Crônicas Margarete Hülsendeger

ENTRE A CERTEZA E A DÚVIDA

Margarete Hülsendeger

A ciência não pode prever o que vai acontecer. Só pode prever a probabilidade de algo acontecer.

César Lattes

Era uma vez, num tempo não muito distante, duas rainhas poderosas. Seus nomes: Certeza e Dúvida. Apesar de seus reinos estarem próximos, elas quase nunca se visitavam. Qualquer tentativa diplomática de estabelecer laços de amizade ou de colaboração entre as duas nações sempre resultara em um fracasso absoluto.

A rainha Certeza era uma mulher imponente. Alta e gorda. Muito gorda. É claro que nenhum de seus súditos mencionava essa segunda característica, pois como ela dizia em seus pronunciamentos: “Pessoas saudáveis, com certeza, não podem ser magras”. Em todos os eventos oficiais, a soberana era a mais elegante. As roupas, criações de estilistas famosos, ressaltavam suas formas avantajadas. O pescoço e as orelhas estavam sempre enfeitados com diferentes conjuntos de colar e brincos: alguns de pérolas verdadeiras, vindas diretamente dos mares da China, outros de diamantes originários das minas africanas. Sem dúvida nenhuma, a rainha Certeza era uma governante austera, requintada e de opiniões firmes.

A rainha Dúvida, por outro lado, tinha ideias e características diferentes da sua vizinha. Para começar, era magra. Muito magra. Nunca conseguia decidir o que comer e, na dúvida, escolhia quase sempre os mesmos alimentos: pão, queijo e vinho tinto. Além de ter uma aparência descuidada, desenvolveu o péssimo hábito de roer as unhas. Quando estava nervosa, não conseguia se controlar e, mesmo em meio a uma audiência importante, roía unha por unha até sair sangue. Entretanto, apesar de parecer insegura em muitas de suas decisões, era uma mulher de temperamento forte, com disposição para longos e cansativos debates.

Assim eram as duas rainhas: Certeza e Dúvida. Poderosas soberanas, mulheres que nunca se omitiam em dar opiniões e impor suas vontades. Enquanto Certeza não abria mão de suas ideias, considerando-as absolutas e inquestionáveis, Dúvida questionava tudo, dizendo que era preciso desconfiar do amor, da arte e até de si mesmo. Se o lema de Certeza era “Há uma única verdade e só ela nos salvará”, Dúvida proclamava “Não acredite em nada, a não ser na morte, pois só ela é inevitável no jardim das incertezas”. Entre as duas travava-se uma luta de titãs, na qual jamais havia uma vencedora. As poucas vezes em que se encontraram, saíram do embate exaustas. Nessas ocasiões, Certeza bufava de tanta fúria, ao passo que Dúvida roía as unhas até os dedos sangrarem.

Os súditos de ambos os reinos já estavam acostumados com esses bate-bocas e já não se perturbavam. Para eles, essa era a maneira encontrada por Suas Majestades de se distraírem da difícil tarefa de gerir os destinos de tantas pessoas sob sua responsabilidade.

Um dia, porém, chegou a notícia que uma nova rainha estaria prestes a subir ao trono em um pequeno reino perto de suas fronteiras. Nunca se ouvira falar dela. Tratava-se da filha bastarda do antigo rei. Seu nascimento havia sido mantido em segredo, pois a esposa estéril do soberano não podia saber da traição do marido. Contudo, com a morte do velho governante e a ausência de herdeiros legítimos, a moça fora chamada a ocupar a real posição. O escândalo espalhou-se por todos os reinos, dando margem a muito falatório e a criação de histórias mirabolantes sobre a futura governante.

Dúvida e Certeza, quando ficaram sabendo da notícia, tiveram, como era costume, opiniões diferentes. A primeira, é claro, não acreditou na história; afinal, a tal moça ainda não se apresentara, portanto, podia ou não ser o que afirmava. A segunda, ao contrário, não demonstrou qualquer dificuldade em aceitar a história como verdadeira, pois, para ela, o velho rei sempre fora um devasso.

Quando a data da coroação da nova rainha enfim chegou, Certeza e Dúvida não conseguiam controlar a curiosidade. “Quem seria aquela moça?”, era o que mais se perguntavam. Exteriormente, no entanto, mantinham uma fachada indiferente. Elas, também sendo rainhas, deviam-se mostrar distantes e impassíveis em relação aos assuntos de um reino tão pequeno e humilde.

Antes da cerimônia de coroação, como mandava o protocolo, foram conduzidas à presença da nova soberana para as apresentações oficiais. A surpresa foi total. Viram-se diante de uma jovem que não era magra ou gorda, nem feia ou bonita. A pele translúcida não permitia que se conseguisse definir com clareza os seus traços. Quando andava parecia flutuar alguns centímetros do piso. Sua posição, na sala de audiência, mudava a cada instante, tornando a conversa difícil.

A nova rainha, contudo, não demonstrava nenhum tipo de perturbação. Olhava para as duas soberanas como se fossem velhas conhecidas. Aproximando-se – ou será que se afastava? –, apresentou-se com humildade:

– Meu nome é Probabilidade e é um imenso prazer conhecê-las.

Dúvida e Certeza, mudas de espanto, não sabiam como agir ou o que dizer. Limitaram-se a estender as mãos na tentativa de cumprimentá-la, mas, para espanto das duas velhas rivais, Probabilidade sempre escapava. Apreensivas, e até mesmo um pouco assustadas, reconheceram que ali estava alguém que poderia, em um futuro não muito distante, se transformar em um problema difícil de resolver.

Dúvida logo percebeu que a nova soberana seria um mistério difícil de desvendar. Certeza, por sua vez, viu nela a personificação do seu mais temido pesadelo: o abandono de todas as suas convicções. Probabilidade, enquanto isso, sonhava com o seu reinado. Ela, na sua inexperiência, ainda não sabia, mas sua presença seria a causa de mudanças não apenas na vida de seus súditos, mas nos reinados de suas Majestades, as rainhas Certeza e Dúvida.

Margarete Hülsendeger – Possui graduação em Licenciatura Plena em Física pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1985), Mestrado em Educação em Ciências e Matemática pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2002-2004), Mestrado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2014-2015) e Doutorado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2016-2020). Foi professora titular na disciplina de Física em escolas de ensino particular. É escritora, com textos publicados em revistas e sites literários, capítulos de livros, publicando, em 2011, pela EDIPUCRS, obra intitulada “E Todavia se Move” e, pela mesma editora, em 2014, a obra “Um diálogo improvável: homens e mulheres que fizeram história”.

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