história

A autobiografia como fonte para a história

Gelise Cristine Ponce Martins1

publicado em 02/08/2010

www.partes.com.br/politica/aautobiografia.asp

 

Gelise Cristine Ponce Martins é licenciada em História pela Universidade Estadual de Maringá, pós-graduanda em História e Humanidades, pela mesma universidade. Contato: gelise.ponce@yahoo.com.br

Resumo: No presente artigo, convencionou-se eleger um aspecto da memória individual: o relato autobiográfico escrito. E discutir as concepções teóricas que embasam a utilização desta fonte para a realização da pesquisa no âmbito da disciplina histórica.

Palavras-chave: Teoria da História, Fontes históricas, Memória, Autobiografia.

Resumen: En el presente artículo, fue elegido un aspecto de la memoria individual: el informe autobiográfico escrito. Se vá a discutir las concepciones teóricas que sostenen el uso de esta fuente para lograr la búsqueda de la disciplina Historia. 

Palabras-llave: Teoría de la Historia, Fuentes historicas, Memoria, Autobiografía.

Para justificar a relevância da autobiografia como fonte para a história é preciso lembrar que, a memória individual não está inteiramente isolada, fechada. Para evocar seu próprio passado, um homem tem a necessidade de apelar às lembranças dos outros, a pontos de referências que existem fora dele, na sociedade. A memória autobiográfica se apoia na memória social, pois toda a história de vida faz parte de uma história geral (HALBWACHS, 2004).

Logo, os elementos constitutivos da memória, individual ou coletiva são, em primeiro lugar, os acontecimentos vividos pessoalmente e, em segundo lugar, os “vividos por tabela”, ou seja, pelo grupo e pela coletividade à qual a pessoa se sente pertencer. A identificação com este passado é tão forte que podemos falar numa memória quase que herdada (POLLAK, 1992).

Em suma, ela constitui um elemento essencial de identidade, da percepção de si e dos outros (ROUSSO, 2001). Para Paul Ricour, a memória é mais do que simples objeto da história, pois, permanece como a guardiã de algo que efetivamente ocorreu e aproxima-se da História pela sua “ambição de veracidade” (apud SILVA, 2002).

Portanto, não existe lembrança decorrente da imaginação pura e simples, ou de uma representação histórica exterior. As lembranças dos outros reforçam e completam a do indivíduo, na medida em que se relacionam com os eventos que constituem seu passado. Pois cada um é membro de vários grupos ao mesmo tempo, maiores e menores (HALBWACHS, 2004).

Assim sendo, a memória pessoal transforma-se em fonte histórica, justamente porque o indivíduo está impregnado de elementos que ultrapassam os limites de seu próprio corpo e que dizem respeito aos conteúdos comuns dos grupos ao qual pertence ou pertenceu. Neste sentido, um texto de memória autobiográfica é forma singular mais acabada de uma memória coletiva (MALUF, 1995).

A história pertence, sobretudo, àqueles que a viveram e cabe ao historiador exumá-la e torná-la inteligível a seus contemporâneos. Um indivíduo quer fale espontaneamente de seu passado e de sua experiência (publicando, por exemplo, suas memórias), quer seja interrogado por um historiador, não falará senão, do presente. Com as palavras de hoje, com sua sensibilidade do momento, tendo em mente tudo quanto possa saber sobre esse passado que pretende recuperar com sinceridade e veracidade (ROUSSO, 2001).

É relevante ouvir as testemunhas dos processos, pois a história passa a mostrar cada vez com mais frequência, não a vida dos heróis e das figuras públicas, mas a do homem comum (BORGES, 2004). A história cultural, a partir dos anos 1970, passa a recuperar a importância das experiências vividas, remetendo aos usos de novas fontes e metodologias históricas (SANTOS, 2005).

Quais são os limites impostos pela utilização da autobiografia como fonte? Autobiografia é ficção ou documento? O que leva alguém a se autobiografar? Por que julga relevante seu próprio testemunho sobre o momento social que viveu? De acordo com Calligaris (1998), diários íntimos e autobiografias respondem a necessidade de confissão, justificação ou de invenção de um novo sentido. Onde o indivíduo concebe sua vida não como uma confirmação de regras e dos legados da tradição, mas como uma aventura para ser inventada.

Para Aguiar (1997), a autobiografia é reconstrução do passado a partir da perspectiva de alguém que considera sua história digna de registro e nunca olha para o ontem de modo descompromissado. Quem redige situa-se no presente e refere-se ao passado evocando, avaliando e analisando o que viveu. Segundo Otávio Ianni, ninguém escreve memória para falar mal de si mesmo (CUNHA, 2009). Bourdieu (2001) nos fala da “ilusão biográfica”, onde o indivíduo sempre incorpora um sentido à sua trajetória, como se tudo já levasse a um fim predeterminado.

A autobiografia é, de acordo com Queiroz (1991), enquadrada na categoria de história de vida, cuja única intermediação está no registro escrito. Assim sendo, não podemos esquecer que, quando lemos narrativas de memórias, não lemos a própria memória, mas suas transformações através da escrita (BURKE, 2000). Assim sendo, segundo Ricoeur, cabe à história, em razão mesmo de sua função crítica, remediar e corrigir, as fragilidades e os abusos da memória (apud SILVA, 2002).

Os historiadores têm de estudar a memória como uma fonte histórica, elaborar uma crítica da confiabilidade da reminiscência, no teor da crítica tradicional dos documentos históricos (BURKE, 2000). Pois, até a mais subjetiva das fontes, tais como uma história de vida individual, podem sofrer uma crítica, por cruzamento de informações obtidas a partir de fontes diferentes (POLLAK, 1992). Embora toda fonte histórica derivada da percepção humana seja subjetiva (THOMPSON, 1992).

No campo da história da memória, a função da testemunha não tem por que ser diferente daquela que lhe é atribuída na historiografia em geral, cabendo ter com ela as mesmas precauções (ROUSSO, 2001). Sendo indispensável reconstruir o contexto em que age o indivíduo (LEVI, 2001). Pois, a leitura de uma história de vida não é uma tarefa simples, necessita como ponto de partida, a delimitação de um problema de pesquisa, para que ofereça elementos necessários para a construção do contexto social ao qual se refere (SANTOS, 2005).

Considerando o fato de que, tanto a memória individual, como a memória social, é seletiva, precisamos identificar os princípios de seleção e observar como eles variam de lugar para lugar, de um grupo para outro, e como mudam com o passar do tempo. As memórias são maleáveis e é necessário compreender como são concretizadas e por quem, assim como os limites desta maleabilidade (BURKE, 2000).

Lembrar o passado e escrever sobre ele, não parecem mais atividades tão inocentes que outrora se julgava que fossem. Tanto a memória, quanto a história revelam-se cada vez mais problemáticas, nem uma, nem outra parecem ser mais objetivas. Nos dois casos, os historiadores devem levar em conta a seleção consciente ou inconsciente, a interpretação e a distorção condicionadas por grupos sociais (BURKE, 2000).

Os críticos da memória colocam-na como não confiável como fonte histórica, alegando ser distorcida pela deterioração física e nostalgia da velhice (THOMPSON; FRISCH; HAMILTON, 2001). Por outro lado, Bosi (1994), em seu estudo sobre memórias de velhos, entrevistando pessoas maiores de 70 anos, demonstrou que, nas lembranças de idosos, é possível verificar uma história social bem desenvolvida.

Quando os idosos deixam de serem membros ativos na sociedade, assumem a função própria de lembrar. E sua memória pessoal passa a ser uma memória social, familiar e grupal. Bosi (1994) afirma que, a autobiografia, a narração da própria vida, constitui-se no testemunho mais eloquente dos modos que a pessoas tem de lembrar.

A memória é a estrutura mais ampla e abrangente, é o próprio cimento vida cotidiana. É, ao mesmo tempo, uma habilidade natural e uma construção social, uma atividade, um trabalho que dá sentido ao palco da vida. A memória, individual ou coletiva, não é um repositório passivo, mas ativo, atuante, um imenso produto cultural. Memória é o vínculo, material ou ideal, entre passado e presente que permite manter as identidades a despeito do fluxo do tempo, que permite somar os dias de modo significativo. É essencial tanto para indivíduos como para a sociedade ou para grupos dentro dela (GUARINELLO, 2004).

O relato autobiográfico pode ser enriquecido mediante entrevistas a pessoas próximas do protagonista (NARANJO OROVIO; GONZÁLES MARTÍNEZ, 1984). Sinteticamente, história oral é um termo amplo que recobre uma quantidade de relatos a respeito de fatos não registrados por outro tipo de documentação, ou cuja documentação se quer completar. Colhida por meio de entrevistas de variada forma, registra a experiência de um só indivíduo ou de diversos indivíduos de uma mesma coletividade. Neste último caso, busca-se convergência de relatos sobre um mesmo acontecimento ou sobre um período de tempo (QUEIROZ, 1991).

A entrevista é a forma mais difundida da coleta de dados orais, supõe uma conversação continuada entre informante e pesquisador, este último que a dirige, através de um roteiro previamente estabelecido ou aparentemente sem roteiro, mas conforme uma sistematização. Elas fornecem dados originais ou completam os já fornecidos por outras fontes (QUEIROZ, 1991).

Concordamos com Pollak (1992), no sentido de que, quer os historiadores trabalhem com escritos biográficos ou com relatos, o importante é como eles trabalham, e não com o que. Pois, a história de vida apareceu como um instrumento privilegiado para avaliar os momentos de mudança, de transformação.

 

Bibliografia

BORGES, Vavy Pacheco. Desafios da memória e da biografia: Gabrielle Brunesieler, uma vida (1874-1940). In: BRESCIANI, Maria Stella; NAXARA, Marcia. Memória e (res)sentimento: indagações sobre uma questão sensível. Campinas: Unicamp, 2004.

BOSI, Ecléa. Memória e sociedade. Lembranças de velhos. São Paulo: Cia das Letras, 1994.

BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta M. (coord). Usos e abusos da História Oral. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 2001.

BURKE, Peter. História como memória social. In: Variedades de história cultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

CALLIGARIS, Contardo. Verdades de autobiografias e diários íntimos. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, n. 21, 1998/1.

GONZÁLES MARTINEZ, Elda Evangelina; NARANJO OROVIO, Consuelo. Notas bibliográficas sobre la emigración española a América Latina em el siglo XX: El caso de Cuba y Brasil. Revista Española de Investigaciones Sociologicas, C.I.S/REIS, n. 26, p.215-226, abril/junio, 1984.

GUARINELLO, Norberto Luiz. História científica, história contemporânea e história cotidiana. Revista Brasileira de História, v. 24, nº. 48, p. 13-38, dezembro, 2004

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2004.

LEVI, Giovanni. Usos da biografia. In: AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta M. (coord). Usos e abusos da História Oral. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 2001.

MALUF, Marina. Ruídos da Memória. São Paulo: Siciliano, 1995.

POLLAK, Michael. Memória e identidade social. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, p. 200-212, 1992.

QUEIROZ, Maria I. Pereira de. Introdução. Relatos orais: do “indizível” ao “dizível”. In: Variações sobre a técnica do gravador no registro da informação viva. São Paulo: T.A. Queiroz, 1991.

ROUSSO, Henry. A memória não é mais o que era. In: AMADO, Janaína; SANTOS, Antonio Cesar de Almeida. Fontes orais: testemunhos, trajetórias de vida e história. Curitiba: DAP, 2005 (texto para discussão).

SILVA, Helenice Rodrigues da. “Rememoração”/comemoração: as utilizações sociais da memória. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 22, n. 44, p.425-438, 2002.

THOMPSON, Alistair; FRISCH, Michael; HAMILTON, Paula. Os debates sobre memória e história: alguns aspectos internacionais. In: AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta M. (coord). Usos e abusos da História Oral. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 2001.

THOMPSON, Paul. A memória e o eu. In: A voz do passado: história oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

1 Graduada em História pela Universidade Estadual de Maringá. Pós-graduanda em História e Humanidades pela mesma universidade.

Como citar este artigo:

PONCE, Gelise. A autobiografia como fonte para a história. Revista P@rtes (São Paulo). V.00. P.eletrônica. Agosto de 2010. Disponível em <>

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