Cultura

Elementos de adaptação trazem uma Odisséia na perspectiva da infância

Izaura da Silva Cabral1

publicado em 01/10/2009

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Izaura da Silva Cabral é mestre em Letras-Leitura e Cognição -UNISC, professora de Língua Portuguesa e Literatura do Curso Normal de Ensino Médio no Instituto Estadual de Educação Ernesto Alves.

Conhecendo o processo de adaptação das obras clássicas que visam o leitor criança, o professor poderá também ter uma noção dos elementos indispensáveis que deve analisar em uma obra antes de apresentá-la a seu aluno.

A produção da literatura infantil deve estar apoiada em princípios que consideram o tipo de leitor a ser atingido, ou seja, a criança, e por isso exige um afastamento do narrador da condição de adulto para se aproximar do mundo infantil. Nessa busca da comunicação com a criança é que se realizam as adaptações, cujo propósito é diminuir a situação de inferioridade dos pequenos em relação ao meio circundante.

Este trabalho tem como propósito demonstrar como a Odisseia de Homero tornou-se uma narrativa de interesse infantil, que busca o gosto da criança pela leitura e valoriza o caráter emancipatório, que deve permear a boa literatura destinada a esse público. O estudo tomará por base a obra clássica adaptada Ruth Rocha conta a Odisseia, destinada ao público infantil. A análise será fundamentada pelas teorias de Regina Zilberman.

Na adaptação de uma obra clássica adulta para um leitor infantil, a maior preocupação deve ser a diminuição da assimetria. O narrador utiliza-se de diversos meios para suprimir a distância existente entre o adulto, que produz o livro, e a criança, o leitor a ser atingido. Zilberman aponta a adaptação de assunto, forma, estilo e meio.

Quanto ao assunto, Zilberman, a partir de Göte Klimberg, sugere que se considere: “[…] que a compreensão de mundo do recebedor, assim como suas vivências, são limitadas, [por isso] o escritor obriga-se a uma restrição no tratamento de certos temas, ideias ou problemas. 2”(p. 43)

Na Odisseia, o assunto é a persistência de Ulisses que, apesar de todos os contratempos, como perder a embarcação e todos os companheiros de viagem, nunca desiste de tentar voltar a Ítaca e rever a esposa Penélope e o filho Telêmaco. A partir dessa característica identificamos o caráter emancipatório da narrativa, que é evidenciado no texto de Ruth Rocha com algumas passagens como as que seguem: a) o reconhecimento de Ulisses por Alcino, no capítulo 8, se dá quando aedo canta um canção sobre a luta entre o herói e Aquiles, e Ulisses tenta esconder as lágrimas; b) Ulisses vai sozinho procurar seu pai Laertes. Assim identificamos no texto que em “a” há a possibilidade do herói se emocionar, e em “b” assinala a independência de Ulisses.

Sobre a adaptação da forma Zilberman nos diz que “o enredo deve ter um desenvolvimento linear e personagens que motivem uma identificação; por sua vez, são prescindíveis os flash-backs ou as interrupções no andamento para a introdução de conceitos ou ensinamentos morais3”. Na Odisseia de Rocha notamos que a narrativa se dá linearmente e que a autora procura não dar ênfase a acontecimentos futuros, evita enredos secundários que desviem atenção do leitor, bem como procura não repetir fatos já contados.

Para que a criança se identifique com as personagens podemos salientar que na obra esse efeito se dá através da simplificação do caráter, já que personagens boas como Ulisses, Telêmaco e Penélope possuem sempre os predicativos de boas, justas, corajosas e leais, enquanto os vilões, ou seja, os pretendentes, as figuras mitológicas e os deuses Hélio e Poseidon, que atravessam o caminho do herói, são maus e desleais. Isso ocorre para que a criança, como ser em formação, compreenda que na vida há sempre essa dualidade, e que ela precisa acostumar-se a conviver com isso.

Zilberman também aconselha que se evitem “trechos muito longos com descrições”, e recomenda o uso de “mecanismos de suspense através da intensificação da ação e da aventura4”. No texto de Rocha as descrições aparecem somente quando são imprescindíveis para que o leitor compreenda a ação desenvolvida.

Quanto ao suspense, é construído principalmente por atitudes que desafiam o herói ou seus aliados e pelo discurso direto: “Circe havia prevenido: / – Ninguém jamais conseguiu passar entre essas rochas, a não ser Argo, a nau de Jasão, que teve a ajuda de Hera5”.

Em relação ao estilo, a linguagem utilizada por Ruth Rocha preza pela correção linguística. Por outro lado, nesse tipo de literatura, devem prevalecer estruturas sintáticas “próprias à expressão oral, verificando-se na literatura infantil o predomínio da oralidade sobre a linguagem escrita6”. Assim o texto da autora faz uso da oralidade como forma de aproximação do leitor. Ex.: “sem experiência e ainda por cima, mortal! 7”; “completamente casa com o rei de Esparta8”; “vocês já perceberam que os gregos gostavam muito de histórias9”.

Através dessa última citação, também, é interessante notar que Rocha situa a criança no tempo em que se passa a narrativa, caracterizando a sociedade grega através de uma pequena conversa com o leitor: “naquele tempo os oráculos eram muito respeitados10”, “Era muito comum, antigamente, que as pessoas de várias religiões sacrificassem animais em honra dos deuses. Era uma espécie de churrasco, só que tinha regras […]11”.

Outro aspecto a ser observado é o livro com objeto visualmente atrativo para a criança. É o que constitui a adaptação do meio. A respeito, Zilberman diz que a “presença de ilustrações e tipos gráficos graúdos, assim como a escolha de um determinado formato e tamanho, enfim o aspecto externo do livro, são condições de atração das obras12”. A Odisseia de Rocha é rica em ilustrações (mas, nessa edição podemos dizer que há problemas, pois as ilustrações se fossem coloridas, com certeza, seriam bem mais atraentes para o público infantil) e, estas refletem a preocupação com o traço grego: as roupas, os costumes, as armas. Esse aspecto é referência para a criança se situar no tempo e espaço da narrativa.

O formato do livro é projetado para que não tenhamos um volume grosso, o que causaria preguiça ao leitor que ainda não conhece o conteúdo do livro. Portanto, ele tem apenas 96 páginas, com letras grandes. A numeração dos capítulos é dada em numerais arábicos, esses são divididos em três partes. Também no final do livro há um glossário muito rico, cheio de ilustrações que tiram as dúvidas do leitor quanto à mitologia grega, expressões usadas na obra, sobre Homero e sua Ilíada que deu origem a Odisseia, sobre a autora Ruth Rocha e, ainda, há um mapa para que o leitor se localize no espaço que ocorreu as aventuras de Ulisses.

Para Regina Zilberman, a denominação literatura infantil deve ser usada somente para textos que incorporem as características dos contos de fadas: “pertencem legitimamente à modalidade literária em questão preferencialmente aqueles textos que compartilharem as propriedades do conto de fadas, quais sejam: a) a presença do maravilhoso; b) a peculiaridade de apresentar um universo em miniatura13”. No texto de Ruth Rocha podemos distinguir algumas características que provam ser esta obra uma ótima leitura para a criança, tais como, a presença de divindades e seus poderes mágicos, objetos que conferem poder às personagens, a transformação maravilhosa destas e também a presença de seres mitológicos.

Através do levantamento desses processos que caracterizam a literatura infantil, na obra Odisseia de Ruth Rocha, podemos afirmar a preocupação da autora com diminuição da assimetria existente entre o adulto escritor e a criança leitora, já que produz um texto com uma linguagem acessível, direta, cheia de elementos maravilhosos, que devido à farta ilustração e o vocabulário auxiliar, ajuda o leitor a vislumbrar o mundo grego e se identificar com as personagens.

Este texto pode ser apreciado por crianças de diversas idades que gostem de narrativas de aventura, já que o bom trabalho de Rocha contribui para a formação de leitores ativos, que interajam com o texto e consigam dialogar mais tarde, quem sabe, com a obra clássica de Homero, que deu origem a esta adaptação.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ROCHA, Ruth. Odisséia. 3. ed. São Paulo: Companhia das letrinhas, 2000.

ZILBERMAN, Regina. A literatura infantil na escola. 10. ed. São Paulo: Global, 1983.

1 Professora de língua portuguesa e língua espanhola do Instituto Estadual de Educação Ernesto Alves, graduada em Letras/Espanhol (UNISC), Mestre em Letras, leitura e cognição (UNISC). E-mail: iza-cabral@hotmail.com.br. Endereço: Rua Getúlio Vargas, 44, Rio Pardo, RS, cep: 96640-000. Tel: (51) 3731-2122 ou (51) 8111-4412

2 ZILBERMAN, Regina. A literatura infantil na escola. 10. ed. São Paulo: Global, 1983, p. 43.

3 ZILBERMAN, 1983, p. 43.

4 Ibidem, p. 43.

5 ROCHA, Ruth. Odisséia. 3. ed. São Paulo: Companhia das letrinhas, 2000, p.46.

6 ZILBERMAN, 1983, p. 44.

7 ROCHA, 2000, p. 4.

8 Ibidem, p. 5.

9 Ibidem, p. 45.

10 Ibidem, p. 3.

11 Ibidem, p. 15.

12 ZILBERMAN, 1983, p. 44.

13 Ibidem, p. 42.

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