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Morreu feliz!

Aparecida Luzia de Mello*

publicado em 03/05/2010 como www.partes.com.br/terceiraidade/morreufeliz.asp

 

Aparecida Luzia de Mello É Advogada, Mestre em Políticas Sociais, Pós-Graduada em Gestão e Organização do 3º Setor, Psicogerontologia e Memórias.

Dias atrás ela encontrou um amigo, ou melhor, um ex-patrão com quem trabalhou 18 anos.

Ela não tinha o que reclamar daquela época, fora executiva da área comercial e muito respeitada, tivera excelente remuneração e além disto, foi lá que teve o privilégio de conhecer o futuro marido.

Ele falou da falta que ela fez quando saiu. Contou as novidades, os novos rumos, as dificuldades, etc. Foi uma alegria só.

Finalmente, perguntou a ela se por acaso estava realizando seu antigo sonho, afinal tinha sido este sonho que a roubara da empresa.

Sua saída foi para realizar seu sonho maior – dar aulas.

Os filhos cresceram se formaram e ela pode então dar asas ao sonho. A manutenção do lar coube a partir daí, somente ao marido.

Ela contou que estava muito feliz, pois dava aulas para idosos e trabalhava como voluntária em outros dois lugares, um Centro de Convivência onde fazia palestras semanalmente e uma ILPI1, onde promovia festas, encontros e atividades lúdicas para os internos.

Lembrando do pai dele, ela fez a pergunta fatídica,

-: e seu pai, como está?

Ele responde:

-: ah, ele faleceu, mas morreu feliz!

Curiosa, logo quis saber como? Onde? Qual o motivo da felicidade? Enfim sua paixão por idosos a instigava a ouvir mais..

Ele então começa a relatar:

-: meu pai, espanhol, era uma pessoa muito simples, falava alto, reclamava de tudo, resmungava toda hora, trabalhou muito para chegar aonde chegou, era um homem embrutecido pelas dificuldades vividas.

Quando minha mãe faleceu, ele se tornou uma pessoa mais difícil ainda. Aquele velhinho de tamancos não gostava de tomar banho, usava roupas surradas, era um muquirana. Ia ao banco, sacava a aposentadoria e guardava tostão por tostão em casa.

De manhã ia à padaria e pedia pão amanhecido, por ser mais barato ou de graça. Fazia feira às 14 horas, para recolher os restos. Na geladeira sempre tinha comida velha, mesmo quando alguém levava comida nova, ele guardava e comia primeiro a velha, para economizar.

Caminhava por todo o bairro recolhendo latinha, metal, e tudo que pudesse dar algum dinheirinho. Conversava com os vizinhos, dando conselhos sobre economia. Achava que todos gastavam demais, não sabiam valorizar o dinheiro. Brigava com os jovens que ficavam empinando pipa ao invés de trabalhar…

A casa dele virou um verdadeiro depósito de lixo. Toda vez que colocávamos alguém para cuidar dele ou da casa, era uma briga só. Achava que era desperdício, mandava a pessoa embora dizendo que nunca tinha ficado doente e que sabia se cuidar sozinho.

..a própria família tende a ter certas expectativas em relação ao comportamento adequado e esperado para um velhinho. Dessa forma, os familiares podem não incentivar e até punir o comportamento social e a prática de atividades do idoso. (LESBAUPIN e MALERBI, 2006, p. 51).

Aquilo para nossa família era uma vergonha, então certo dia eu o coloquei no carro e disse-lhe que o levaria para conhecer um lugar onde ele ficaria apenas um mês, tempo para que eu desse uma ajeitada no imóvel que carecia de uma reforma urgente, se gostasse moraria lá, caso contrário voltaria para sua casa.

Era uma casa de repouso. Ele contestou, mas eu disse que era apenas uma experiência e se quisesse poderia voltar um mês depois. Muito contra gosto, depois de discutirmos muito, acabou ficando.

Uma semana depois quem visse não reconheceria mais meu pai. Lá ele foi obrigado a tomar banho todos os dias; comer na hora certa o que serviam no cardápio preparado por uma nutricionista; usar chinelos ao invés de tamancos, para não incomodar os outros e por questão de segurança não podia sair às ruas.

Enquanto isto eu mandei limpar a casa. Saíram de lá algumas caçambas de lixo. Logo, uma construtora que já estava interessada no imóvel fez sua proposta de compra, afinal a localização era privilegiada, um lugar estratégico para a construção de mais um prédio. Como tinha procuração dele, negociei o imóvel em troca de dois apartamentos no prédio a ser construído. Tudo foi muito rápido. Depois soube que eles já vinham sondando meu pai, que os punha para correr.

Depois de quinze dias na casa de repouso, contei a ele a novidade. Não disse nada. Uma semana depois o convidei para dar uma volta de carro, passei na frente da casa para ver a reação dele, fingiu que não viu. Quando o mês terminou não pediu para voltar.

Claro, ele não era bobo, se apaixonou pela nova moradia! Aprendeu a tomar banho, comia do bom e do melhor, fez novas amizades, não precisava se preocupar com mais nada! Nem reclamar mais, ele reclamava.

Surpresa com o relato, ela lembrou que, em geral, conhecia situações exatamente ao contrário, visto que o idoso que tem família, no início da internação, costumava apresentar sinais de depressão devido a morte social a que tinha sido submetido.

… a autodesvalorização do idoso decorre de estereótipos negativos construídos pela sociedade….. que julga a velhice uma sobrevida inútil, uma morte social prolongada e dolorida para o indivíduo. (LESBAUPIN e MALERBI, 2006, p. 51).

Esta morte é representada pelo rompimento dos laços que vinculam o idoso ao local onde mora, seus vizinhos, atividades desenvolvidas, perda de autonomia e independência entre outros.

Muitos idosos acabavam morrendo no primeiro ano da mudança, pois lhes era difícil superar estas perdas.

E entusiasmada lhe disse:

-: o Senhor é uma pessoa privilegiada, pois a adaptação de seu pai foi fantástica! Quanto tempo ele ficou lá?

Com ar sem graça, respondeu:

-: três meses! Mas tenho certeza que meu pai estava feliz. Pois quando o médico ligou para informar sobre o óbito, garantiu que na hora do desenlace meu pai trazia um sorriso de felicidade no rosto.

Naquele momento a conversa terminou. De pronto ela lembrou que tinha que buscar o neto, ainda inexistente, na escola e despediu-se apressadamente para, longe, chorar a dor que aquele idoso escondeu!

Bibliografia

LESBAUPIN, Sandra Forjaz. MALERBI, Fani. O idoso por ele mesmo. Revista Kairós, São Paulo, 9(2), dez. 2006, pp. 51-67.

* Advogada, Mestre em Políticas Sociais, Pós-Graduada em Gestão e Organização do 3º Setor, Psicogerontologia e Memórias. Palestrante, professora, dirige o PEEM Ponto de Encontro e Estudo da Maturidade, voluntária da 3ª Idade e Recanto do Idoso Nosso Lar.

Email: cidamell@uol.com.br 

1 Instituição de Longa Permanência para Idosos.

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