Contos Cultura

Barata

Ronie Von Rosa Martins

publicado em 02/08/2010

www.partes.com.br/contos/barata.asp

Ronie Von Rosa Martins é professor da rede pública municipal e estadual das cidades de Pedro Osório e Cerrito no Rio Grande do sul. Tem Pós-graduação em Literatura Contemporânea Brasileira – UFPEL e em Linguagens Verbais, Visuais e suas Tecnologias pelo IFSUL – ronieev@gmail.com

Não. Não era Gregor. Mas era imenso. E era uma barata. E sendo o que era rastejava. Movimento silencioso-furtivo. Era o que era. E ponto. Barata. E estava no lixo. Todos não estavam? Todos não eram baratas? Não eram?
E empanturrava-se de tudo. A fome intensa. Pretensa forma da fome. Saciar. Saciar os espaços todos do corpo, do desejo, do prazer. Saciar.
A alimentação. Devorava o senso-comum. Todinho. Era o próprio. Não se é o que se come? Pois este era ele. Máquina veloz e rastejante de ser habitado e habitar o bom-senso, o consenso… corpo apropriado. Antenas compridas, sensação, cheiro, paladar… a imagem. Consumia a imagem mesma, sempre e todo o dia. Podia voar. Mas não gostava, preferia rastejar no senso. Comum a todos. Marcas, ideias, opiniões, doxa. Adorava. Adorava encher o corpo e o ser de restos. Do resto de tudo e todos. Comia. Fartava-se nos lugares comuns, nas ilusões do sujeito, nas crenças da imaginação. Devorava crenças e mitos e acreditava. Sempre acreditava. Não sabia em que. Mas isso não importava.
Os discursos de poder tinham um sabor refinado. Comia com singular prazer. De olhos fechados. Degustando cada pedacinho. Salivando o gozo da doutrina, da subserviência. Tradição e moral. Lambia até os beiços. Era o que gostava. E mesmo assim não sabia o motivo. O gosto. Porque gostava mais disto e não daquilo? Nunca entendera claramente como se dava a obtenção do gosto e seus processos de composição. Mas era barata… Grande barata. Imensa. Já os livros… não. Secos demais. Espessos além da medida. Insípidos.
Preferia os doces programas de domingo. Tranquilidade, passividade. Docilidade. Fantásticos docinhos que saciavam seu prazer. Prazer?
Pelas paredes a opção dos ângulos, das distancias. As visões variadas-alteráveis inusitadas, mas o olho era o chão. Apenas. Pena. Restrição da opção. Opacidade visual. Restrição sensorial. E podia tanto.
Mas não queria. Ou achava que não queria. Vai saber? Era barata. Como ia saber se queria ou não. Livre arbítrio? Ainda não se alimentara de Schopenhauer. Os clássicos eram os piores. Duros para uma mastigação rápida. Degustação imediata. Fast food.
Mas não havia solidão. Havia sim a algazarra. Varias e tantas outras. Roliças e felizes. Iguais e mesmas. Eco. Reflexo. Tantas quantas fossem possíveis ser produzidas. Reproduzidas, conduzidas, definidas. O lixo é fome e come. O lixo é carne e forma. Outro e mesmo rosto-roto, turvo-parvo.
A morte. O fim. Imenso em sua crença não viu, não olhou nem se importou. Enorme sola sob grande pé dos céus a buscou. O corpo. Em uníssono movimento e som interrompeu.

 

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