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Identidade brasileira e geograficidade: a música de Cascatinha e Inhana (1945-1981)

Valéria Marques

publicado em 02/02/2009

www.partes.com.br/cultura/musica/identidadeegeograficidade.asp

 

Resumo: O objetivo deste trabalho é fazer uma reflexão sobre a contribuição do saber geográfico na construção da identidade brasileira com base na linguagem expressada na música caipira da dupla Cascatinha e Inhana, do interior de São Paulo, no período de 1945 a1981. A ideia é realizar uma análise de sua obra de modo geral e especificamente das músicas “Guarujá” e “Alvorecer do Sertão” a partir de elementos como, contexto histórico e os conceitos geográficos de Região e Lugar.
Palavras-chave: Música. Região. Lugar.

Introdução
Este trabalho tem como objetivo refletir sobre a construção da identidade brasileira e o pensamento geográfico no Brasil. Entendemos que essa análise poderia ser feita a partir de várias linguagens como a cartografia, a literatura, a pintura, porém a nossa reflexão será por meio da linguagem musical.
Isso posto, analisaremos a obra musical de Cascatinha e Inhana (1945/1981) sob um prisma geral para, posteriormente, analisar as músicas “Guarujá” e “Alvorecer do Sertão”visando compreender como a discografia dessa dupla do interior de São Paulo expressava a realidade de toda uma época, demonstrando dessa forma como foi sendo construída a identidade brasileira a partir de dois conceitos geográficos: Região e Lugar contidos na musicalidade dessa dupla e que expressavam geograficidade e contexto histórico.
Segundo Santos (2004) podemos dizer de forma sintetizada que Região trata-se de um tipo de recorte onde cada atividades ou áreas de interesse possui sua própria territorialidade e o consideramos como Lugar , um fenômeno qualquer que tenha forma e posição que possam ser identificados e que, tal forma possuam uma identidade relacionada a algum processo especifico que lhe de significado.

Com essas considerações iniciamos o trabalho com um breve histórico da música caipira brasileira com o intuito de compreender como esse estilo musical foi se tornando parte da identidade brasileira ao longo da história do país. Posteriormente analisaremos a musicalidade de Cascatinha e Inhana de forma geral e das músicas citadas acima. Optamos pela obra, pois ao analisar a discografia da dupla percebemos forte traço de regionalização, característica de um momento histórico no qual as músicas traduzem a expressão máxima de exaltação das belezas físicas brasileiras. A escolha da dupla se deu por nos chamar a atenção a sua forte característica regionalista, como já acentuamos anteriormente, mas se deveu ainda à forma da expressar do “Lugar”. Assim, entendemos e nesse sentido direcionamos o trabalho ciente de que a análise da obra da dupla Cascatinha e Inhana nos possibilitaria a compreensão de um contexto histórico e deixaria claro quais os aspectos que também contribuíram para a construção do pensamento geográfico brasileiro.

A música caipira de Cascatinha e o Inhana e a construção da brasilidade
Os cantos religiosos dos jesuítas e as cantigas trazidas pelos portugueses colonizadores misturam-se à música e à dança dos índios, surgindo esse gênero musical que ficou conhecido como “musica caipira, ”que se popularizou especialmente nas regiões Sudeste, Sul e Centro-Oeste do país”, nessa ordem. A música caipira era o nome genérico que designava a melodia produzida a partir das primeiras décadas do século XX e que posteriormente passou a ser chamada de música sertaneja. Integrando esse gênero musical encontramos as catiras, cururus e as modas de viola.
O cururu nasceu dos cantos religiosos marcados pelas batidas de pé e fazia parte dos acontecimentos sociais das fazendas e vilas, uma espécie de desafio improvisado entre violeiros cantadores. A Catira surgiu de uma dança indígena, o cateretê, que também fazia parte dos cultos católicos dos primórdios da colonização, com solos de viola e coro, acompanhados de sapateados e palmas. É a dança da Folia de Reis, popular nos interiores mineiro e paulista, ritmo, por sinal, que era exclusivamente masculino.

Entre tantos sons e estilos formados a partir das toadas e cantigas, a moda de viola se transformou na melhor expressão da música caipira, com uma estrutura que permite solos de viola e longos versos intercalados por refrões, com letras extensas, contando fatos históricos e acontecimentos marcantes da vida das comunidades, cujo conteúdo evocava a beleza da paisagem assim como o modo de vida romântico do homem do interior em oposição ao homem da cidade com uma temática bastante ligada ao cotidiano. Com o passar do tempo, ocorreram as modificações temáticas anteriormente rurais, passando para o urbano mediante a estruturação e a utilização de outros instrumentos que consolidaram o lado moderno da música caipira. Segundo Ulhôa, esse gênero musical pode ser dividido em três partes: de 1929 até 1944, música caipira através da qual os cantadores interpretavam modas de viola e toadas, canções estróficas que após uma introdução da viola (repique) falavam do universo sertanejo numa linguagem essencialmente épica, muitas vezes satírico-moralista e menos frequentemente amorosa. Os duetos em vozes paralelas eram acompanhados pela viola caipira. A segunda fase, do pós-guerra aos anos 60, foi entendida como período de transição. Após 1945, introduziram-se na música caipira instrumentos como a harpa e o acordeom, além de novos estilos e gêneros, e a temática foi ficando cada vez mais amorosa, mas conservando um caráter autobiográfico. A fase moderna da música sertaneja iniciou-se no final dos anos 60 e vem até a atualidade, com a introdução da guitarra elétrica e o chamado “ritmo jovem”.

Assim, ao analisar como foi construída ou como se desenvolveu a música caipira podemos compreender como de fato esse gênero musical expressa a brasilidade, fazendo parte da identidade popular do país, gênero musical que se formou pela canção e pela síntese da cultura musical de povos europeus, africanos e indígenas.
O apogeu dos caipiras foi nos anos 50, quando muitas duplas, especialmente do interior de São Paulo, tiveram espaço nas gravadoras e emissoras de rádio. A música da dupla Cascatinha e Inhana faz parte desse período, ou seja, da segunda fase, que foi a de transição entre a moda de viola de raiz e a música sertaneja. Foram 39 anos de trabalho do primeiro disco gravado em 1942 até a morte de Cascatinha, em 1981. Com mais de 100.000 discos vendidos suas músicas apresentavam características marcados pelo cotidiano, pela beleza das paisagens, o modo de vida romântico do interior e passando para fase mais amorosa, além da temática urbana, uma vez que o processo de urbanização avançava de modo acelerado no país.
Para melhor compreender a reflexão sobre músicas com abordagens regionalistas há que se valer do mapa Tipos e Aspectos do Brasil, que demonstra o trabalho em cada região do Brasil.

Tipo e aspectos do Brasil

Figura 1: Tipos e aspectos do Brasil. Fonte: SILVA (2006)

Ao relacionarmos a música de Cascatinha e Inhana com esse mapa denominado Tipos e Aspectos do Brasil, publicado em 1939 pela Revista Brasileira de Geografia que, segundo Jorge Luiz Barcellos da Silva “`tornou-se aos poucos uma referência sobre a realidade geográfica do país”, podemos inferir que as músicas sob análise da dupla expressavam exatamente o contexto histórico em prol da unidade nacional garantida, convém sempre repetir, nas diferenças culturais. Para Silva, “Ao apresentar homens que retratam gêneros de vida localizados e, portanto, reconhecidos dentro de uma escala de significados, dá valor a um conjunto de atividades que fazem parte da construção nacional.´´ Mais adiante afirma que“De Sul ao Norte os tipos brasileiros são vistos, assim como as paisagens, de forma estereotipada´´.
O uso desse recurso permite entender melhor essa regionalização e constatar que o fenômeno fazia parte de um contexto histórico nacionalista de exaltação à pátria, uma maneira de induzir a população a vincular a ocorrência de eventuais problemas localizados em qualquer parte do Brasil as diferenças culturais, uma política implícita do governo para evitar a possibilidade da ocorrência de conflitos sociais. Dessa forma, ao observar o mapa abaixo, com o qual fizemos a relação com as músicas, podemos compreender que tais canções regionalistas faziam parte de um contexto histórico.
Em função disso, selecionamos trechos de algumas músicas que nos remetem à questão colocada:

Bombachudo

Bombachudo de tradição
Passa pra cá a cúia
Que eu também quero tomar o chimarão.

Seriema

Oh!
Seriema de Mato-Grosso,
Teu canto triste me faz lembrar,

Flor do Cafezal

Meu cafezal em flor, quanta flor meu cafezal,
Ai menina, meu amor, minha flor do cafezal

Mas além dessa visão regionalista, as músicas do par sertanejo apresentavam uma outra faceta, que consistia na abordagem detalhada dos lugares, características que a vinculam com a temática do cotidiano própria da moda de viola, essa forma de transformar lugares em canções que encantavam os ouvintes do próprio lugar, os que haviam partido desses lugares e os que conheciam esses lugares apenas pelas letras das músicas.
Para analisar os locais aproveitados como temas das canções de Cascatinha e Inhana partimos da afirmação de Santos (1995), de que o lugar é mental e social, lugar é identidade e diferença, lugar marcado (logo destacado) e nomeado (logo dito), logo ligado e religado. Dessa forma podemos, ao analisar a letra da melodia, perceber que o lugar cantado é mais do que mera descrição e perpassam os estereótipos.

Alvorecer do Sertão

Como é bonito,
No sertão raiar o dia,
Ver o sol aparecendo,
Por de trás da serrania

Beijando quente,
A campina vermejante
E o orvalhando refletindo,
Como pedras de brilhante

Guarujá
Praias de brancas areias,
Céu de tão raro explendor
Mar onde lindas sereias,
São todo um poema de amor
Lindas manhãs de verão,
Noites de quente luar,
Brisas que são beijos perdidos no ar,
Notas plangentes ao mar

As músicas que retratam o lugar o fazem partindo da percepção da identidade destes. Em forma de música percorrem outros lugares onde podem ser comparados com outros e outras identidade. É assim que as formas do lugar desconhecido, cantado e imaginado entram em contradição com as formas do próprio lugar construindo identidades a partir de outras identidades e, desse modo, tal fenômeno não pode ser confundido com o lugar comum do estereótipo. Para Santos, um“lugar possui identidade a partir do momento em que é possível comparar um fenômeno com um conjunto de outros e, assim, identificar sua posição em relação aos demais. Um dos aspectos fundamentais para a construção dessas identidades é, justamente, a forma que cada fenômeno possui e é isso justamente o que chamamos de espaço”.

Considerações finais
A música caipira de Cascatinha e Inhana retrata dois conceitos importantes da Geografia: a região e o lugar. Por meio da linguagem musical podemos perceber que a construção de uma identidade nacional está ligada à construção do espaço e dessa forma entendemos que a construção da brasilidade está diretamente ligada à geograficidade. A identidade de um povo se constrói em um momento, (tempo) e em um lugar (espaço). Isso fica evidente na abordagem regionalista e estereotipada que representa um contexto histórico cujo objetivo era o de manter a unidade nacional baseado nas diferenças culturais e na abordagem dos lugares que o vão tirando do anonimato, gerando contradições e criando novas identidades.

Referências
ULHÔA, Marta. A música sertaneja em Uberlândia na década de1990. Disponível em: site www.artcultura.ufu.br. Acesso em: 08/08/2008.
SANTOS, Douglas. Conteúdo e objetivo pedagógico no ensino de Geografia. Caderno Prudentino de Geografia, Presidente Prudente, n. 17, p. 20-61, jul. 1995
SILVA, Jorge Luiz Barcellos da. Atlas Geográfico do Brasil: leituras da territorialidade e a construção da brasilidade. 2006. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Pontifícia Universidade Católica, São Paulo.

 

Valéria Marques é mestranda da PUC-SP. Valerri_marques@hotmail.com

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