Crônicas Margarete Hülsendeger

A essência do Universo

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A ESSÊNCIA DO UNIVERSO

Uma discussão filosófica

Margarete Hülsendeger

 

A sabedoria não se transmite, é preciso que nós a descubramos fazendo uma caminhada que ninguém pode fazer em nosso lugar e que ninguém nos pode evitar, porque a sabedoria é uma maneira de ver as coisas.

Marcel Proust

 

 

Margarete Hülsendeger é Física e Mestre em Educação em Ciências e Matemática/PUCRS. É mestra e doutoranda em Teoria Literária na PUC-RS

Apesar do dia quente, o número de pessoas em torno da praça não diminuía. Os gritos dos mercadores se misturavam ao ruído dos animais e das vozes daqueles que estavam ali para comercializar ou apenas se divertir. O comércio de escravos e dos mais diversos produtos dava ao lugar um aspecto festivo, com as mercadorias trocando rapidamente de mãos, para alegria e satisfação de todos.

No entanto, não muito distante dessa cacofonia ensurdecedora, havia um grupo – a maioria de jovens – reunido em torno de um banco de pedra, ouvindo com atenção o debate travado entre dois homens de aparência simples, mas inegavelmente nobre. Esse tipo de reunião era comum em Mileto. Sempre havia alguém disposto a discutir questões que envolviam a origem do homem e do próprio universo. Nessas ocasiões, a força dos argumentos e a capacidade de oratória eram fatores decisivos para ganhar a disputa.

A diferença entre esse debate e todos os outros era que o tema discutido não se referia a questões de ordem religiosa. Não estava sendo debatida a influência dos deuses sobre a vida dos humanos. Ao contrário. Nenhum dos dois homens sequer acreditava na existência de um deus, o que dizer, então, de deuses.

– Você não pode negar que a água tem uma capacidade infinita de transformação. Ela é a essência da natureza – argumentou Tales.

– Não nego, mestre, somente não posso crer que o princípio de tudo seja restrito a apenas uma única coisa – respondeu Anaximandro.

Tales respirou fundo, precisava recuperar a tranquilidade. Afinal, sempre incentivara seus alunos a pensarem por conta própria. No entanto, Anaximandro estava agindo como uma criança teimosa, cega às verdades que estavam diante de seus olhos.

– Muito bem. Responda-me, então: o alimento que você come não é úmido? O próprio calor que o seu corpo gera não é alimentado pela umidade? As sementes de todas as coisas não são naturalmente úmidas? – as perguntas foram sendo lançadas sem dar tempo a que Anaximandro as respondesse. Com esse artifício Tales queria confundi-lo, fazendo-o perceber o erro de sua argumentação.

Foi a vez de Anaximandro permanecer calmo. Ele admirava seu mestre. Tales havia sido o primeiro a abandonar as crendices absurdas alimentadas pelos sacerdotes. Ele foi o primeiro a perceber que os “deuses” nada mais eram do que as causas por detrás dos fenômenos naturais. Só por essa façanha Tales já mereceria toda as honrarias. Porém, na questão que agora discutiam, ele estava errado.

– Mestre, o fogo não pode ser combatido com a água? – perguntou Anaximandro.

– Sim – respondeu Tales desconfiado.

– Pois bem, quando o fogo é combatido pela água o resultado é que os dois deixam de existir. Como é possível, então, que a essência do universo seja a água? Ela é finita, enquanto o Universo não o é.

Pela primeira vez, desde que a discussão havia começado, Tales não tinha uma resposta pronta. Procurava um argumento para combater a ideia do aluno. Anaximandro, no entanto, não lhe deu tempo para refletir e seguiu com o seu discurso:

– A resposta, mestre, está em acreditar em um princípio de onde tudo nasce e para onde tudo flui. Eu o chamo de a-peiron.

– A-peiron? O que é isso? Algo que você inventou para me desacreditar? – quis saber Tales, sentindo-se traído.

Os espectadores prenderam a respiração. O desafio implícito na pergunta iria determinar qual dos dois – mestre ou discípulo – iria vencer o debate.

– Mestre, como o senhor mesmo me ensinou, é na atitude questionadora que nasce o conhecimento. Portanto, nunca foi a minha intenção desacreditá-lo, desejo apenas discutir e compartilhar meu pensamento.

Tales, no mesmo instante, percebeu o seu erro. Sua vaidade estava interferindo na discussão. Anaximandro era seu aluno, isso era verdade, porém tratá-lo como se fosse algum idiota desmiolado não era o melhor caminho para o esclarecimento. Controlando-se, inclinou a cabeça, dando permissão a Anaximandro para que prosseguisse.

– A-peiron é o princípio sobre o qual todas as coisas são feitas, portanto, é eterno e infinito. Contudo, isso não significa que os contrários não possam existir. Na verdade, o mundo é constituído de contrários que se autoexcluem e o tempo é o juiz do que deve ser excluído e mantido.

Pensativo, Tales traçou na areia, com um pedaço de madeira, riscos sem sentido. Anaximandro sabia que seu mestre estava refletindo sobre suas palavras e esse feito o deixou bastante orgulhoso.

– E os mundos? Quantos seriam? Ou você acredita apenas na existência deste mundo? – perguntou apontando para a praça e depois para o céu.

– Não, mestre, continuo acreditando na existência de vários mundos além do nosso, mas também creio que antes existiram outros e depois que o nosso desaparecer outros virão.

– Pelo que vejo concordamos em vários pontos: a existência de um único princípio, a bobagem que é acreditar em deuses dirigindo nossas vidas e agora a possibilidade de vários mundos. Discordamos apenas do que seria feito o universo. Estou certo, Anaximandro?

– Sim, mestre.

Tales estendeu a mão a Anaximandro. O gesto selava entre eles um acordo temporário de paz. Depois, levantaram-se do banco e começaram a caminhar. A multidão imediatamente se dispersou, à exceção de alguns jovens que continuaram a segui-los, certos de que o debate ainda não fora encerrado.

Entre esses jovens havia um que se chamava Anaxímenes. Ele também tinha uma opinião sobre o tema. Concordava com Anaximandro, pois não via a água como sendo a essência da natureza. Por outro lado, tinha muito dificuldade em aceitar o conceito de a-peiron, por considerá-lo abstrato demais. Para Anaxímenes o mundo era feito de outra substância, algo mais real e igualmente dinâmico, o ar.

Quando estavam próximos da casa de Tales, Anaxímenes pensou em expor suas ideias aos dois grandes mestres. Porém, teve receio de não estar preparado para o debate. Sem uma observação apurada e destituída de superstições sabia que teria poucas chances de vencer uma disputa filosófica. Com a cabeça baixa e em silêncio preferiu seguir adiante. Tales e Anaximandro, ainda concentrados no tema do debate, continuavam a discutir, sem perceber a presença do jovem estudante.

Tales, Anaximandro e Anaxímenes são representantes da Escola Jônica, sendo Tales o seu fundador. Os três, apesar de discordarem quanto à “substância primordial” concordavam com a existência de um “princípio único” para essa natureza primordial. Muitas das ideias de Anaximandro são semelhantes aos conceitos trabalhados atualmente na Física. Os três nasceram em Mileto, antiga colônia grega na Ásia Menor, atual Turquia.

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