Cultura literatura

Notas sobre Informes de um Gago, e outros contos modernos

Larissa Daiane Pujol C. dos Santos*

publicado em 12/06/2009

www.partes.com.br/cultura/informesdeumgago.asp

 

 

Larissa Daiane Pujol Corsino dos Santos é Professora, poeta, crítica literária

O conto Informe de um Gago, escrito por Sérgio Sant’Anna, agrupa um conjunto de características do conto urbano (final século XX), como o diálogo coloquial, o espaço, o tempo. Ele é narrado em primeira pessoa (sendo que o narrador é anônimo durante todo o enredo), no tempo pretérito, com parênteses, no meio e no fim da trama para expressar a opinião, ou, um informe sobre os gagos. Esse parecer é feito por um segundo narrador, externo à estória.

A unidade dramática desse conto se dá desde o início. Na primeira parte, Esmeralda abandona seu amante gago para viver com outro. Ela arruma suas malas e o gago a acompanha até a esquina:

 

– Fi…ca co…migo! […]

– Será que você não vai se convencer nunca? […] Um sujeito raquítico, com esse peito encovado. Que foi licenciado do banco porque gagueja diante das pessoas, mas fala sozinho e gesticula no meio da rua. Está vendo porque eu não queria despedidas? […] (SANT’ANNA, 1997, p. 701)

 

Nesse conto, como dito anteriormente, há a presença de outro narrador que “pausa” a estória para apresentar seu parecer sobre os gagos:

 

Os gagos não são estúpidos como parecem. Muito pelo contrário, o que um gago não consegue é acompanhar a velocidade vertiginosa do seu pensamento e as palavras são como um estorvo que ele tropeça […]. (SANT’ANNA, 1997, p. 701)

 

Dalton Trevisan, também contista contemporâneo como Sant’Anna, escreve seu conto O Vampiro de Curitiba, apresentando Nelsinho como narrador. Embora também narrado em primeira pessoa, no conto não há “pausas” para expressar pareceres. O próprio Nelsinho opina sobre as mulheres: […] beijo de virgem é mordida de bicho-cabeludo. Você grita vinte e quatro horas e desmaia feliz. (TREVISAN, s/d, p.09).

Para Moisés (1973), o foco narrativo na primeira pessoa faz com que o narrador interprete através do seu ângulo pessoal, oferecendo de si uma imagem sempre otimista, e dos outros, negativa, ou pouco boa, como se pode observar nessa passagem:

 

– Não, eu não vou te julgar, Esmeralda, mas teve um tempo em que o seu futuro era eu […]

– Mas você exagerou, Esmeralda: o meu gesticular é discreto, apenas um homem que rabisca o ar, com o punho junto à cintura, o que lhe dá a sensação de que suas palavras e pensamentos se escrevem. (SANT’ANNA, 1997, p. 701)

 

O crítico também considera o conto unívoco e univalente, que compõe uma unidade de início meio e fim, cujo passado e o futuro do enredo é sem importância.

 

O conto constitui uma fração dramática […] duma continuidade em que o passado e o futuro possuem significado menor, ou nulo. (MOISÉS, 1973, p. 125)

 

A partir dessa citação, pode-se observar que o conto é o presente, o hoje, o agora. Entretanto em Informe de um Gago, assim como em Missa do Galo, de Machado de Assis, o passado se faz necessário para a unidade dramática. No primeiro conto, o gago busca na lembrança a resposta a ser dada à Esmeralda:

 

E você se engana, Esmeralda, se acha que poderá se libertar de mim. […] Talvez então se dê conta de que ficou esse tempo todo comigo justamente porque sou gago. (SANT’ANNA, 1997, p. 703)

 

Já, em Missa do Galo, o narrador retorna aos seus dezessete anos e procura na conversa que teve com Conceição o entendimento para o que ele sentira naquela hora em que estiveram juntos: “Nunca pude entender a conversação que tive com uma senhora, há muitos anos, contava eu dezessete, ela trinta.” (ASSIS, s/d, p. 1)

De acordo com Moisés (1973), sendo o tempo pretérito dominante no conto, a noção de presente mantém-se por causa do foco narrativo que está na primeira pessoa. Logo,

O leitor passa a impressão de que está sendo participado de ocorrências quase contemporâneas à leitura, como se a realidade viva lhe fosse revelada em pleno processo dinâmico […], o protagonista dirige expressamente ao leitor, ou interlocutor, como se apenas contasse um “caso” a determinado ouvinte, que é sempre a pessoa que naquele momento se deleita com a narrativa. (MOISÉS, 1973, p. 134-135)

            A noção de espaço, segundo Moisés, também deve ser em âmbito restrito, salvo a presença de mais locais geográficos que servem para suprir a necessidade do conflito em cena. Em Informe de um Gago, há dois espaços onde acontecem os fatos: o apartamento e a esquina da rua. Esses lugares são necessários para o desenvolvimento da trama – o apartamento onde ocorre a tensão e a esquina onde Esmeralda se despede. Outro exemplo de conto que contém vários espaços é O Homem que Sabia Javanês, de Lima Barreto. Nessa trama, Castelo conta ao seu amigo Castro o sucesso que tivera como professor de javanês, e nisso o enredo se desenvolve em vários locais, como o bar onde castelo conta sua história, as ruas do Rio, a mansão do velho barão, o congresso na Europa, entre outros, que servem de base para que o conto flua coerente e objetivo. O tempo, nesse conto, não é unitário. O presente, ali, é a conversa entre Castro e Castelo no bar. Toda a narração é feita no passado e em varias “fases”: “Passei a ser uma glória nacional […] Dentro de seis meses fui despachado cônsul em Havana, onde estive seis anos […]”. (BARRETO, s/d, p. 12)

Observa-se que a noção de tempo no conto, assim como o espaço, oferece ao corpus textual maior coerência e entendimento dos fatos que estão sendo narrados. Mesmo havendo mais de uma unidade, a narrativa de Informe de um Gago e O Homem que Sabia Javanês obedece a uma estrutura harmoniosa, objetiva. Conforme Moisés (1973), a impressão coerente e singular ocorre pelo fato do conto operar com a ação e não com caracteres, a fim de que o leitor se espelhe nas situações conflituosas do enredo. Quanto à questão das personagens, Moisés (1973) afirma que,

 

[…] as personagens tendem a ser estáticas: porque as surpreende no instante climático de sua existência, o contista as imobiliza no tempo, no espaço, na personalidade. (MOISÉS, 1973, p. 127)

 

Observa-se, então, que a tarefa da personagem é mostrar seu caráter sem se importar em “crescer” diante do leitor. Para a personagem, o que importa é colocar no apogeu a sua situação humana. Em Informe de um Gago, o próprio narrador deixa claro a consciência de seu caráter:

 

E o que nele se estampava, a par do capricho egoísta, a baba lasciva […] eram o meu gozo aflito e minha consciência aguda. A consciência de que não podíamos deixar de ser como éramos. Mais ainda do que isso, a de que eu queria ser quem eu era. (SANT’ANNA, 1997, p. 703)

 

Além disso, a presença do outro narrador na estória transmite, além da opinião, um informe sobre o temperamento da pessoa gaga:

 

Os gagos são grandes amantes, discretos, silenciosos, objetivos, concentrados. […] E já temem tornar-se tediosos falando, os gagos são ainda mais tímidos para se tornarem repulsivos e pegajosos com carícias em excesso e fora de hora […]. (SANT’ANNA, 1997, p. 703)

 

Simões Lopes Neto, em O Negro Bonifácio, começa seu conto baseado nas características da personagem principal, e a partir disso, desenvolver a trama: “Se o negro era maleva? Cruz! Era um condenado! Mas, taura, isso era, também!” (NETO, s/d, p. 12)

A partir da descrição do caráter da personagem, pode-se ter uma noção de como será a estória. Assim como Informe de um Gago, a ação inicial de Esmeralda transmite o conflito que está para acontecer:

 

Esmeralda não me olhava de frente, enquanto terminava de fazer a mala […]

– Não torne as coisas mais difíceis.  – Esmeralda desvencilhou-se de mim. (SANT’ANNA, 1997, p. 701)

 

A forte presença da metáfora também é comum entre os contos descritos anteriormente. Segundo Moisés (1973), a linguagem objetiva do conto pede para que as metáforas sejam de curto espectro e de imediata compreensão para o leitor. Nessa característica, ambos os textos (de Simões Lopes Neto e de Sant’Anna) utilizam a metáfora de maneira correta e de fácil entendimento de leitura:

 

Os olhos de Tudinha eram assim a modo olhos de veado-virá, assustado: pretos, grandes, com a luz dentro, tímidos e ao mesmo tempo haraganos […] (NETO, p. 12)

O vestido largado no chão ainda conservava um pouco da forma e volume de um corpo, como um balão apagado […] (SANT’ANNA, 1997, p.702)

 

Percebe-se que a metáfora, aqui, aproxima o leitor ao interior do narrador. A utilização desse recurso faz com que sua leitura se torne interessante e descontraída, além de transmitir sua opinião, sua ideia sobre o assunto:

 

Então o amor canino de um gago pela mulher é camuflado pela prudência, desconfiança e sensualidade furtiva dos gatos. (SANT’ANNA, 1997, p. 703)

 

Segundo Moisés (1973), a trama do conto é linear e objetiva. Ao iniciar o conto, ele já está próximo do epílogo, fazendo com que a precipitação domine o conto e que o leitor conheça os momentos anteriores ao clímax dramático. O enredo se organiza de acordo com os acontecimentos da vida e os pormenores se acumulam numa lógica de fácil percepção leitora, entretanto, mantendo o tom enigmático:

 

As ocorrências se mostram integralmente ao leitor, mas carregam dentro de si, sem que ele o saiba, um mistério, um nó dramático a ser desfeito, o qual não reside em qualquer truque de técnica […] (MOISÉS, p. 132)

 

No caso de Informe de um Gago, o final enigmático se dilui ao longo do conto, pois o que ali importa é a análise interna dos acontecimentos, ou melhor, da pessoa gaga (feita por um segundo narrador), e a partir dos fatos, expressar sua opinião, sempre, claro, conseguindo realizar o intento do conto, que é a de narrar uma história que convença o leitor. O emprego da primeira pessoa, conforme Moisés (1973), atribui ao conto uma unidade de narrativa, graças à concentração de efeitos, e ao caráter plausível que lhe é essencial.

 

REFERÊNCIAS CONSULTADAS:

MOISÉS, Massaud. A Criação Literária – Introdução à problemática da Literatura. 5ª Ed. Melhoramentos: São Paulo, 1973.

SANT’ANNA, Sérgio. Contos e Novelas Reunidos. Cia das Letras: São Paulo, 1997.

SEBEN, Paulo. Material didático organizado para disciplina de Conto Brasileiro. UFRGS. S/D (coletânea de contos).

 

* Professora, poeta, crítica literária.

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