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Projeto Tutu: além da reciclagem de resíduos

Projeto Tutu: além da reciclagem de resíduos

Carla Gabriela Cavini Bontempo*

Kelin Valeirão*

 

Carla Gabriela Cavini Bontempo é graduada em Administração Hospitalar, especialista em História e mestranda em Ciências Políticas na Universidade Católica de Pelotas – UCPEL. Bolsista CAPES. Endereço eletrônico: cacaias@hotmail.com.

Resumo:

O presente trabalho aborda o mecanismo de desenvolvimento e os resultados preliminares do Projeto Tutu que foi implantado na Escola Estadual de Ensino Fundamental Conquista do Jaguarão, localizada em Aceguá, Rio Grande do Sul – Brasil. O projeto consiste basicamente na coleta e armazenagem de resíduos gerados pelas comunidades rurais dos projetos de assentamento Jaguarão e Sete Povos, compostas por 120 famílias. Partindo do entendimento de que o ato de educar é um ato iminentemente político, as crianças são convidadas a colocar em questão sua condição de vida, transformando em objeto de leitura a própria realidade.

Palavras-chave: Projeto Tutu, reciclar, moeda de troca, educar, transformar

Tutu Project: beyond waste recycling

Abstract: The present work focuses on the development process and preliminary results of the Tutu Project which was implanted at the Conquista do Jaguarão School for Elementary Education in Aceguá County, State of Rio Grande do Sul, Brazil. Basically, the project consists in the collection and storage of waste generated by rural communities of the Jaguarão and Sete Povos settlement projects, involving 120 families. From the understanding that education is an eminently political act, children are invited to discuss their living conditions, thus turning their own reality into reading objects.

Keywords: Tutu Project, recycling, bartering, educating, transforming

 

Introdução

O Projeto Tutu foi implantado em comunidades rurais, a partir da sensibilização do programa União Faz a Vida, em que foram debatidos muitos temas, entre eles a relação das pessoas com o meio ambiente. Através dos relatos de professores de outras escolas do município, localizadas tanto no meio rural quanto urbano, a poluição do ambiente se tornou um tema recorrente nos debates. Diante do exposto, a Escola do Assentamento Conquista do Jaguarão mobilizou os alunos para a coleta de resíduos em suas parcelas, porém a tentativa não teve muito ânimo por parte dos alunos.

A partir de então, a coleta de resíduos permaneceu inativa até meados de agosto, quando o Centro de Tecnologias Alternativas e Populares (CETAP), uma organização não governamental que presta assistência técnica no assentamento procurou a direção da escola para desenvolver um projeto que buscaria outra forma de motivar os alunos. Essa forma seria através do recebimento pelo aluno, de uma moeda social correspondente ao valor gerado pela entrega do resíduo para armazenagem; com esse valor poderiam ser adquiridos produtos diversos, escolhidos por ele, em uma espécie de loja. A opção pela moeda social se fez necessária pelo ajuste à proposta, pois:

A moeda social é uma forma de moeda paralela criada e administrada por seus próprios usuários, logo, tem sua emissão originada na esfera privada da economia. Ela não tem qualquer vínculo obrigatório com a moeda nacional e sua circulação é baseada na confiança mútua entre os usuários, participantes de um grupo circunscrito por adesão voluntária (SOARES, 2006, p. 134-135).

Ou seja, a moeda social não favorece apenas que a comunidade que a utiliza perceba ganhos materiais, mas também outros, intangíveis, como o exercício da liberdade de tomar decisões e da participação. Ideia aceita, partiu-se então para a primeira etapa de implantação, constituída pela explicação da proposta do projeto e por uma pesquisa de mercado, onde cada aluno respondeu às seguintes perguntas:

 

  1. Quanto em média você costuma gastar com doces na escola por semana?
  2. Que tipo de coisa você gostaria de comprar caso tivesse um dinheirinho extra, recebido através da execução de alguma tarefa?

Mais de 60% dos alunos gastam R$ 1,00 por semana com a compra de guloseimas. A partir dessa pesquisa foi possível saber os produtos que mais motivaria os alunos a participarem do projeto. Cabe ressaltar aqui que a pesquisa desmistificou a ideia inicial de que a aquisição de doces seria o fator mais apontado, figurando como o 3º lugar com 13%, atrás do material escolar (22%) e das bolinhas de gude (19%).

Após a pesquisa, chegou o momento de dar uma identidade a essa moeda social: um nome e um layout. Para isso, novamente os alunos foram convidados a dar suas opiniões e desenharem, em um retângulo previamente formatado suas sugestões para a confecção das moedas. O nome escolhido foi Tutu, e as moedas escolhidas pelos funcionários da escola são as de dez centavos, vinte e cinco centavos, cinquenta centavos, um real e cinco reais.

Tendo um nome e suas facetas, o Tutu então foi confeccionado em papel reciclado, exibindo o nome de seus criadores na borda, e os produtos para a loja foram adquiridos. A partir disso foi iniciado o recebimento dos resíduos dos alunos, etapa essa que contou com participação dos pais, que auxiliaram seus filhos e vizinhos na entrega do material, através dos mais diferentes tipos de transporte, como carrinho de mão, carro, cavalo, entre outros.

Durante os 18 dias úteis de recebimento de resíduos em outubro, foram armazenados 1.444 quilos de materiais, sobretudo aqueles que não queimam como ferro, aço e alumínio. A tendência é que a partir de agora outros materiais como o plástico, papel e papelão comecem a ser entregues, como um reflexo de uma nova postura por parte dos alunos perante o descarte de resíduos.

 Os resíduos foram encaminhados por um caminhão cedido pela Prefeitura Municipal de Aceguá a uma empresa de reciclagem localizada em Bagé. O valor recebido pelo envio desse material retornou para a escola que pagou o investimento inicial realizado para adquirir os materiais para a loja e houve uma sobra que foi reinvestida na reposição dos produtos.

Embora esses resultados mensuráveis sejam importantes, o mais interessante é o caráter intangível do projeto, perceber como os alunos estão se organizando diante do tema, enviando o resíduo separado, auxiliando os colegas na coleta e no transporte, limpando o ambiente em que vivem, economizando ou adquirindo coletivamente algum produto – desde salgadinhos até jogos de canetinha hidrocor.

Atualmente a escola continua a transmitir a sua clientela uma leitura mecânica do mundo, ou seja, não permite ao sujeito perceber o que se passa nas estrelinhas das informações e ideologias veiculadas pelas relações sociais e pela mídia. Além de propiciar esta leitura superficial, mas intencional, a escola se percebe ainda como única detentora do saber.

O Projeto Tutu, enquanto projeto educacional, defende que as informações devem serem analisadas, contextualizadas e confrontadas com a realidade, para que os sujeitos possam se apropriar de novas possibilidades de análise e transformação. É neste processo de (re)elaboração crítica da realidade que a construção de conhecimento, considerando a realidade como uma totalidade histórica e dinâmica feita de contradições. Ademais, um processo de ação e investigação metodicamente constituído permite que o ser humano amplie sua atuação como ser crítico, como conhecedor e reconhecedor de suas múltiplas dimensões, como ser integral.

É importante destacar o educador Paulo Freire na construção de uma proposta de educação. Em primeiro lugar, porque na teoria freireana o foco da análise da problemática da realidade recai menos na dominação como reflexo das relações econômicas e mais na dinâmica própria do processo de dominação, isto é, no próprio movimento dialético das relações sociais. Esta mudança de enfoque leva a uma segunda característica fundamental do pensamento de Paulo Freire: ele não se limita a analisar criticamente a educação e a pedagogia existentes. Sua crítica às metodologias que entendem o conhecimento como algo a ser transmitido se desdobra no sentido de apresentar uma teoria bastante elaborada a respeito de como deve ser uma ação pedagógica libertadora:

[…] educar e educar-se, na prática da liberdade, é tarefa daqueles que sabem que pouco sabem – por isto sabem que sabem de algo e podem assim chegar a saber mais – em diálogo com aqueles que, quase sempre, pensam que nada sabem, para que estes, transformando o seu pensar de que nada sabem em saber que pouco sabem, possam igualmente saber mais (FREIRE, 1975, p. 25).

O Projeto Tutu embasado na filosofia freireana da aquisição da leitura e da escrita se configura num processo contínuo de leitura crítica do mundo por meio de uma ação transformadora, preocupado na formação de leitores que sejam capazes de perceber os efeitos sociais da leitura e da escrita na sociedade, intervindo sobre esses efeitos e conferindo novos sentidos a ação. Problematiza essas relações dos homens com o mundo, abre-se uma relevante função da leitura e da escrita: a de criar oportunidades de aprendizagem ao longo da vida.

Conclusão

A partir do entendimento de que o currículo é uma possibilidade de se construir identidade e unidade metodológica na construção dos percursos formativos com vistas a concretizar práticas que expressam a concepção de educação emancipadora as ações educativas devem ser articuladas ao processo dinâmico e vivo das relações sociais e, isso pressupõe, à participação ativa dos sujeitos, para que possam alimentar de pleno sentido o percurso formativo.

O Projeto Tutu parte do entendimento de que o ato de educar é um ato iminentemente político, pois enquanto se aprende a ler e a escrever também se aprende a ler a realidade concreta. É por meio dessa reflexão que os sujeitos podem ir além da consciência ingênua e chegar à consciência crítica. Seguindo esta lógica, o uso da língua é percebido em sua dimensão historicamente localizada e ideologicamente marcada. As crianças que participaram do projeto foram convidadas a colocar em questão sua condição de vida, transformando em objeto de leitura a própria realidade daqueles que foram silenciados outrora, retirando do silêncio a fala que pode produzir uma nova história.

Referências bibliográficas:

FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975.

FREIRE, Paulo. O ensino e a formação do professor. Alfabetização de Jovens e Adultos. São Paulo: Artmed Editora S. A., 2001.

FREIRE, Paulo.  Pedagogia da Autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

SOARES, Claudia Lucia Bisaggio. Moeda social: uma análise interdisciplinar de suas potencialidades no Brasil contemporâneo. 2006, 252f. Tese (Doutorado em Ciências Humanas) – Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2006.

 Como citar:

BONTEMPO, Carla Gabriela Cavini; VALEIRÃO, Kelin. Projeto Tutu: além da reciclagem de resíduos. Revista Virtual P@rtes: São Paulo, novembro de 2012.


* Mestranda em Ciências Políticas na Universidade Católica de Pelotas – UCPEL.

* Doutoranda em Educação na Universidade Federal de Pelotas – UFPEL.

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