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Lições de História IV

Margarete Hülsendeger

 

[…] eran los seres humanos los que creaban las condiciones en las que la vida seguía su curso. Y los seres humanos parecían marcados por el destino de atropellarse unos a otros, hacerse difícil la existencia, matarse[1].

Gioconda Belli[2]

 

Em entrevista dada ao jornal El País[3], em novembro de 2018, o escritor, historiador e professor israelense Yuval Noah Harari se mostrava preocupado em se tornar o mais novo guru da modernidade: as pessoas, diz ele, tendem a exigir respostas para os seus problemas mais prementes, mas, seu trabalho não é oferecer respostas ou soluções. Na verdade, Harari deseja apenas estabelecer uma agenda de prioridades, fazendo com que “a gente concentre sua atenção nas questões mais importantes”. Para o autor, é fundamental que as pessoas se esforcem no sentido de encontrar respostas por elas mesmas, sem esperar que outros as forneçam. Nesse sentido, é importante estar alerta para o reaparecimento de certas fantasias, como, por exemplo, a ideia de que o passado era melhor que o presente ou que a “verdadeira” felicidade pode ser encontrada voltando-se a um tempo onde sabíamos quem éramos, tínhamos uma identidade e uma visão de mundo mais clara. Como historiador, Harari afirma que “não podemos regressar ao passado”, assim como não podemos nos iludir acreditando que o passado foi tão maravilhoso como muitas pessoas parecem imaginar.

Em Sapiens: uma breve história da humanidade[4], Harari reserva um capitulo para discutir a busca pela felicidade intitulando-o sugestivamente “E eles viveram felizes para sempre”. Inicialmente, ele faz uma breve recapitulação das conquistas da humanidade nos último 500 anos: o crescimento exponencial da economia, o poder quase sobre-humano que a ciência e a revolução industrial deram ao homem e a, consequente, transformação da ordem social, da política, da vida cotidiana e da psicologia humana. Contudo, ao final desse rápido inventário ele questiona: “mas somos mais felizes? A riqueza que a humanidade acumulou nos últimos cinco séculos se traduz em contentamento?” (p. 386).

Para tentar responder a essas questões, Harari, em um primeiro momento, reflete sobre o que a maioria das ideologias e programas políticos definem como felicidade. Para os nacionalistas, o contentamento está na autodeterminação política; para os comunistas, na ditadura do proletariado; e para os capitalistas, no livre mercado, no crescimento econômico e na abundância material. Mas, e se todas essas premissas estiverem erradas e a felicidade para ser alcançada precise de “algo” muito diferente do que tem sido vendido até agora? O autor não tem problemas em admitir que a história tem evitado esse tipo de pergunta, mesmo tendo investigado quase tudo: desde a política, passando pela sociedade e a economia, até chegar as questões associadas a sexualidade, a alimentação e o vestuário. No entanto, diz ele, se nos deixarmos guiar pelo senso comum a impressão é que, ao longo da história, as capacidades humanas cresceram aparentemente trazendo alívio para muitos dos sofrimentos suportados por homens e mulheres nos séculos passados. O inconveniente desse ponto de vista é compreender que junto com essas conquistas houve um aumento do poder e, consequentemente, da corrupção.

Essa corrupção teria sido, segundo os defensores dessas ideias, a origem do surgimento de um mundo mecanicista e frio mal adaptado as nossas verdadeiras necessidades. Como exemplo, Harari fala da passagem da agricultura para a industrialização: “a transição primeiro para a agricultura e depois para a indústria nos condenou a levar uma vida antinatural que não permite expressar plenamente nossas inclinações e nossos instintos inerentes e, portanto, não é capaz de satisfazer nossas aspirações mais profundas” (p. 388). Desse modo, cada novo invento, cada novo avanço tecnológico, apenas aumentou a distância entre o homem e o paraíso tão desejado.

Harari, porém, não está entre os que acreditam que esse processo seja o “bicho papão” da modernidade. Para ele, essa forma de pensar, além de ser romântica, é tão dogmática quanto a “crença na inevitabilidade do progresso” (p. 388). Por isso, ele defende uma posição mais moderada que evite julgamentos a partir da perspectiva de um indivíduo ocidental, de classe média do século XXI. É preciso, de alguma forma, desenvolver uma visão mais abrangente, mais global, dos sucessos e fracassos do ser humano no decorrer da história. De acordo com Harari, se por um lado as últimas décadas têm sido uma espécie de “idade dourada” da humanidade com conquistas nas áreas da saúde e da educação, por outro o homem tem estado alterando o equilíbrio ecológico do planeta de tal forma que não sabemos o que resultará desse processo.

Então, se nada é absolutamente preto ou branco, como sabermos se somos mais felizes hoje do que ontem?

De novo, fiel à sua forma de expor temas tão polêmicos, Harari não nos dá respostas prontas, mas nos força a pensar, a refletir sobre a nossa realidade. Ele explica que filósofos, sacerdotes e poetas durante milênios sempre associaram felicidade a situações que não envolviam apenas questões materiais. Ela seria alcançada quando fatores sociais, éticos e espirituais pudessem se combinar de maneira harmônica com as necessidades de ordem material. Já em décadas mais recentes psicólogos e biólogos aceitaram a ideia da existência de um “bem-estar subjetivo” que se traduziria em felicidade. Conforme essa visão, a felicidade é algo que sentimos dentro de nós, uma sensação de prazer imediato, de satisfação com o modo como a nossa vida avança. Para provar essa teoria, psicólogos e biólogos elaboraram e aplicaram questionários cujo objetivo era medir o grau de felicidade das pessoas.

Apesar das falhas que esse método possa conter, Harari comenta que um dos resultados importantes dessas pesquisas foi descobrir que a felicidade “não depende de condições objetivas de riqueza, saúde ou mesmo comunidade”, mas da correlação entre essas condições objetivas e expectativas subjetivas (p. 393). Assim, se as condições de vida melhoram, as expectativas aumentam, e “consequentemente até mesmo melhorias drásticas nas condições objetivas podem nos deixar insatisfeitos” (p. 393). Em termos mais simples: quanto mais conquistamos, mais desejamos e a felicidade que estava logo ali, ao alcance de nossos dedos, novamente escapa. Segundo Harari, talvez seja esse o motivo para o descontentamento do Terceiro Mundo, afinal ele está em constante exposição aos padrões do Primeiro Mundo.

Se os psicólogos ao analisarem as respostas de questionários veem nas expectativas a causa da infelicidade humana, os biólogos ao examinarem os mesmos questionários defendem que o nosso mundo mental e emocional está governado por mecanismos bioquímicos modelados por milhões de anos de evolução. Dessa forma, ninguém é feliz porque ganha na loteria, compra uma casa ou um carro ou encontra o seu verdadeiro amor. O que faz o ser humano feliz são as sensações agradáveis em seu corpo, associadas a liberação de diferentes hormônios na corrente sanguínea e aos sinais elétricos trocados em várias partes do cérebro. Quando essas descargas hormonais e elétricas diminuem elas acabam dando lugar a sensações desagradáveis que afastam os sentimentos de felicidade.

De qualquer maneira, se são as expectativas ou as reações bioquímicas que nos fazem sentir felizes ou infelizes, o fato é que o homem está sempre em busca de um sentido para sua vida. Nessa procura é preciso descobrir se, apesar de todos os problemas e dificuldades, a vida vale a pena ser vivida. Conforme Harari, o primeiro passo é não se deixar levar pelos slogans. Utilizando o pensamento budista para explicar esse processo, o autor explica que por 2500 anos os budistas estudaram de maneira sistemática a essência e as causas da felicidade, atraindo, inclusive, a atenção dos cientistas para suas práticas. Como resultado desses estudos, os budistas perceberam que o “segredo” da felicidade está em cessar toda a busca continua e inútil de sensações fugazes, pois são elas que nos levam a “estar em um constante estado de tensão, inquietude e insatisfação” (p. 405). Portanto, a “descoberta” mais importante de Buda foi entender que a “verdadeira felicidade também independe de nossas sensações interiores” (p. 406), de tal maneira que, sua principal recomendação era, simplesmente, parar “a busca não só de conquistas externas, como também, acima de tudo, a busca de sensações internas” (p. 406).

Margarete Hülsendeger é Física e Mestre em Educação em Ciências e Matemática/PUCRS. É mestra e doutora em Teoria Literária na PUC-RS. margacenteno@gmail.com

Entretanto, apesar dessas ideias já existirem há mais de 2000 mil anos, poucas pessoas conseguem colocar em prática esses ensinamentos. Além disso, os estudos sobre a felicidade realizados nos laboratórios e nas universidades ainda estão na fase de formulação de hipóteses e nos melhores métodos de trabalho. Por essa razão, Harari acredita que é muito cedo para assumir conclusões e encerrar qualquer debate nessa área. De acordo com ele, o importante, o essencial, é “conhecer tantas abordagens quanto possível e fazer as perguntas certas” (p. 407). Desse modo, será necessário esperar para, finalmente, dizer que “eles viveram felizes para sempre”, pois o sapiens tem muito para aprender, muitas lacunas para preencher, em uma jornada que iniciou a milhares de anos atrás, mas que não tem um prazo para terminar.

Com este texto encerro a série “Lições de história” na qual apresentei algumas das ideias presentes em Sapiens: uma breve história da humanidade. Contudo, isso não significa que esgotei os temas tratados nesse livro, com certeza, existe um amplo espectro de ideais que podem ser exploradas por qualquer leitor curioso e interessado em conhecer um pouco mais sobre as estruturas que sustentam a sociedade humana. Portanto,  Sapiens não é apenas uma “breve história da humanidade”, é também um livro muito bem escrito e fundamentado, no qual Yuval Noah Harari exerce o papel de guia, nos levando por caminhos nunca suspeitados. Um livro que, segundo o biólogo Jared Diamond, “ilumina as grandes questões da história e do mundo moderno”. Siga sozinho a partir de agora e boa leitura!

[1] “[…] eram os seres humanos que criavam as condições nas quais a vida seguia seu curso. E os seres humanos pareciam marcados pelo destino, atropelando-se, tornando sua existência difícil e matando-se”. (Tradução minha).

[2] BELLI, Gioconda. La mujer habitada. Madrid: Seix Barral, 2010 (ePub).

[3] Disponível em: https://elpais.com/cultura/2018/11/14/actualidad/1542229519_107459.html. Acesso: 13 dez 2019.

[4] HARARI, Yuval Noah. Sapiens: uma breve história da humanidade. Tradução Janaína Marcoantonio. 30. Ed. Porto Alegre, RS: L&PM, 2017, 459 páginas.

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