Ciência e Tecnologia Socioambiental

Belo Monte no Fantástico: o desaparecimento dos especial

No dia 16 de abril, quatro dias antes do fictício leilão da hidrelétrica de Belo Monte, um produtor do Fantástico telefonou-me, marcando uma entrevista com a repórter Sônia Bridi para a semana seguinte. Assim, recebemos no feriado de Tiradentes a equipe do programa na Faculdade de Ciências Biológicas da UFPA, em Altamira, e gravamos à beira do rio Xingu. Temos aqui três representantes do Painel de Especialistas, que é um grupo de 40 cientistas de renomadas instituições de pesquisa (USP, UNICAMP, ITA, UNB, UFRJ, UFPA, UFPE, UFSC, INPA e Museu Goeldi, dentre outras) responsável pela leitura crítica do Estudo de Impacto Ambiental de Belo Monte, que atestou sua inviabilidade. Eu e o professor Hermes de Medeiros da Faculdade de Biologia esforçamo-nos ao máximo para falar à jornalista sobre os vários aspectos desta possível tragédia: as mentiras segundo as quais se trata de uma “energia limpa”; que produziria muita energia; que é viável economicamente; e que não destruiria o Xingu ou a Amazônia.

 

Perguntado sobre o que Belo Monte precisaria para ser viável, respondi que um projeto de barrar o Xingu seria desastroso sob quaisquer circunstâncias e que esta obra, se levada a cabo, poderia resultar na destruição de metade da floresta Amazônica, num efeito dominó marcado pela profunda intensificação da força de todos os principais agentes de desmatamentos: a pecuária, os madeireiros, as invasões de florestas públicas e de terras indígenas etc. A jornalista nos adiantou que não haveria muito tempo disponível para nós na matéria que iria ao ar, que conseguira apenas cinco minutos para tratar do assunto e que ainda entrevistaria um representante do Consórcio Belo Monte, organização local que defende a construção da usina.

 

No domingo 25 de abril, o Fantástico, para minha decepção, além de não incluir na edição da reportagem nem uma frase nossa, com a exceção das falas dos índios, deu todo o espaço para a manifestação dos defensores da obra. E, pior, deixou truncada a única e isolada frase em referência ao Painel de Especialistas, possivelmente criando uma confusão para o telespectador médio e não sintonizado com a guerra que se trava em torno desta obra. Neste trecho, o responsável pelo projeto, Maurício Tolmasquim, garante “uma vazão que seja condizente com a manutenção da piscicultura, a manutenção da navegação, com a manutenção da vida das comunidades que vivem do rio”.

 

Trata-se de uma mentira. Mais uma da infindável série de mentiras disparadas sem constrangimento pelos proponentes da obra (tal como a maior de todas, de Lula, que afirmou em 22 de julho de 2009 durante reunião com importantes personalidades contrárias à obra, incluindo Dom Erwin, o bispo do Xingu, que Belo Monte não nos seria “empurrada goela abaixo”). Basta recordar as conclusões emitidas pela própria equipe de Licenciamento Ambiental do IBAMA, sobre a análise técnica do Estudo de Impacto Ambiental de Belo Monte:

 

“Ressalta-se que, tendo em vista o prazo estipulado pela presidência, esta equipe não concluiu sua análise a contento. Algumas questões não puderam ser analisadas na profundidade apropriada, dentre elas as questões indígenas e as contribuições das audiências públicas. O estudo sobre o hidrograma de consenso não apresenta informações que concluam acerca da manutenção da biodiversidade, a navegabilidade e as condições de vida das populações do trecho de vazão reduzida (que ocuparia grande parte da Volta Grande do Xingu, que teria a maior parte de seu fluxo de água desviado por canais colossais conduzindo-o às turbinas da hidrelétrica). A incerteza sobre o nível de estresse causado pela alternância de vazões não permite inferir a manutenção das espécies, principalmente as de importância sócio-econômica, a médio e longo prazo. Os impactos decorrentes do afluxo populacional não foram dimensionados a contento. Conseqüentemente, as medidas apresentadas, referentes à preparação da região para receber esse afluxo, não são suficientes e não definem claramente o papel dos agentes responsáveis por sua implementação. Há um grau de incerteza elevado acerca do prognóstico da qualidade da água, principalmente no reservatório dos canais”, lê-se em trechos do documento.

 

O pior é que a edição do Fantástico, refere-se rapidamente ao Painel de Especialistas sem explicar do que se trata nem citar os problemas para os quais alertamos, talvez por tê-lo eliminado de última hora: “O risco de destruição foi apontado por um painel de 40 cientistas”. Esta é uma afirmação forte, que pede algum detalhamento maior, além da imagem de algum desses cientistas. Afinal, temos representantes nossos e de praticamente todas as grandes universidades brasileiras! Mas ao invés disso o vídeo passa rapidamente à declaração enganosa de Maurício Tolmasquim. Assim, pode ter dado a impressão, ao telespectador desinformado (aquele que no começo da matéria perguntava se Belo Monte é um bar ou “alguma coisa ligada à moda”) que o engenheiro do governo é o representante da equipe de pesquisadores que cientificamente condena o projeto!

 

Em outro trecho da reportagem dizem: “Os Araras vivem bem na curva da Volta Grande do Xingu, esse pedaço do rio que vai ter a vazão controlada. Depois de construída a represa, o Xingu não vai ter nem cheia, nem seca. Vai correr sempre no mesmo nível. O que os Araras temem é que o rio seque, a água fique quente demais e mate os peixes, que são a fonte da vida na aldeia”. Na verdade, o mais grave não é tanto que quase 100 km do rio Xingu não teriam mais o ciclo de cheias e secas, mas que todo este trecho teria sua vazão extremamente reduzida. A vazão até poderia ser controlada sim (algo que nem poderíamos ter garantia, dada a seqüência infindável de mentiras acerca desta obra), mas em um nível extremamente baixo. E não são só os índios que temem que “a água fique quente demais e mate os peixes”. Quem afirma que isso aconteceria, se essa obra for levada adiante, são os pesquisadores. Que acrescentam também que as poças criadas no trecho de rio seco serão focos para a proliferação de pragas e doenças.

 

Apesar de quase toda a grande imprensa dar a construção da barragem como certa, não gostei do começo, quando, do alto da ilha Pimental, Sônia Bridi disse: “A barragem da usina de Belo Monte vai passar exatamente aqui”. Eu preferia algo como “é aqui que pretendem construir…”, pois não há nada de definitivo sobre Belo Monte, ainda mais por se tratar de um projeto caro, antieconômico, destrutivo, conduzido com base na infração de diversas leis e no controle do Executivo sobre o Judiciário.

 

Além do mais, teremos as eleições presidenciais e, com relação ao leilão de Belo Monte, José Serra comentou: “Neste processo, houve tanta complicação ambiental e tanta falta de transparência que a gente sabe que vai haver problema. Dizia-se que era o capital privado, e a gente está vendo agora que é o governo. É uma coisa muito cara para você fazer de maneira atropelada”. Pra piorar, o governo entra com todo o financiamento, todo o risco, mas não terá nada do controle, nem da gestão, pois as empresas estatais participantes têm ligeiramente menos que 50% de participação na usina.

 

Sobre a sua visita à aldeia dos índios Xicrin do Bacajá (um ramo dos Kayapó), a jornalista observou que eles fazem “a dança da guerra, mas o ânimo que encontramos não foi o de guerreiros prontos para a batalha e sim o de um povo com medo e sem saber o que esperar do futuro”. Quando ela me falou a mesma pessoalmente, disse-lhe que são os Kayapó do Alto Xingu, que são mais poderosos, numerosos e organizados que os Xicrin, que teriam mais condições de segurar essa barra e salvar o nosso país desta obra desastrosa. Até porque têm até mais experiência, já que em 1989 barraram a construção da mesma usina, então chamada Kararaô.

 

Ao longo da semana subseqüente, foi publicada, apenas no site do Fantástico na Internet, uma reportagem com parte do vídeo que fizemos (Especialista diz que destruição da Bacia do Xingu terá consequências no planeta). Sobre esta matéria complementar, que em parte corrige o estrago (apesar da audiência do site ser incomparavelmente menor que a do programa de TV), cabe também uma observação. Ao seu final, o apresentador Zeca Camargo concluí: “No Fantástico, o responsável pelo projeto tranquilizou a população da volta grande do Xingu, mas a discussão continua”.

 

Sim, a discussão continua, talvez não tanto no Fantástico, que tem quase todo o seu tempo voltado para assuntos “mais importantes”. Mas a população da Volta Grande do Xingu não ficou nem um mililitro mais tranquila, porque tem pavor da ideia de seu rio, sagrado, magnífico, secar. E não é boba nem desinformada, portanto, não se engana com a conversa mentirosa e já conhecida do presidente da Empresa de Pesquisa Energética.

 

Em favor do Fantástico, podemos dizer o programa conseguiu fazer em parte o que somos incapazes de fazer: colocar para a população, como um todo, o outro lado, os índios e as comunidades. Um programa popular, falando de seus medos, do impacto da usina em suas vidas. Toda a situação em torno de Belo Monte é tão absurda que mesmo uma reportagem falha ainda assim termina servindo-nos bastante.

 

Rodolfo Salm, PhD em Ciências Ambientais pela Universidade de East Anglia, é professor da Universidade Federal do Pará.

 

Escrito por Rodolfo Salm    em CORREIO DA CIDADANIA

14-Mai-2010

 

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