Contos Cultura

Sapos e escorpiões

Rodrigo Neres

publicado em 02/03/2010

www.partes.com.br/contos/saposescorpioes.asp

 

A maior descoberta da minha geração é que qualquer ser humano pode mudar de vida, mudando de atitude.
(WILLIAN apud CARLSON, 1998, p.15)

 

Rodrigo Neres é  professor de Educação Infantil e Anos Iniciais, Licenciado em História e Pós graduando em História: Cultura, Memória e Patrimônio e em Planejamento e Gestão da Educação pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões. E-mail: rodrigoneres1@gmail.com – Santiago Terra dos Poetas

A luz do sol refletia na água do caudaloso riacho que cortava em duas partes o belo e movimentado bosque.
Alguns animais achavam que havia animais com muita sorte, outros se achavam a si próprios sortudos e tantos outros nunca tinham parado para refletir sobre isso. Mas a sorte consistia em poder frequentar os dois lados do bosque separados pelas águas.
Para os pássaros isso era normal e não tinha relevância alguma, já para os gansos era motivo de tirar proveito, barganhar, enobrecer-se e até mesmo, de vez em quando, chantagear. Afinal, eles podiam transitar livremente entre os dois extremos, ora carregando uns, fazendo singelos favores e deixando no ar aquela tão conhecida expressão de “uma mão lava a outra”, ora arrastando outros, obrigando-lhes a se submeter a suas vontades e vaidades, amedrontando-os com ameaças provenientes de seus temidos poderes de alarde, o que é típico dos gansos. E as vezes, também, sempre tinham os que “por acidente” ingenuamente se afogavam por considerarem algum ganso como amigo.
Mas nem todos os gansos juntos conseguiam se igualar ao Escorpião em sua astúcia e ofício de espalhar o pânico ao ser avistado. Sempre só, porque fere a todos a sua volta. Amigos? Não os tem. Não saberia vivenciar o sublime sentimento de uma boa amizade. O que ele tem aos montes são companheiros de conveniência, que socialmente se mostram admiradores por medo, mas que no fundo o repudiam por ser ter destrutivo.
Num dia qualquer o Escorpião almejou aumentar seu território, conquistar novas e desavisadas vítimas e assim, pensava ele, eternizar-se pela fama tão ostentada. Decidiu que se atravessasse o riacho encontraria vários animais que não o conheciam e por isso seriam pressas fáceis. Sapateou de alegria e empolgação!
Mas como atravessar? Se todos são vítimas em potencial? Ora! Basta arranjar um tolo. Alguém que não consiga ver a maldade, mesmo que ela esteja com um outdoor luminoso se identificando. E é tão fácil enganar os outros, pensou o Escorpião.
Todo confiante em suas ações e posturas começou a percorrer a margem do riacho até encontrar a vítima certa. Quem seria ela? Qualquer um! Tanto faz, desde que ele consiga seu objetivo.
E quem diria que não foi necessário procurar muito, pois bem pertinho, ao sol, estava o Sapo. Que para ajudar tinha a fama de não fazer mal a ninguém, pelo contrário sempre auxiliava aos outros. Era o plano perfeito!
O Escorpião chegou de mansinho e todo educado começou a dialogar com o Sapo, perguntando coisas como do tipo: “Como está calor hoje? Será que vai chover? E como está esse nosso riacho?” O Sapo, que era bom e não bobo, logo desconfiou da súbita crise de delicadeza do Escorpião e perguntou-lhe o que realmente queria.
Preciso muito atravessar o riacho, contou-lhe o Escorpião. Não consigo ninguém para me ajudar. Esse mundo é muito injusto, tudo culpa desse sistema instalado historicamente em nosso bosque, que contamina as relações sociais … etc, etc e tal.
Bom… Não posso te ajudar, falou, calmamente, o Sapo.
Como não! Que história é essa! E o discurso de miserabilidade que acabei de lhe professar? Bem vi que você não tinha intelecto suficiente para dialogar comigo. Respondeu o Escorpião indignado.
Não é por nada, Senhor Escorpião, é que conheço bem o Senhor e as coisas do que é capaz. Pode parecer meu amigo nesse momento, mas quando eu menos esperar vai me ferir, pois tenho na memória o que já fez com outros animais. Seu passado o condena, explicou o anfíbio se aproximando da água.
Rapidamente, grita o Escorpião: Por favor! Eu imploro, não se vá ainda. Preciso que ouça a minha defesa, eu tenho direito de me defender, me pronunciar e fazer algumas colocações. Tudo bem?
Sei que sou um dos animais mais vis e nocivos que existe, desse lado do bosque. Não é a toa que estou no grupo dos animais peçonhentos. Está em meu ser, não posso evitar. Mas posso tentar construir uma imagem nova sobre meu respeito. Se você me ajuda atravessar o riacho eu terei oportunidade de um recomeço, de uma vida nova. Já que do outro lado os animais não me conhecem e não sabem da minha história e de todas as coisas horríveis que eu fiz. Depende de você colaborar para que isso aconteça.
Ok! Se é isso o que quer. Vou levá-lo em minhas costas até o outro lado. Espero que cumpra suas promessas e lembre-se de que estou te ajudando e que não almejo teu mal. Na verdade nem faço parte de sua vida, nem temos relações e nunca fiz nada a você. Sempre mantemos distância um do outro, ponderou o Sapo, que na verdade pensava: por que ele faria mal a mim? Se não faço nada a ele? Não o ameaço e nem lhe causo incomodo algum?
Só que ao finalizar a travessia o Escorpião, prontamente, feriu o Sapo na altura de sua cabeça e rindo passou para o outro lado do bosque, ridicularizando-o: Só sendo muito otário mesmo! Eu sou um gênio! Não há ninguém que se compare a mim! A minha inteligência e astúcia são únicas!
Mesmo sofrendo com a gravidade do ferimento, o Sapo questionou: Por que você fez isso? O que você ganhou com o que fez? Pelo contrário só perdeu, pois se fosse confiável eu poderia te atravessar sempre e você desfrutaria de ambos os lados do bosque.
Aprenda uma coisa querido, ironizou o Escorpião. A moral da história é esta: Para uma criatura má prejudicar os outros, não necessita de razões ou pretextos. Ela simplesmente faz, porque gosta, não importa a quem.

 

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