Crônicas Gilda E. Kluppel Gilda E. Kluppel

O sofá rasgado

O sofá rasgado

Gilda E. Kluppel

 

Gilda E. Kluppel é professora de Matemática do ensino médio em Curitiba/PR, Mestre em Educação pela Universidade Federal do Paraná.

Eles não gostam mais de receber visitas. O sofá da sala está rasgado e não querem que os outros percebam. A filha mais nova causou o rasgo, havia deitado no móvel com uma sandália de fivela. A situação acarreta uma grande angústia, costumam fazer inúmeras críticas, quando visitam à casa de amigos, sempre rigorosos em avaliar a residência dos outros. Portanto, julgam que também serão alvo de comentários desfavoráveis.

Devido às contas atrasadas, o sofá não pode passar por uma reforma. Contudo, quando se torna inevitável a presença de alguém, uma almofada, colocada estrategicamente, esconde o rasgo. Entretanto, eles sentem-se constrangidos, basta qualquer movimento brusco para escancarar a suposta vergonha.

Assim aconteceu quando a menina, feliz com presença da tia, começou a correr e esbarrou na almofada. E lá estava o rasgo exposto. A tia sequer percebeu, porém, o casal, com o rosto corado, encaminhou a visita para outro cômodo da casa, logo puderam respirar aliviados.

Para eles, a casa representa um exemplo de perfeição, digna de exposição em uma revista de decoração, na qual não existem defeitos. Tudo funciona em plena ordem. Ainda, dentro dessa ordem, todas as modernidades possíveis, os aparelhos de última geração, algo mais antigo descaracteriza o ambiente.

Os objetos de uso da cozinha estão expostos em prateleiras, devidamente escolhidos para combinar com a decoração. As bonecas das filhas ficam enfileiradas, protegidas por um vidro no móvel do quarto. As meninas apenas podem dispor de um brinquedo de cada vez. Os brinquedos servem mais como peças de decoração do que para serem usados.

Além do mais, existe a mania exagerada de limpeza da mulher. Ela costuma andar pela casa, após as visitas se retirarem, para conferir se deixaram uma pegada ou trouxeram alguma sujeira da rua. Desse modo, repete-se o uso do banheiro, logo que alguém sai do cômodo, lá está ela para fazer uma verificação. Não pensa no lar como um espaço para descansar ou relaxar, depois de uma jornada de trabalho, tal qual uma vitrine, que necessita de uma aparência impecável, tornou-se um objeto de veneração.

Habituaram-se a examinar os domicílios dos amigos e parentes, olhos sempre atentos à espreita de defeitos ou imperfeições. No rol das observações, a pintura mal feita na fachada da casa da vizinha, as pedras soltas da calçada onde reside a prima e o jardim sem decoração da casa da tia. Certa vez, ao visitarem um casal de amigos, recebem calorosa acolhida, após farta e boa comida, notam que a torneira do banheiro não funciona adequadamente. Sem demora, ao entrarem no carro, às gargalhadas, condenam o dono da casa que não promoveu o conserto.

Existe uma ligação direta entre a vaidade e a casa. Distinguem-se com superioridade quando constatam algo considerado desagradável e de mau gosto na residência dos outros. Diante do rasgo no sofá, a autoestima parece que também está maculada. E caso ocorram outras necessidades de reparos? Não há reservas disponíveis para a manutenção da casa. Logo, a mulher, tomada por uma sensação de insegurança, lamenta por não possuir a perfeição desejada. A tirania da morada exigia uma atenção exacerbada, acarretando uma carga extra e pesada.

Contudo, ela resolve não esconder mais o rasgo, revestida de coragem, chama a sogra e pergunta: “Existe alguma falha nesta casa”? A sogra retruca: “O telhado está feio”. Consulta a irmã, que prontamente ressalta a falta de combinação entre as cores das paredes. Tenta encontrar uma opinião imparcial, mas ouve sempre uma crítica. Não compreende a razão de não receber a admiração pelo cuidado de uma bela casa, em que o único defeito é o rasgo no sofá. Pensa que falam por inveja, porém, prevalece a dúvida.

Percebe que mantém uma casa de aparência, de cenário intocável. Começa a reconsiderar a relação de grande apego que nutre pela residência. Depois de algum tempo, com tristeza, constata que não construiu um lar para viver, e que, muitas vezes, os convidados não se sentiam à vontade, ao parecer que necessitavam pedir licença até para pisar no chão da casa. Talvez esse seja o motivo para as críticas que recebeu.

Agora, as marcas e os vestígios, deixados pelo uso, são consequências de uma casa em que a vida pulsa, não considerados defeitos ou imperfeições. As bonecas não servem apenas para enfeitar o quarto, saíram das prateleiras e estão ao alcance das meninas. A cozinha transformou-se em um delicioso ponto de encontro da família e os amigos. Ela ainda reclama de uma certa desordem, mas sente-se liberta do ideal de “casa perfeita”, acalentado durante muitos anos. E o rasgo no sofá não ocasiona vergonha, pode aguardar algum tempo para o conserto.

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