Esta escola refletia a mentalidade apontada por Laplantine (1999), caracterizada pelo etnocentrismo:

 

Mede-se a importância do ‘atraso’ das outras sociedades destinadas, ou melhor, compelidas a alcançar o pelotão da frente, em relação aos únicos critérios do Ocidente do século XIX, o progresso técnico e econômico de nossa sociedade sendo considerado como a prova brilhante da evolução histórica da qual procura-se simultaneamente acelerar o progresso e reconstituir os estágios. Ou seja, o ‘arcaísmo’ ou a ‘primitividade’ são menos fases da História do que a vertente simétrica e inversa da modernidade do Ocidente; o qual define o acesso entusiasmante à civilização em função dos valores da época: produção econômica, religião monoteísta, propriedade privada, família monogâmica, moral vitoriana.  ( LAPLANTINE, 1999, p. 69)

Inicialmente, os primeiros professores destes grupos étnicos – como na história dos não-índios, foram os missionários, situação que perdurou no período colonial, império e até períodos da República. Em função da inércia do Estado, as missões religiosas assumem a tarefa da educação, fundamentadas na concepção de catequização, civilização e mais tarde, integração. A tarefa se referia à transformação do “outro”, em algo próximo ao padrão estabelecido, prática de homogeneizar, que evidencia a negação da diferença, por meio do conhecimento e sistematização da língua indígena.

Esta tarefa é assumida pelo Summer Institute of Linguistics ao Brasil, em 1956 – que entre outros aspectos, centrava sua preocupação na salvação das almas destas populações, através da domesticação e aliciamento de mentes e corações. Esta instituição, em função de suas pretensões, foi e tem sido muito criticada pelos educadores e educadoras progressistas, que junto com as nações indígenas vêm discutindo novos projetos de educação numa perspectiva, específica, diferenciada, intercultural e autônoma (SILVA; GRUPIONI, 1995).

         Portanto, o S.I.L. inaugura um novo modelo etnocêntrico que visava a permanência da utilização da língua sob o argumento cultural de que era preciso que os povos indígenas a utilizassem como expressão própria, mas que efetivamente se impunha uma série de normativas ortográficas alheias ao consentimento destes povos. Então ao invés de proibir o uso da língua e assim produzir a sua extinção, ele promove a domesticação para atingir sua finalidade principal, a tradução da bíblia.

         Assim, a Educação Indígena Comunitária – caracterizada pelo modo próprio das comunidades indígenas passou para a fase da Educação Indígena Etnocêntrica, Catequizadora e Integracionista, cujas feições explicitam a desagregação do modelo educacional de tradição étnica, provocada principalmente pelas relações após o contato.

1.2 – Da Educação Indígena Etnocêntrica, catequizadora e integracionista à Educação Escolar Indígena específica, diferenciada, intercultural e autônoma.

Como resultado da mobilização social do movimento indígena e indigenista, por volta da década de 1970, o modelo de escola integracionista passa a ser cada vez mais questionado. Assim uma nova relação jurídica entre o Estado e os Povos Indígenas é estabelecida com o advento da Constituição Federal de 1988, onde a diferença cultural não é mais vista como problema e sim como algo a ser valorizado (BRASIL, 1988).

Entretanto, muito ainda precisa ser discutido e deliberado, pois há um desconhecimento em torno destas populações que por sua vez acabam por produzir preconceitos e estereótipos. Em relação à educação, os direitos indígenas são constantemente violados, muitas vezes em função de exigências dos órgãos públicos que na prática negam a especificidade desta escola. Sobre estes novos atores educacionais, adotamos a concepção de que:

 

A expressão ‘professores indígenas’, no contexto atual da discussão sobre educação escolar indígena, tem um único sentido: não pretende caracterizar uma classe particular de professores. São, ao contrário, professores no sentido pleno, que são ao mesmo tempo baniwa, tikuna, guarani, etc…,e que, portanto, se preocupam, enquanto professores, com todas as dimensões da educação escolar, e ainda, enquanto membros de totalidades sociológicas diferentes da nossa, com a situação atual, os projetos e o destino de seus povos: totalidades e não partes que se relacionam com a sociedade brasileira de forma bastante complexa.

(SILVA e AZEVEDO, 1995, p. 115)

 

A luta por uma Educação Escolar Indígena numa perspectiva especifica, diferenciada, intercultural e autônoma, reflete o pensamento dos movimentos indígenas.  É específica e diferenciada porque não se assemelha a escola dos não-índios, uma vez que seus objetivos de aprendizagem têm a ver com as suas necessidades e características (FREIRE, 1992). É intercultural por assumir a importância do diálogo entre as várias manifestações culturais entre os diversos povos e por assegurar aos seus educandos e educandas, o acesso aos saberes ditos universais produzidos historicamente pela humanidade articulados aos saberes locais. E deve, sobretudo continuar construindo sua autonomia porque a ela cabe fazer suas escolhas e decidir com suas comunidades os projetos de futuro que julga serem mais adequados.

Esta escola pensada para se aproximar dos interesses indígenas enfatiza a valorização e o resgate dos conhecimentos tradicionais. É possível atestarmos hipoteticamente que num século de contacto, estes conhecimentos em muito podem ter se modificado, entretanto, Freire (1992) adverte que: ”A história tem demonstrado que as culturas têm um substrato capaz de fazê-las resistir a situações que se afiguram danosas a elas, sem terem, contudo sucumbido” (p.426). Neste mesmo sentido, Laplantine (1999), acrescenta que: ”A cultura popular não só resiste notavelmente à cultura dominante como também frequentemente consegue se impor a esta de uma maneira dificilmente imaginável no Ocidente” (p. 189).

Após a passagem dos missionários no processo educativo dos Povos Indígenas, é implantada a educação formal nos anos 1980 através da instalação de escolas nas próprias aldeias, onde as professoras e professores eram não-índios, funcionários da Fundação Nacional do Índio – FUNAI, com uso exclusivo da língua portuguesa.

No entanto a educação desenvolvida por esta instituição, não representava um projeto fundamentado nas demandas dos Povos Indígenas. Os professores e professoras não-indígenas produziam uma série de violências físicas, psicológicas e culturais com os alunos indígenas: puxões de orelhas, beliscões, confinamentos, xingamentos, proibição de se comunicarem em sua língua materna e outras formas de violência.

Em cumprimento à Constituição de 1988, nos anos 1990, a Secretaria de Estado da Educação inclui a Educação Escolar Indígena em seu organograma. Daí em diante uma série de ações são desenvolvidas no sentido de ampliar os ganhos da escola na aldeia.

Muito ainda precisa ser feito e pensado, mas os próprios professores cada vez mais, vêm ocupando os espaços que lhes pertencem: decidir os rumos desta escola tendo em vista as necessidades de suas comunidades, na permanente busca do diálogo intercultural em um contexto de relações de poder tão assimétricas.

Referências

SILVA, Aracy Lopes da; GRUPIONI, Luís Donisete Benzi (orgs.). A Temática Indígena na Escola – novos subsídios para professores de 1º e 2º Graus. Brasília, MEC/MARI/UNESCO, 1995.

RIBEIRO, Darcy. Os índios e a civilização: a integração das populações indígenas no Brasil moderno. Petrópolis, Vozes, 1982.

MELATTI, Julio C. Índios do Brasil. São Paulo: Hucitec, 1980.

LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes Trópicos. São Paulo: Companhia das letras, 1981.

_______________________ . O Pensamento Selvagem. 3. ed. Campinas: Brasiliense: 2002.

GONDIM, Neide. A invenção da Amazônia.  São Paulo: Marco Zero, 1994.

BRASIL. Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas. MEC: Brasília,  1998.

BRASIL. Constituição Federal de 1988. Disponível em: www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao.htm – 666k – Acesso em 20/05/2005.

LAPLATINE, François. Aprender Antropologia. São Paulo: Brasiliense, 1994.

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