Crônicas

Pequeno Tratado sobre a solidão humana

Benilson Toniolo

Revista Partes – Ano V – 06/09/2012 20:14:15

Benilson Toniolo é poeta e escritor

Outro dia eu estava limpando a mesa ali perto da quadra quando ouvi o doutor Mario falar assim: “nós, os profissionais liberais…” tão bonito, eu achei, “nós, os profissionais liberais”. Aliás, a dona Lídia mulher do doutor Mario comentou não sei com quem “não sei por que é que aqui todo o mundo chama o Mario de doutor”, mas é uma questão de respeito, o homem é Presidente do Clube, é quem paga o meu salário então ele é meu patrão. E patrão é doutor, pelo que eu sei. Queria pertencer a uma categoria destas, dizer “nós, os comins…”. mas ninguém nem sabe o que é comin, os mais esclarecidos chamam de “ajudante de garçon”, ainda assim chamam de garçon. Imagina que alguém vai se preocupar em saber se o cara que está atendendo à mesa é garçon ou é comin. E já vai falando, garçon”. Dá vontade de fazer que não é com a gente, sei lá, fazer que não ouviu. Depois vem o seu Ruço chamar a atenção, “você não ouviu o doutor fulano chamando, tá surdo”? E tem a caixinha que também depois não entra, né, aí chega em casa duro, já viu. A Luzia tá em casa já há dois meses, pô, se eu chegar sem nenhum acha ruim, briga com os moleques, começa aquela confusão e eu até penso em voltar aqui pro Clube. Melhor trabalhando do que em casa, aqui eu ganho e não gasto. Em casa é só prejuízo. Mas é difícil. Outro dia mesmo, o doutor Zezinho chegou domingo de noitinha e queria pastel, eu fui pedir e a Rute gritou lá da Cozinha que não tem, acabou, isso lá é hora de pedir pastel? Vou falar isso pro seu Zezinho, logo o seu Zezinho? Me ofereci pra ir buscar lá fora e ele não quis, falou que não precisava e cochichou com a moça que estava com ele que ia se queixar ao Presidente. Aí lá se foi a minha caixinha, só por causa da Rute, que é melhor a gente nem ir falar nada pra evitar dor-de-cabeça, porque j começa ela com “o Senhor isso, o Senhor aquilo, eu era uma perdida e agora não sou mais, o Senhor fez a obra” e eu fico aqui pensando que eu sabia que o pai Dele era carpinteiro mas não sabia que também entendia de obra, e Ele aliás que me perdoe por tanta besteira que eu penso. Queria ser como o meu primo que fez curso de auxiliar de cozinha e acabou mudando pra Bahia, pra trabalhar num hotelzão lá, que até pra fora do Brasil estão querendo que ele vá, de tão bom auxiliar de cozinha que ele é. E eu fico aqui neste frio e ele na Bahia, deve ser um hotelzão cheio de quartos, e as caixinhas devem ser só em dólar, e aquela mulherada toda, come as baianas durante a semana e no final de semana leva as americanas pra passear na praia e depois come também, esse meu primo é fogo, j pensou até pra fora do Brasil querem que ele vá. Se bobear já deve estar falando até inglês, ele é fogo esse meu primo. Você vê, hoje o cara tá aqui, amanhã conhece alguém que vai com a cara dele e aí tá feito, não precisa estudar nem nada. Aliás essa história desse meu primo só comprova minha antiga tese de que na verdade se o sujeito for esforçado e correr atrás não precisa nem estudar. Por isso que eu trato bem os caras aqui do Clube, teve um sócio outro dia que tomou umas a mais e me mandou calar a boca seu merda, vou dizer o quê? Cala a boca o senhor? Nada, cara, é tudo na base do “pois não, senhor, desculpe, senhor, vou verificar, senhor”. No outro dia ele veio e botou dez reais no meu bolso, entendeu? E ficou quietinho.É assim que funciona, foi como se me pedisse desculpas, só que comigo é assim, pisou na bola tem que pagar. Eu dei foi risada. O negócio é ser bem relacionado, fazer os caras te admirarem e quando você virar as costas, ouvir eles dizendo “este é um bom menino, esse rapaz é muito educado”. Aí não falta emprego, meu velho, nem quando o seu Ruço vem aqui encher a cara domingo à noite e fica falando que a gente deve muito pra ele, que se não fosse por ele isso aqui já teria fechado, que tem muita coisa que ele sabe mas não vai falar, essas coisas que ele fala quando bebe. Outro dia mesmo eu ouvi o doutor Pedro dizer que estava preocupado com a eleição no Congresso. Vê se pode, o que é que a eleição no Congresso lá em Brasília tem a ver com a vida do cara, ele não é economista? Economista que eu saiba cuida de economia e não de política, certo? Pois é. E o doutor Junior, aquele dentista bem novinho que entrou de sócio outro dia, fazia aquela cara de entendido que não tá entendendo é nada. Aliás, andei pensando e concluí que as três palavras que os ricos –pelo menos os ricos aqui do Clube- nunca vão dizer são: ônibus, dor-de-dente e carteira de trabalho. Aliás, acho que eles não sabem nem direito qual é a cor de capa de carteira de trabalho, porque são todos profissionais liberais, como já disse o doutor Mario. A secretária quando vai levar a carteira pra ele assinar já leva aberta na página da assinatura e ele nem bota a mão, meu amigo. Não sabe nem o nome de quem tá contratando. Por exemplo, o meu primo. Ele é muito bom profissional e tudo o mais, fez curso e tudo, mas você acha que o dono do Hotel dele lá na Bahia sabe de onde é que ele veio, quem é ele? Só vai saber que ele existe quando ele faltar no serviço por causa de uma dor-de-dente qualquer e na hora de dar baixa na carteira ele volta a ter na sua frente só a página da carteira pra assinar, nem sabe quem tá mandando embora, já vai ter esquecido. Por isso que eu falo, tem que tratar bem os caras. A dona Rute louca, fica lá só pensando na Igreja dela e deixa acabar o pastel, amanhã alguém vai falar mal dela pro seu Ruço. Aqui tem que ficar esperto, senão já viu. A Luzia acha ruim, às vezes o pessoal chega na horinha em que o Clube está quase fechando e começa a jogar baralho, quando você vai procurar, cadê? Foi embora cozinheiro, garçon, porteiro, só fico eu cuidando deles. Até o seu Ruço, que já tá mais pra lá do que pra cá, dá no pé e eu fico sozinho aqui cuidando deles. Você acredita que numa noite dessas o doutor Rubens se mijou todo, tive que ajudar a limpar o velho, pelo amor de Deus, é cada uma que acontece nesse Clube. Isso já quase cinco da manhã, e às nove eu já estava aqui de novo, meu velho. A Luzia reclama, diz que eu não ganho nada com isso, ao invés de eu ir pra casa dormir fico pajeando estes caras e não ganho nem hora extra. Não ligo não, deixa ela falar, o que importa é que eles saibam que estou aí, entendeu? Pau pra toda obra. E depois ela fica lá com os meninos só vendo novela, pô, deita e dorme. Eu não. Tenho certeza de que se amanhã eu precisar de alguma coisa é só chegar no doutor Mario que ele me facilita. o que eu precisar. Quando ele tá jogando, por exemplo, e a bolinha sai da quadra, quem sempre tá passando por perto e devolve a bolinha? Eu mesmo, meu amigo. Fico só de olho. Amanhã quando mudar o Presidente eu fico bem com os dois, e o doutor Mario ainda vai dizer pro novo Presidente pra me ajudar no que eu precisar. É assim que funciona, meu amigo. Eu sei que é assim que funciona.

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