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Para entender o filme “Linha de Passe”

Fernanda Gabriela Soares dos Santos*[1]Décio Luciano Squarcieri de Oliveira**
publicado em 08/04/2009 como www.partes.com.br/educacao/linhadepasse.asp

 

“Como explicar a um meigo

Um leigo assassinado?”

Nei Lisboa

Cleuza (Sandra Corveloni) em casa, diante da pia entupida

A nova safra de filmes brasileiros não tem deixado a desejar. Ao contrário da difundida ideia de que “Pra filme brasileiro é bom”, o cinema nacional desde sua retomada tem demonstrado um profundo cuidado com os filmes lançados. Prova disso são os interessantes Amarelo Manga, Tropa de Elite, Central do Brasil, Quem matou Pixote?

Bons filmes, embora não lotando ainda os cinemas tal como os enlatados que são consumidos em larga escala por aqui. O convite para assistir ao filme Linha de Passe é o convite para aqueles que não têm medo de ver o que não raro nos negamos. Em uma família na qual a mãe é a chave, moram na mesma casa filhos de pais diferentes que possuem a mãe como elo.

É impossível não se encantar com o mesmo menino que fez o Central do Brasil e que caiu aos gostos do diretor já crescido e mostrando a que veio. Fazendo um personagem interessante, bem construído, inquieto em suas escolhas. Não tem como não se encantar com o tom conferido ao personagem, delicado da mesma maneira que foi seu personagem em Central do Brasil, emocionando tal como da outra vez.

A mãe dos meninos também faz uma interpretação antológica na medida em que já está grávida de outro filho e luta para manter seu trabalho como empregada doméstica, pois se torna difícil fazer as tarefas em função da gestação. Um dia, ao chegar ao seu trabalho, percebe que a patroa também chamou outra para ajudar, e ela sente um grande medo de perder seu emprego.

                                                                                              Cleuza (Sandra Corveloni) vibra com a torcida no estádio

Fernanda Gabriela Soares dos Santos Mestre em Educação pelo PPGE/UFSM, professora da FISMA( Faculdade Integrada de Santa Maria). fernandagssantos@yahoo.com.br

Uma outra grande sacada do filme é o imaginário brasileiro em relação ao futebol. Um dos seus filhos sonha ser jogador de um time e é advertido por um amigo que para poder ter direito a jogar alguns minutos em um pequeno time, precisa pagar uma quantia de dinheiro. Lógico que a família não dispõe do valor necessário, uma vez que a renda é pequena. Esse mesmo menino sofre por fazer dezoito anos e não ter entrado em nenhum clube para jogar, pois está ficando velho para iniciar uma carreira futebolística.

E em um dos melhores momentos do filme, os mesmos braços levantados que cultuam , amam e sofrem com o futebol, na próxima tomada, aparecem em um culto religioso. Tão fervorosos e apaixonados, pois o outro filho aspira ser participa de um culto. É impossível um imaginário não se alinhavar com o outro, o futebolístico e o religioso, costurando duas paixões que podem se tornar fanatismos, assim como todas as paixões que vivemos…

Fazer esse, essencialmente humano, como nos coloca FREIRE (1987, p.92):

Práxis que, sendo reflexão e ação verdadeiramente transformadora da realidade, é fonte de conhecimento reflexivo e criação. […] E é como seres transformadores e criadores que os homens, em suas permanentes relações com a realidade, produzem, não somente os bens materiais, as coisas sensíveis, os objetos, mas também as instituições sociais, suas ideias, suas concepções. Através de sua permanente ação transformadora da realidade objetiva, os homens, simultaneamente, criam a história e se fazem seres histórico – sociais.

Gostemos ou não de fanatismos, antes de mais nada devemos reconhecer enquanto manifestação, como diria o filósofo Nietzsche, humano demasiado humano. Totalmente compreensível, ainda que não raras vezes nos cause estranheza e indignação. Como entender um país que mal se alimenta, porém deposita dinheiro para essas igrejas? Como entender as brigas de torcidas nos estádios? Como é possível que as pessoas se matem por desentendimentos futebolísticos? Por que discutir por um gol?

E manifestações sempre organizadas, com muitas pessoas. As brigas de torcidas, todos sabemos não são casos isolados. Torcidas organizadas se provocam, xingam-se, batem. Os estádios que antigamente eram um local de lazer para as famílias aos domingos, vão gradativamente tornando-se um local perigoso, no qual os pais já não levam mais seus filhos para passearem.

Décio Luciano Squarcieri de Oliveira é Graduado em História – Licenciatura Plena pela Universidade Federal de Santa Maria. Especialista em História do Brasil/UFSM, Mestrando em Educação/UFSM, Professor Pesquisador I da Universidade Aberta do Brasil – UAB/UFSM, Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Imaginário Social – GEPEIS – UFSM. decioluciano@yahoo.com.br

Costurando todos esses caminhos vemos a batalha de uma mãe para criar sozinha todos esses filhos, que em alguns momentos refresca a alma em uma mesa de bar e se entristece quando o filho lhe cobra estar grávida novamente. Luta para fazer uma festa de dezoito anos para um dos filhos e se enerva quando um deles lhe presenteia com uma bolsa que, tal como na música do Chico Buarque “Veio com tudo dentro…”

Cleuza (Sandra Corveloni) e o filho Dinho (José Geraldo Rodrigues) discutem durante o jantar

Difícil não se emocionar com a história. Impossível quem de nós não conheça alguma semelhante ou não a compare com a sua. Quantas mulheres sozinhas sustentando casas, lutando por seus filhos e trabalho, sofrendo preconceito, e ainda assim, chamadas de sexo frágil?

Para CHAUÍ (2002, p.11):

Como se pode notar, nossa vida cotidiana é toda feita de crenças religiosas, da aceitação tácita de evidências que nunca questionamos porque nos parecem naturais, óbvias. Cremos no espaço, no tempo, na realidade, na qualidade, na quantidade, na verdade, na diferença entre realidade e sonho ou loucura, entre verdade e mentira; cremos também na objetividade e na diferença entre ela e a subjetividade, na existência da vontade, da liberdade, do bem e do mal, da moral, da sociedade.

E assim, como na citação, aceitamos todo o cotidiano com naturalidade. Já não nos surpreendemos com essas histórias, não mais somos tocados pela história triste do vizinho. A sociedade do espetáculo está alicerçada no cuidado individual, na preocupação com seu quintal, o qual não raro anda gradeado e com cerca elétrica. O problema alheio não me comove, pois tenho os meus que já são suficientes.

Acreditar no improvável, na mudança e na transformação, para muitos, ficou perdido no desusado discurso marxista de intervenção na realidade. O fundamental agora é o acúmulo de bens de consumo, o celular da moda, independente se terei dinheiro para pagar o feijão até o fim do mês. O mais importante é que o meu celular tire fotos e quem sabe eu consiga ouvir músicas nele.

Enquanto isso uma camada significativa da população não sabe se vai comer amanhã, seus filhos estão fadados ao fracasso escolar e a morrer de doenças ainda pouco consideradas erradicadas. Enquanto os nossos filhos baixam músicas na rede, os filhos de muitos jamais terão a rede em casa. E isso não faz parte de show nenhum, pois nunca vão conseguir nos incutir a impossibilidade de sonhar, de querer e sobretudo de lutar por um mundo melhor…

REFERÊNCIAS

CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo, SP: Editora Ática, 12ª ed., 2002.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Miniaurélio: o minidicionário da língua portuguesa. 6. ed. rev. amp. Curitiba: Posigraf, 2004.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro, JR: Editora Paz e Terra, 17ª Edição, 1987.

* Professora de Filosofia da Rede Municipal de Formigueiro, RS e mestranda em Educação pelo PPGE/UFSM- fernandagssantos@yahoo.com.br

** Professor de História, Especialista em História do Brasil, Professor Substituto do Departamento de Metodologia do Ensino – MEN –CE-UFSM- decioluciano@yahoo.com.br

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