Educação Educação Educação Inclusiva

A centralidade e a conveniência da cultura nas práticas de organização da comunidade e da escola de surdos

Liane Camattii

 

publicado em 02/08/2011 como www.partes.com.br/educacao/centralidade.asp

 

Resumo

Liane Camatti é graduada em Educação Especial e Mestre em Educação pela Universidade Federal de Santa Maria – RS. Docente do Instituto Federal Farroupilha/Campus Alegrete – RS. E-mail lianecamatti@yahoo.com.br

O trabalho que segue se constitui a partir de uma proposta investigativa que tem por objetivo central analisar as formas pelas quais a comunidade surda pode se relacionar com o espaço escolar. Com isso, emerge um panorama no qual as práticas disciplinares da escola são revistas, alteradas e condicionadas pela aproximação com a comunidade surda. Esta, por sua vez, também apresenta contornos bastante peculiares, irrompendo como um espaço que tem na renitência dos discursos acerca da cultura, sua principal arma de resistência.

Palavras-chave: cultura, diferença, escola e comunidade surda.

Abstract

The work that goes on is from a research proposal that aims at examining the ways in which the deaf community can relate to the school environment. A picture emerges in which the school’s disciplinary practices are reviewed, modified and conditioned by the approach to the deaf community. This, in turn, also has very peculiar forms, breaking into a space that is the reluctance of discourses about culture, its main weapon of resistance.

Keywords: culture, difference, school and the deaf community.

O texto que aqui segue tem por objetivo central analisar as diferentes formas pelas quais a comunidade surda pode se relacionar com o espaço escolar. Pretendo observar de que maneira a escola vem se constituindo enquanto espaço de disciplinamento, do circuito da cultura, de instituições de significados. A escola para surdos é, muitas vezes, o único lugar de comunicação. Pode-se inferir, com isso, que ela tenha alguns papéis que a diferem de escolas regulares. Com isso, faz-se necessário tentar compreender como as práticas disciplinares da escola são revistas, alteradas e condicionadas pela aproximação com a comunidade surda. O que proponho, então, é analisar de que maneira a escola de surdos está sendo produzida e que local ela está ocupando quando a comunidade surda se encontra, se relaciona ou, até mesmo, se aloca no espaço escolar. Dentre o universo de elementos que atravessam ou tangenciam a proposta principal deste texto, elejo para desenvolver aqui temas concernentes à instituição escolar, à cultura e à comunidade.

O capítulo introdutório do livro Comunidade de Zygmunt Bauman (2003), localiza a comunidade como um território inquestionável, seguro, positivo, confortável e aconchegante. Feitas as devidas adjetivações iniciais deste espaço, não é difícil compreender que os grupos humanos, em busca desta segurança oferecida pela comunidade, busquem-na. Desta forma, a comunidade é vivida por sujeitos que compartilham características que lhes façam buscar este espaço comum. Neste contexto, também é fácil compreender a busca dos sujeitos surdos pela busca e pelo acolhimento na comunidade minoritária, no grupo que os protege, que lhes proporciona segurança, confiabilidade e acolhimento. Despertados tais sentimentos, a comunidade funciona como uma mola propulsora, que incute em seus membros uma mobilização em busca de um pretenso mesmo, já que numa comunidade, “nunca somos estranhos entre nós” (BAUMAN, 2003, p. 8).

Seguindo com o empréstimo que faço da obra de Bauman, a comunidade, tão sonhada e almejada, se põe aos sujeitos como um paraíso perdido, dada a impossibilidade de alcançar em última instância todos os elementos que ela carrega consigo em sua idealizada “essência”. A partir deste panorama e retomando o espaço da comunidade surda, podemos nos perguntar: existe uma referência que pauta a organização da comunidade? Não seria este paraíso impossível de ser alcançado e de ser vivido que norteia o grupamento dos sujeitos surdos nesta comunidade? Não estaríamos, na verdade, falando apenas do desejo de segurança e de fortalecimento que é conseguido unicamente na soma entre o eu e o outro mesmo? Tais questionamentos tomam maior pertinência ao considerar que a formação identitária, na verdade, passa, antes de mais nada pelo fato de a comunidade segura, confortável, intolerante ao que lhe externa, não é alcançável. Neste sentido, as identidades aparecem com certa força, buscando identidades mesmas que compartilhem justamente das mesmas fragilidades; justificando, assim, a busca da coletividade como proteção contra incertezas individualmente enfrentadas.

A contemporaneidade constitui-se em um período fortemente marcado pelo desvanecimento das fronteiras que outrora marcava com certa segurança os limites das relações e o lugar que deveria ser ocupado pelas coisas. Uma sociedade já marcada por um ordenamento que, apesar de contingente, tinha sua eficácia marcada pela solidez, hoje, tem um ordenamento que se mostra ainda mais abrangente e eficaz, no entanto, assumiu um caráter sutil, deslizante por entre os limites movediços, fugidios, incapturáveis. Neste sentido, tentar entender o pertencimento à comunidade surda, afirmar que o sujeito está nela, significa dizer que não está fora. E isto implica em condutas apropriadas e aceitáveis no âmbito comunitário, o que garantiria a não travessia da barreira, da cartografia traçada no delineamento do território comunitário. A mesmidade comunitária é buscada em detrimento ao eu, ou seja, há um apagamento da identidade una em favor da busca pela identidade do grupo.

Esta busca pelo grupo passa inevitavelmente por um entendimento entre os membros da comunidade. No entanto, existe a necessidade de compreender o caráter não-natural deste entendimento comum. São acordos forjados, barganhados negociados e praticados até o momento em que são subjetivados pelos elementos da comunidade e passam a assumir ares de naturalidade, não mais sendo questionados ou, sobretudo, impugnados. A partir desta análise, poder-se-ia traçar uma gama de “entendimentos” que dão sustentação à comunidade surda. No entanto, não pretendo me ocupar disto, pretendo sim, trazer, neste contexto, a cultura surda como reguladora de ações e como base para que este entendimento comum que possibilita o entendimento comunitário funcione e faça com que a comunidade surda opere como o espaço no qual “vale a pena” abdicar da sua identidade em favor da identidade do grupo que fornece segurança e acolhimento.

Não haveria como desagregar a construção da identidade da cena cultural. A identidade é constituída a partir das tramas culturais discursivas. A cultura pode ser tomada como “constitutiva da vida social, ao invés de uma variável dependente” (HALL, 1997, p. 27). Isto faz parte da tomada da cultura como um conjunto de significados compartilhados, que dá o tom a toda e qualquer ação social não instintiva dos sujeitos e que é através dela que estes regulam suas condutas em relação a si e em relação aos outros.

Veiga-Neto (2004, p.40 e 2006, p.308), propõe que a cultura também, historicamente, é fator de ordenamento, de classificação, de agrupamento de grupos sociais. Isto ocorre a partir do momento em que cada grupo significa com mais ou menos relevância determinados artefatos. Significações estas produzidas na ambivalência da linguagem, que embasa o movimento de tensão entre as culturas, dando sustentação para o processo de ordenamento da sociedade e aproximando, definitivamente, a cultura das relações de poder.

A cultura, neste cenário, se posiciona centralmente nas relações entre os sujeitos, tendo esta, caráter central no cenário da escola e da comunidade surda. Talvez isto aconteça até pelo espaço geográfico ocupado por essa comunidade que é configurado por uma aterritoriedade que funciona como um catalisador de confusão e dissolvimento dos limites entre os outros e os mesmos que, por sua vez, se apegam e se congregam em torno de uma famigerada cultura.

Por fim, aponto o espaço da escola de surdos como local que agrupa e, muitas vezes concentra a comunidade surda. É prioritariamente neste espaço que a aproximação entre os sujeitos surdos vem acontecendo. Esta articulação da comunidade com a escola acaba dando contornos muito peculiares a ela, deixando-a marcada por elementos da cultura e da comunidade. Neste panorama, é indispensável partir do entendimento de que a instituição escolar tem caráter adventício. Julia Varela e Alvarez-Uria (1992 apud ROCHA, 2004, p. 122) apontam questões inerentes ao aparecimento escolar, como o nascimento da infância, a constituição de um espaço específico destinado à educação, o aparecimento de um corpo de especialistas, a destruição de outros modos de educação, a institucionalização da escola com seus códigos e obrigatoriedades. Todos estes aspectos apontam diretamente para o caráter adventício da escola. Desta forma, a escola de surdos não pode ser dissociada da racionalidade que atravessa historicamente o surgimento e sustentação da instituição escolar.

Comunidade surda, cultura surda, escola de surdos… três elementos constituídos na contingência histórica a partir de condições de possibilidade de aparecimento de regimes de verdade que constituem esta cena na contemporaneidade. Neste contexto, não há como não evidenciar o caráter forjado das significações que entoam a cultura surda, a pedagogia surda, a escola de surdos, a comunidade surda e a identidade dos sujeitos que se prendem a cada um destes elementos para se fortalecer, se assegurar e resistir constantemente às práticas de normalização.

REFERÊNCIAS

BAUMAN, Z. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

HALL, S. A centralidade da cultura: notas sobre as revoluções culturais do nosso tempo. In: Educação e Realidade, Porto Alegre, v. 22, nº 2, jul/dez., 1997, p.15-46.

ROCHA, Cristiane Famer. O espaço escolar em revista. In: COSTA, Marisa V. Estudos Culturais em educação: mídia, arquitetura, brinquedo, biologia, literatura e cinema. Porto Alegre: Ed.UFRGS, 2004. p.117-142.

VEIGA-NETO, A. Cultura e Natureza; cultura e civilização: precauções quase metodológicas. IN: SOMMER, L.H., BUJES, M.I.E. (orgs). Educação e cultura contemporânea: articulações, provocações e transgressões em novas paisagens. Canoas: Editora da Ulbra, 2006. p. 305-315.

VEIGA-NETO, A. Michel Foucault e os Estudos Culturais. In: COSTA, M.V. Estudos Culturais em educação: mídia, arquitetura, brinquedo, biologia, literatura e cinema. Porto Alegre: Ed.UFRGS, 2004. p. 37-72.

i Graduada em Educação Especial e Mestre em Educação pela Universidade Federal de Santa Maria – RS. Docente do Instituto Federal Farroupilha/Campus Alegrete – RS. E-mail lianecamatti@yahoo.com.br

 

 

Como citar este artigo:

CAMATTI, Liane. A centralidade e a conveniência da cultura nas práticas de organização da comunidade e da escola de surdos. P@rtes, São Paulo, Agosto, 2011. Disponível em <xxxx>. Acesso em xx/xx/xxxx.

Deixe um comentário