Cultura teatro

A performatividade do feminino em Toda Nudez Será Castigada

A performatividade do feminino em Toda Nudez Será Castigada[1]

Cleber Braga*

Resumo

Este artigo tem como objetivo realizar uma análise da performatividade de gênero presente nas personagens femininas da peça Toda Nudez Será Castigada, de Nelson Rodrigues. Considera-se, para isto, as definições de performatividade e performatividade de gênero. Por meio das análises de passagens da obra em questão buscou-se compreender como esta construção se coloca no projeto estético do autor carioca.

Palavras-Chave: Performatividade, Performatividade de Gênero, Nelson Rodrigues, Teatro Brasileiro

Resumen

Este artículo tiene como objectivo hacer un análisis de la performatividad de género de los personajes femeninos de la obra Toda Nudez Será Castigada, de Nelson Rodrigues. Hay que tener em cuenta, para esto, las definiciones de performatividad y de performatividad de género. Con el análisis de la obra, se buscó comprender como esto se construye en el proyecto del autor carioca.

Palabras-Llaves : Performatividad; Performatividad de Género, Nelson Rodrigues, Teatro Brasileño.

Ao apresentar em seus textos dramáticos a potência das paixões humanas, a despeito das convenções sociais ou moralismos vigentes, Nelson Rodrigues, autor emblemático do que podemos considerar como teatro moderno brasileiro, fez mais do que representar a transgressão através de suas personagens. Ele próprio transgrediu ao não oferecer uma obra em sintonia com anseios da classe média carioca contemporânea às montagens de suas peças, habituada às encenações polidas, com linguagem rebuscada, de autores (sobretudo europeus) traduzidos ao português. Este “teatro desagradável”, na definição do próprio autor, chegou mesmo a configurar uma espécie de dever, do qual Nelson fez questão de não de se omitir. Em suas palavras:

Peçam tudo, menos que eu renuncie às atrocidades habituais dos meus dramas. Considero legítimo unir elementos atrozes, fétidos, hediondos ou o que seja, numa composição estética. Qualquer um pode, tranquilamente, extrair poesia de coisas aparentemente contra-indicadas. Isso é tão óbvio, que me envergonho de repeti-lo. E continuarei trabalhando com monstros. Digo monstros, no sentido de que superam ou violam a moral prática e cotidiana (RODRIGUES, 2004, p. 278).

Em suas criações, por vezes, as personagens agem de forma surpreendente para o leitor. Fogem ao que pode ser considerado como normal pelo senso comum, lançando-se em escolhas imprevisíveis e arriscadas. Rompem, assim, com determinados estereótipos de comportamento, estabelecendo o que pode ser compreendido como uma performatividade. Mostaço (2009) atribui a Richard Schechner a primeira organização e difusão dos estudos performáticos. Amparado em Schechner, o autor nos fala de performances enquanto comportamentos restaurados, ações que as pessoas treinam ou buscam. Para o autor:

Nesse âmbito, o comportamento restaurado remete aos inúmeros “eus” que cada um alberga dentro de si, com distintas funções, como age em diferentes situações ou diante de momentos qualificados, dando respostas às ações provenientes da vida; seja nas condições íntimas, domésticas ou coletivas. Ou seja, há a preocupação em se captar os modos como cada um se representa a sim mesmo diante da multiplicidade de ocasiões que enfrenta, enfeixando não apenas traços da personalidade, como também da identidade e da conduta, a lhe fornecer algum tipo de coerência ou continuidade existencial (MOSTAÇO, 2009, p.19).

Ao expor estes diferentes eus de que nos fala Mostaço, reagindo de forma particular a cada situação específica, poderíamos dizer que as personagens de Nelson estariam exercendo uma performatividade variável, de acordo com o papel que desempenham: pai, mãe, padre, policial, bandido, cúmplice, traidor, amante, entre outros. Observando sua extensa obra teatral, podemos constatar que grande parte de suas peças traz, já no título, uma pista da importância que o autor atribuiu ao universo feminino. Este é o caso de Vestido de noiva, Senhora dos afogados, Doroteia e A falecida. Contudo, além de apontar para a existência de personagens femininas relevantes em suas tramas, alguns títulos de peças chegam mesmo a dar indícios dos comportamentos de tais personagens, como nas peças A mulher sem pecado; Viúva, porém honesta e Bonitinha, mas ordinária. Poderíamos, neste caso, falar em uma performatividade de gênero.

Louro (1995) aponta quão recente é o estudo de gênero nas discussões acadêmicas. Fala do conceito de gênero enquanto construção social e histórica e de como esta perspectiva é contrária ao pensamento biologicista dos que tentam justificar como naturais as distinções sociais, sobretudo na hierarquia desigual presente na relação entre homens e mulheres. Para a autora:

Uma compreensão mais ampla do gênero exige que pensemos não somente que os sujeitos se fazem homem e mulher num processo continuado, dinâmico (portanto não dado e acabado no momento do nascimento, mas sim construído através das práticas sociais masculinizantes e feminizantes, em consonância com as diversas concepções de cada sociedade); como também nos leva a pensar que gênero é mais do que uma identidade aprendida, é uma categoria imersa nas instituições sociais (o que implica admitir que a justiça, a escola, a igreja , etc.  são “generificadas”, ou seja, expressam relações sociais de gênero). Em todas essas afirmações está presente, sem dúvida, a ideia de formação, socialização ou educação dos sujeitos (LOURO, 1995, p.103).

Colaborando com esta reflexão, Butler (2003) associa diretamente a noção de performatividade à de gênero, ao considerar que:

se a verdade interna do gênero é uma fabricação, e se o gênero verdadeiro é uma fantasia instituída e inscrita sobre a superfície dos corpos, então parece que os gêneros não podem ser nem verdadeiros nem falsos, mas somente produzidos como efeitos da verdade de um discurso sobre a identidade primária e estável (BUTLER, 203, p.195).

Alinhado com tais reflexões, é possível traçar uma análise da performatividade do gênero feminino nas personagens da dramaturgia de Nelson Rodrigues. Contudo, uma ressalva faz-se necessária antes de prosseguir nesta empreitada: em última instância, tal performatividade diz respeito à escrita de Nelson e não a identidade destas personagens, já que as mesmas se configuram como seres ficcionais. A proposta contida no presente artigo é a de analisar como o autor elaborou tal performatividade, mais especificamente na peça Toda Nudez Será Castigada, cuja estreia ocorreu no ano de 1965.  A escolha desta peça se justifica pelo fato de ser considerada uma das últimas grandes obras de Nelson. Quando de sua montagem, dirigida pelo então aclamado diretor polonês Ziembinski (o mesmo que dirigiu a primeira e bem sucedida montagem de Vestido de Noiva, em 1943), as três primeiras atrizes convidadas para o papel da prostituta Geni o recusaram (MAGALDI, 1990) o que dá uma ideia do impacto desta obra na época de sua encenação.

Ainda que o crítico teatral Sábato Magaldi (1990) tenha classificado a peça como tragédia carioca, o próprio autor a definiu, conforme expresso em seu subtítulo, como Obsessão em Três Atos. Ao adotar tal definição, sem par em estudos de gêneros dramáticos, Nelson ressalta o que talvez seja o cerne de sua produção e que se potencializa nesta peça: a representação do desejo enquanto força incontrolável e transgressora[2].

 

 

Toda Nudez apresenta a história de Herculano, um homem que – desde a morte da esposa por câncer no seio – vive enclausurado com a família, composta por seu irmão, Patrício, por três tias solteironas, moralistas e carolas, dedicadas à educação de seu filho único, Serginho. É possível reconhecer na figura do irmão de Herculano a força motriz para o desenvolvimento das ações das personagens nesta peça. Patrício deseja se vingar de Herculano, sob o pretexto de este não ter evitado sua falência ajudando-o financeiramente. Como Herculano se encontra deprimido desde a morte da esposa – o que faz com que as tias temam por seu suicídio – Patrício, movido por um ódio implacável maquiado de aparente benevolência, elabora um plano para aproximá-lo de uma prostituta chamada Geni. Para tanto se vale do argumento de que o problema do irmão diz respeito à sua insatisfação sexual, presente inclusive durante os tempos de casado.

Geni possui uma obsessão: morrer de câncer no seio. Este desejo constante faz com que ela se identifique com a esposa morta de Herculano e se envolva com ele. Herculano, por sua vez, cede aos encantos de Geni, embora haja muita pressão de seu filho, Serginho, obstinado em exigir do pai um comportamento de luto. Serginho possui verdadeira repulsa ao sexo e não concebe que o pai se envolva com outra mulher. A relação entre Geni e Herculano levará o menino a se rebelar, cometendo loucuras que o fazem ser detido pela polícia. Encarcerado, Serginho acaba sendo violado sexualmente por um ladrão boliviano, o que se configura como tragédia para a família. Esta é a oportunidade para Patrício incentivar o ódio no sobrinho em relação ao seu pai, sugerindo que Serginho tenha um caso amoroso com Geni com o objetivo final de se vingar. Isso de fato acontece.  Geni casa com Herculano e o trai com seu próprio filho. Contudo, Serginho foge com o ladrão boliviano, para o desespero de Geni, que se suicida, deixando uma fita gravada para o marido na qual conta tudo o que aconteceu, em detalhes. Toda Nudez é apresentada a partir da narração contida na fita que Geni deixa a Herculano e que lhe é entregue por uma empregada na primeira cena da peça.

Em diversas passagens do texto, é possível identificar uma oscilação no comportamento de Geni, o que evidencia o quanto ela flui entre diferentes configurações de comportamento feminino. Na primeira cena em que a personagem aparece, por exemplo, Patrício diz precisar de um favor seu. A resposta que ela profere é direta:

 Geni – Outra surubada eu não faço, por dinheiro nenhum!

Esta fala demonstra que tipo de relação os dois mantêm, bem como a disponibilidade de Geni para práticas sexuais menos convencionais. Sugere-se assim a figura da mulher lasciva, a prostituta que não se importa muito com a opinião alheia. Uma mulher consciente de seu poder de atração sobre o sexo oposto, conforme expresso nesta frase destinada a Herculano, em outra passagem do texto: 

 

Geni (num desafio, mostrando os dois seios) – Meu filho! – Se há uma coisa que eu tenho bonito é os seios! 

 

Esta prostituta parece se valer de atributos do feminino para seduzir e conquistar seus objetivos. Até mesmo quando ameaça Herculano de agressão física, o faz através de um objeto típico da indumentária feminina: 

 

            Geni – (…) Se você estivesse aqui eu te dava com o salto de sapato na cara! 

 

Apesar disso, a maneira como se refere a Herculano na primeira cena em que os dois aparecem juntos é “filhinho”. Também, quando decide abandoná-lo em outro momento da peça, não o faz por perceber o desespero do pai diante da notícia sobre a violência contra seu filho:

 

Geni – Eu não abandono homem que está por baixo! (Na ânsia de convencê-lo) Ninguém me conhece, mas eu me conheço. Herculano, eu preciso ter pena. O meu amor é pena.  Eu estou morrendo de pena. Juro, Herculano! Pena de ti e do teu filho! 

 

Esta mulher, capaz de se compadecer por um pai fragilizado, faz questão de deixar claro que, embora levando uma vida pouco exemplar de meretriz, não é qualquer uma, como na seguinte passagem:

Geni – (…) Eu sou melhor que muitas. Não vou com qualquer um não.

Segundo Monteiro (1998), ela:

reúne dois arquétipos femininos convencionalmente apresentados de forma excludente na tradição literária: o sagrado (a Virgem Maria, santa e mãe), sendo que, no seu caso, o papel que desempenha seria uma paródia daquele que cabe à “compadecida”, pronta para interceder e prestar favores, numa analogia de seu papel profano (a prostituta, sedutora e sensual).   (MONTEIRO, 1998, p. 15, apud VASCONCELOS, 2004, p. 31). 

 

 

Como complementa Vasconcelos:  

 

teríamos, portanto, imagens do bem e do mal reunidas numa mesma pessoa. Nesse sentido ressalta-se seu desejo inconsciente de identificação com o modelo da mulher idealizado na sociedade burguesa, aquela da esposa/mãe representado pela falecida, sendo que, ao mesmo tempo em que busca esta identificação, também contesta a idealização desta mulher séria que seria uma negação da pulsão de vida, marca diferenciadora de uma categoria social estigmatizada. (VASCONCELOS, 2004, p. 31) 

Esta ambiguidade se faz notar na relação que a personagem tem com seus seios, símbolos de sexo e erotismo ao mesmo tempo em que também são de maternidade, segundo Martuscello (1993). Estes mesmos seios que a personagem irá maldizer nas falas finais da peça:

Geni – (…) Maldito o teu filho e essa família só de tias. (num riso de louca) Lembranças à tia machona. (Num último grito) Malditos também os meus seios!

As figuras das tias configuram algo digno de atenção. Nelson sequer as identifica. Prefere antes chamá-las genericamente de “tias”, atribuindo-lhes, quando necessário, números para diferenciar a fala das personagens. Este recurso ressalta a natureza impessoal destes seres ficcionais que, ao não receberem nomes próprios, acabam por funcionar como uma instituição a proferir suas sentenças moralizantes. Contudo, o senso de moralidade dessas criaturas é questionável se considerarmos o fato de que, para todas elas, a castidade funciona como um disfarce para o interesse sexual. Um exemplo disso é o comportamento curioso que adotam em relação a Serginho. Uma delas dá banho nele enquanto as outras assistem. Também cheiram a cueca do garoto na tentativa de descobrir se ele permanece puro. A necessidade de vigiarem suas atitudes acaba por colocar estas três personagens em situações quase cômicas, mas com grande carga de erotismo. Além disso, quando Geni se casa com Herculano, elas parecem reconstruir sua memória e “esquecem” do passado de prostituta desta mulher que elas repudiavam. Quando a Tia n°2 afirma: 

 

            Tia n°2 – (…) A gente olha para Geni e nem diz que ela foi da zona.

A resposta que tem de sua irmã é:

         Tia n°1 (acusadora) – Geni nunca foi da Zona. Honestíssima! Você é que pôs isso na cabeça, porque está fraca da memória. Arteriosclerose!

 

 

As personagens femininas em Toda Nudez Será Castigada são tão evidenciadas pelo autor que chegam a se assemelhar a caricaturas. Para Martuscello:

Assim como uma caricatura ressalta os traços marcantes da imagem física, o delineamento dos principais protagonistas rodrigueanos é feito com a mesma acentuação de caracteres psicológicos, tornando-os também personagens que caricaturizam diversos aspectos da conduta humana (MARTUSCELLO, 2003, P.232).

Assim, mesmo que de maneira quase exagerada em alguns momentos, a escrita de Nelson nos proporciona nesta peça a apresentação de modelos distintos de performatividade do gênero feminino. Seja através da figura de Geni e sua polarização de comportamentos, revelando a conciliação de aspectos contraditórios nesta personagem, seja através das tias – cuja variação de comportamento se dá de maneira distinta – contudo sem deixar de apontar, em ambos os casos, para uma feminilidade em construção, não estática, fluida e repleta de ambiguidades.

Referências Bibliográficas

BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003.

LOURO, Guacira Lopes. Gênero, história e educação: construção e desconstrução. Educação & Realidade, n. 20, v. 2, jul-dez, 1995, p. 101-132.

MAGALDI, Sábato. Introdução. In RODRIGUES, Nelson. Teatro Completo de Nelson Rodrigues, 4: Tragédias Cariocas II. Organização de Sábato Magaldi. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990, p. 7-49.

MARTUSCELLO, Carmine. O Teatro de Nelson Rodrigues: uma leitura psicanalítica. São Paulo: Siciliano, 1993.

MOSTAÇO, Edélcio. Fazendo cena: a performatividade. In: MOSTAÇO, Edélcio; OROFINO, Isabel; BAUMGARTEL, Stephan; COLAÇO, Vera. (Orgs.). Sobre Performatividade. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2009, p. 15-47.

RODRIGUES, Nelson. Teatro Desagradável. In: ______. Teatro Completo Volume 1: Peças psicológicas. Apresentação de Luiz Athur Nunes. 2 ed. Rio de Janeiro. Nova Fronteira, 2004, p. 273- 78.

VASCONCELOS, Iris Helena Guedes de. Identificação e diferença: o jogo dos opostos na articulação do discurso. Caderno Espaço Feminino, v.12, n.15, Ago-Dez. 2004, p. 27-42.

 

 

BRAGA, Cleber. A performatividade do feminino em Toda Nudez Será Castigada.

 

 

[1] Versão publicada em RODRIGUES, N. Teatro Completo de Nelson Rodrigues, 4: Tragédias Cariocas II. Organização de Sábato Magaldi. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.

* Aluno de Mestrado do Programa de Pós Graduação em Teatro da Universidade do Estado de Santa Catarina. Email: cleberbrag@gmail.com

[2] Questão que corrobora com a ideia de que Nelson Rodrigues era um profundo leitor da Psicanálise.

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