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Como andam as relações entre homens e mulheres?

osnovosdesejos

Os novos desejos

Organização de Mirian Goldenberg

192 páginas R$20,00

Formato: 14 x 21 cm

Código: 059072

ISBN: 8501059072

Ninguém duvida que estão acontecendo mudanças de comportamento nas relações entre os sexos na sociedade brasileira contemporânea. Mas o que mudou? Como homens e mulheres estão lidando com isso? Nos seis artigos que compõem este volume, estas transformações são analisadas a partir do discurso de homens e mulheres em situações atuais como o mercado de trabalho feminino, academias de ginástica e agências de encontro.

O MACHO EM CRISE:

Um tema em debate dentro e fora da academia

Mirian Goldenberg

É inegável o crescimento e, ainda mais, o reconhecimento da produção científica sobre gênero no Brasil. Tendo sua origem nas preocupações das feministas em denunciar a opressão sofrida pelas mulheres, os estudos de gênero questionam a ideia de “natureza” feminina (e masculina) e reforçam a concepção de que as características atribuídas à mulher (e ao homem) são, na verdade, socialmente construídas. Diferencia-se, assim, o sexo (a dimensão biológica dos seres humanos) do gênero (um constructo cultural), o que é útil para mostrar que muitos comportamentos, sentimentos, desejos e emoções, vistos como partes de uma essência masculina e feminina, são produtos de determinado contexto histórico e social.

Mas o que mudou para que esses estudos, antes desprestigiados e considerados pouco científicos pelos mais ortodoxos, adquirissem legitimidade e uma visibilidade tão ampla? Algumas hipóteses podem ser levantadas.

O debate, nesse campo, tem se intensificado e permitido a convivência (nem sempre pacífica, mas bastante rica) de múltiplas posições. Se, no início, a preocupação dominante era a denúncia das discriminações e violências sofridas pelas mulheres e homossexuais, hoje existem autores que acreditam que as diferenças entre os sexos estão desaparecendo (e falam de uma androgenização) e outros apontam as conquistas femininas como as principais responsáveis por uma suposta “crise da masculinidade”. A problematização do conceito de gênero, colocando em xeque sua própria existência, tem tornado a discussão muito mais profícua e elaborada teoricamente.

Durante décadas, os estudos de gênero foram realizados quase exclusivamente por pesquisadoras feministas, passando, nos últimos anos, a despertar o interesse de pesquisadores não-militantes, assim como antropólogos, sociólogos e historiadores renomados, como, por exemplo, Pierre Bourdieu, Anthony Giddens e Christopher Lasch. Tal mudança no perfil dos estudiosos pode ser pensada como um reconhecimento da importância do gênero como uma variável cada vez mais explicativa da sociedade atual.

A existência de revistas dedicadas a questões de gênero, centenas de dissertações de mestrado e teses de doutorados, núcleos de estudos, grupos de trabalhos em reuniões científicas refletem o madurecimento desta linha de estudos, dentro e fora do Brasil, desde a publicação do clássico O segundo sexo, de Simone de Beauvoir, em 1949.

Por último, os estudos sobre gênero abriram um espaço de reflexão sobre grupos estigmatizados socialmente, como prostitutas, homossexuais, travestis e amantes de homens casados, temas considerados interessantes para um público mais amplo (o que talvez explique o sucesso do meu livro A outra, que está na sétima edição). Dessa forma, leitores que não pertencem ao meio acadêmico têm se interessado pelo assunto, que ocupa espaço considerável nos meios de comunicação de massa.

Ao deixar os muros das universidades, o que facilita o entendimento de fenômenos sociais e amplia seu leque de questões, os estudos de gênero são, hoje, objeto de atenção da mídia e passaram a ser percebidos como um produto importante para o mercado editorial, que já publicou muitos títulos sobre o tema.

Uma das questões que mais têm atraído a atenção do mercado editorial é a chamada “crise da masculinidade”, cujo interesse também pode ser avaliado em matérias em jornais e revistas de grande circulação. Neste artigo, pretendo analisar algumas das matérias que colecionei durante os dois últimos anos.

Entre a paternidade e a carreira: um novo dilema?

Uma das primeiras matérias que analisei, na revista Exame (10/1998), tinha a seguinte chamada: “É possível conciliar a paternidade com a carreira?” Fiquei interessada pois esta é uma questão encarada como um conflito que não se coloca para os homens (pelo que me lembrava de minhas aulas e conversas).

Artigos em revistas femininas e matérias em jornais mostram, frequentemente, o dilema da mulher brasileira: dá para ser mãe e profissional? Quase sempre essas matérias apontam para uma solução conciliatória: ser uma profissional sem deixar de optar pela maternidade. Moral da história: a mulher que não é mãe é uma egoísta ou uma frustrada, é uma mulher com faltas, ou melhor, não é uma verdadeira mulher. A maternidade é a maior prova de feminilidade, enquanto a virilidade é provada de diferentes maneiras (tamanho do pênis, quantidade de parceiras sexuais, desempenho na cama e, também, capacidade de produzir filhos). Mesmo que isso ainda não ocorra de forma tão ampla, a mídia noticia casos de homens que cuidam dos filhos sozinhos, casais gays alugando barrigas para realizar o sonho de ser pais, homens que brigam na justiça pela guarda do filho e, até, a possibilidade de o homem vir a engravidar em um futuro próximo. São casos ainda isolados mas que refletem uma das grandes mudanças no comportamento masculino.

Retrato da crise do masculino? Parece justamente o contrário. Um direito que era negado ao homem, o de ser afetuoso e acompanhar o crescimento dos filhos (mesmo direito que era negado aos seus  filhos, obrigados a verem no pai uma figura violenta ou ausente), agora não só é permitido como estimulado.

Uma matéria em O Globo (Jornal da Família, 11/4/1999) tem como título: “Pai com jeito de avô: aumenta o número de homens que têm filhos e netos com idades muito próximas.” São homens de mais de cinquenta anos que estão no segundo ou terceiro casamento com mulheres muito mais jovens, têm filhos adultos do primeiro casamento e agora assumem uma nova paternidade “com mais prazer, segurança e serenidade”. Um deles, o diretor da Rede Globo Carlos Manga, de 71 anos, revela:

Não acompanhei com tanta dedicação o crescimento dos meus filhos do primeiro casamento. Quando eles nasceram, eu estava mais preocupado em ganhar dinheiro e em ser um diretor de sucesso. Com o tempo, percebi que esses valores não tinham a menor importância. Hoje participo do desenvolvimento de Maria Eduarda (de seis anos) com afinco e acompanho passo a passo seu crescimento. Fiz questão de estar presente no seu primeiro banho e na primeira papinha. Sou muito mais feliz.

O psicanalista Luiz Alberto Py, de 59 anos, tem um filho de um ano e seis meses com sua mulher 29 anos mais nova, após três filhos adultos e netos.

Diz que hoje tem mais disponibilidade de tempo e é um pai mais dedicado e presente porque não está preocupado apenas com o reconhecimento profissional. O psicoterapeuta César Vasconcelos de Souza analisa:

O pai idoso encontra num novo filho a oportunidade que esperava para corrigir erros afetivos cometidos com filhos anteriores, erros estes que ocorreram devido à imaturidade e às pressões do trabalho. Agora, mais maduro, ele poderá desejar acertar muito mais que no passado.

Poderíamos acrescentar que, até recentemente, esta participação maior na vida familiar não era cobrada do homem. A nova cobrança obriga determinados pais a rever seu papel e a estar mais presentes na vida de seus filhos.

Aqueles que não tiveram tempo para acompanhar o crescimento dos primeiros filhos, há vinte ou trinta anos, sentem, hoje, essa necessidade. Mesmo que esse desejo (ou cobrança social) não atinja todos os homens (nem da maneira tão forte como atinge as mulheres), trata-se de uma grande mudança, que abre mais uma possibilidade para o masculino, antes tão restrito à performance pública.

Um interessante reflexo dessa mudança de papel pode ser observado na matéria de O Globo (25/4/1999):

Elas ficam grávidas, eles têm todos os sintomas A psicóloga Luciana Soto explica que, nos dias de hoje, a gravidez é compartilhada ao máximo pelos casais e já não se fala mais em “mulher grávida”, mas em “casal grávido”.2 O homem não é mais um mero coadjuvante.

Não é raro alguns sentirem os sintomas comuns às gestantes. Esta é uma forma que eles têm de vivenciar este momento em sintonia com a mulher. E bota sintonia nisso. Alguns homens têm náuseas, vômitos, cólicas, alterações no peso e no ciclo do sono, dor de dente, dor de estômago, mudanças no humor e dormência nas pernas.

A matéria destaca o caso do decorador carioca Éder Meneghine, primeiro voluntário da América do Sul a se candidatar à gravidez masculina. Éder recebeu o convite de uma equipe de médicos paulistas e, “feliz da vida”, aceitou. Sonha ter um útero e viver as emoções de ser mãe.

Mas retornemos à matéria da revista Exame, que entrevista cinco executivos que afirmam “que não basta ser pai, tem que participar”. O primeiro executivo diz que existem muitas semelhanças entre os desafios que enfrenta como dirigente de uma pequena empresa e os de ser pai. Ele sugere que se administre o tempo com os filhos por intermédio de contatos relativamente breves e objetivos, com o aproveitamento de oportunidades e planejamento de atividades futuras. Na casa e na empresa, diz ele, deve-se delegar, responsabilizar, cobrar resultados e premiar pelo desempenho. O segundo executivo valoriza a qualidade e a intensidade do tempo que lhe resta fora do trabalho. Como freqüentemente está fora do país, ele liga três vezes por dia para o filho de um ano e quatro meses. Outro executivo viaja constantemente nos fins de semana e passa no escritório doze horas por dia e, quando chega em casa, a filha está dormindo. Costuma passar as férias com a filha, o que “contribui para ela entender o lado profissional do pai”. O último diz que a Internet, o fax e o celular facilitaram sua rotina familiar, visto que ele mora em uma cidade diferente da filha e tem pouca possibilidade de vê-la.

Esses foram os modelos de pais participativos mostrados na revista. Ao ler a matéria, torna-se evidente a capacidade dos homens de justificar e considerar natural a ausência na vida dos filhos tendo em vista algo mais importante: a carreira. É exatamente o oposto do que ocorre com a maioria das mulheres, para quem o trabalho é que deve ser administrado em função de algo mais essencial: os filhos. O sentimento de culpa, a necessidade de se dividir para ter mais tempo com os filhos, as saudades em viagens, sentimentos tão presentes nas mulheres, não aparecem nesses modelos de pais.

Outra matéria analisada, bastante relacionada à primeira, estava na primeira página da Folha de S. Paulo de um domingo (1/11/1998): “Ausência do pai cria confusão nos filhos”.

As mudanças na família brasileira, como o aumento da participação da mulher na divisão de responsabilidades e a crescente ausência do homem, têm criado confusões prejudiciais às crianças. Entre as conseqüências está a delinquência juvenil.

O enfraquecimento da figura paterna tem levado o pai a se distanciar  da família. Pesquisa mostra que os lares de 48% dos infratores da Febem foram abandonados pelo pai.

A leitura do texto sugere a seguinte questão: o enfraquecimento da figura paterna leva o pai a se distanciar da família, ou ao contrário, a distância leva ao enfraquecimento? Outra questão que a matéria levanta é a seguinte:

se 48% dos menores infratores foram abandonados pelos pais, e esta é a principal causa da delinquência juvenil, o que ocorreu com os 52% de delinquentes restantes que não sofreram esse abandono? Cabe lembrar que a figura do pai está ausente em grande número de famílias, o que não gera, necessariamente, delinquentes juvenis, pois outras pessoas cumprem o papel de educar e orientar as crianças, talvez com mais afeto e equilíbrio do que teriam os pais, muitas vezes violentos, apesar de presentes.

A discussão prossegue ao longo de quatro páginas da Folha de S. Paulo.

“Fome de pai” deixa meninos perdidos A questão é que as crianças crescem a partir de modelos, e a mãe hoje virou uma espécie de “mulher maravilha” – que trabalha, administra a casa e cuida dos filhos – e o pai, ao perder a condição de provedor exclusivo da casa, ora compensa isso trabalhando mais ora simplesmente se afastando da família. Especialistas da área apontam que, para os meninos, a situação está ainda mais complicada do que para as meninas, já que, enquanto as mulheres adquiriram mais poder, os homens perderam.

O leitor da matéria rapidamente conclui que a culpa é das mulheres que trabalham e criaram uma confusão no homem e na família, incentivando, portanto, a delinquência juvenil. Essa matéria recente repete, descaradamente, os mesmos argumentos dos que eram contra o voto feminino e o trabalho da mulher fora do lar há quase um século. O código civil brasileiro, de 1917, reservava à mulher casada um estatuto de total submissão à autoridade do marido, que lhe proibia ter conta bancária em seu próprio nome ou qualquer vínculo de emprego sem autorização do marido. O direito ao voto feminino, conquistado em 1932 no Brasil, teve opositores que diziam que a “única missão da mulher deveria consistir em ser o anjo tutelar da família”.3

A matéria aponta novas causas da crise da masculinidade:

Pais estão ausentes da criação dos filhos: trabalham demais ou estão desempregados (o que tende a levar ao estresse, depressão, alcoolismo ou violência); perderam status e poder na família com a entrada da mulher no mercado de trabalho, ficando com sua autoridade fragilizada.

A grande vilã da crise do macho A culpa, mais uma vez, recai sobre a emancipação econômica da mulher.

Revistas femininas, e outras como IstoÉ, Veja, Exame, tentam mostrar que a mulher está sendo cada vez mais bem-sucedida no mercado de trabalho por ser intuitiva, flexível, sensível, dividir responsabilidades, saber ouvir e pedir desculpas. Ao mesmo tempo em que destacam as qualidades femininas, as matérias realçam o que consideram defeitos do homem: ser centralizador, ter pressa de decidir, ser competitivo, dar muitas ordens, ser frio e racional.

Consideram positivas as características femininas e condenam as masculinas, as mesmas que eram vistas, até bem pouco tempo atrás, como essenciais a um mercado de trabalho competitivo e desumano. Matérias como essas, além de esconder a realidade do mercado de trabalho feminino, estimulam a guerra entre mulheres e homens, sendo que estes só enxergam o que estão perdendo dentro e fora de casa.

A revista Veja (24/2/1999), por exemplo, publicou dois estudos que mostram que, para a contratação de funcionários, as empresas valorizam características tipicamente femininas, mesmo dos  candidatos homens.

As mulheres estão roubando as vagas dos homens, ascendendo mais rapidamente aos altos postos das companhias e ganhando mais do que eles em alguns casos. As três condutas femininas mais valorizadas na praça são: saber trabalhar em equipe, fazer planejamento a longo prazo e preocupar-se com detalhes. Ou seja, além de tomar o emprego deles, elas estão começando a servir de modelo. Estas características estão valorizadas a ponto de orientar os recrutadores mesmo na hora de selecionar homens. Até algum tempo atrás, as companhias buscavam profissionais competitivos e ousados, que gostavam do risco e prezavam a autoridade como bem maior. Essas qualidades, tipicamente masculinas, estão em baixa.

Na verdade, são pouquíssimas as mulheres que conquistaram um bom emprego acompanhado de um bom salário – existe, no Brasil, o que é chamado de feminização da pobreza. No entanto, as matérias citadas vendem a ilusão de que o homem é o grande perdedor nesta guerra.

Voltando à matéria da Folha, novo título: “Para filhos, pai é o ‘chefe’.”

Apesar das mudanças na família, pai continua representando modelo de autoridade e poder. Ser sexualmente ativo e sustentar financeiramente a família, exercendo a autoridade e o poder (quando não a força e a violência física) no meio familiar e no trabalho, eram (ou ainda são) condições básicas para ser considerado um homem. Talvez por esse motivo, pesquisa feita pelo Datafolha (Folha de S. Paulo, 20/9/1998) constatou que 79% dos homens pesquisados acham que a mulher deve ficar em casa se o marido puder sustentar sozinho a família.

É interessante olhar estas matérias buscando encontrar o “bode expiatório” do momento: de forma nada sutil, o trabalho feminino e o aumento do poder da mulher na família são apontados como responsáveis pela ausência cada vez maior do homem em casa, assim como pelo enfraquecimento de sua imagem diante dos filhos.

As matérias ainda dizem que as mulheres ficaram muito exigentes e quanto maior o seu nível de instrução mais difícil encontrar o parceiro desejado.

Reportagem da Folha de S. Paulo (22/11/1998) afirma que as mulheres cultas têm menos chances de encontrar um companheiro porque não se interessam por homens intelectualmente inferiores,  enquanto os homens não adotam esse “filtro” para escolher suas parceiras. Uma das entrevistadas diz:

É comum encontrar homens complexados, que não aceitam o fato de a mulher saber mais. Eles dizem que mulheres como eu assustam. Mas homem incompetente, fraco, infantil não me interessa. Comprovando essa tendência de vitimizar o homem ao perceber uma inversão dos papéis sexuais socialmente estabelecidos, O Globo (8/11/1998) publicou uma matéria com o título “Homens ficam inseguros diante de mulheres ativas”. A reportagem afirma que a liberação sexual fez com que as mulheres se tornassem obcecadas em ter prazer e em ditar as regras na cama. Diz a reportagem:

A figura da mulher ativa sexualmente incomoda, causa insegurança e até medo. Significa, para os homens, que estão numa posição mais passiva e assim se sentem dominados, subjugados. Nunca vimos tantos casos de impotência e nunca lemos tanto sobre avanços em pesquisas para a cura deste mal como hoje. O homem de hoje teria se tornado o escravo da mulher no ato

sexual, diz a sexóloga entrevistada. Sua preocupação em satisfazê-la é tanta que ele abre mão, muitas vezes, do próprio prazer.

Em resumo, o homem moderno não apenas está em crise mas está sendo ameaçado de extinção.4 E a mulher pode ser apontada como uma das principais causadoras do desaparecimento da espécie, como pode ser comprovado na chamada de capa do Jornal do Brasil (9/4/1999): “Incertezas do fim do século causam deterioração física e psíquica no homem moderno”.

Especialistas do mundo inteiro estão preocupados com a deterioração física e psíquica do homem moderno, que, além da competição agressiva com as mulheres, tem que enfrentar as grandes incertezas do fim do século. Na luta para a salvação do sexo masculino destaca-se o Canadá, onde já há programas de assistência psicológica ao homem.

A matéria assinala que a crise de identidade que os homens atravessam foi, em grande parte, provocada pela mudança no papel das mulheres, com quem eles passaram a competir em várias instâncias. Já não ouvimos essa história antes, apenas com os papéis invertidos? É interessante pensar nesse tipo de matéria e, também, em muitos discursos femininos que repetem, exaustivamente, que “o homem tem medo de mulher independente”, “o homem se sente ameaçado com as conquistas femininas”, “o homem está inseguro e frágil porque perdeu sua identidade”. Esse discurso consolida a ideia de que a mulher independente representa um perigo para o homem e é determinante na crise que ele (e a família) atravessa. A mulher, em vez de ser vista como uma parceira que pode tirar dos ombros do homem uma série de obrigações que lhe eram exclusivas, transforma-se em rival, disputando poder, emprego e regalias. Não é mais uma companheira a ser conquistada, mas uma inimiga a ser vencida. É a “guerra dos sexos às avessas”. Durante décadas o discurso feminista bradava que as mulheres eram escravas do poder masculino. Agora é o momento da revanche: “As culpadas são as mulheres.” Será que as gravatas devem ser queimadas como símbolo da luta contra a dominação feminina?

Elas preferem os gays

Quando concluí um estudo sobre as mulheres que são amantes de homens casados, A outra (1997), senti um desejo, ou melhor, uma necessidade de ouvir o outro lado da moeda. É comum mulheres  estudarem mulheres, homens estudarem homens, gays estudarem gays, o que, além de estigmatizar o pesquisador (se ela estuda a Outra deve ser a Outra), produz uma compreensão muito limitada dos papéis desempenhados por homens e mulheres na cultura brasileira. Em 1991, publiquei o ensaio A construção social da identidade masculina: sexo e casamento em camadas médias urbanas. Com esta pesquisa, com homens de nível universitário e idades entre trinta e cinqüenta anos, moradores da zona sul do Rio de Janeiro, percebi muitos estereótipos que me acompanhavam. Procurei seguir o pensamento de Michel Foucault: “Existem momentos na vida em que a questão de saber se se pode pensar diferentemente do que se pensa, e perceber diferentemente do que se vê, é indispensável para continuar a olhar ou a refletir.” Não podia mais continuar ouvindo só as mulheres. Precisava aprender um pouco mais sobre os homens. Nesse ensaio, sem nenhuma pretensão, abordei algumas  curiosidades tipicamente femininas, como a iniciação sexual, experiências sexuais durante a vida de solteiro e de casado, relacionamentos extraconjugais e crises conjugais.

O dado que mais chamou minha atenção nessa pesquisa foi o fato de todos os homens se considerarem fora de um modelo de masculinidade. Com relação ao número de parceiras sexuais, alguns tiveram apenas uma, enquanto outros afirmaram que tiveram mais de cem. Todos, no entanto, acreditavam estar fugindo da regra, afirmando que os amigos “transaram” com muito mais mulheres. Também aqueles que nunca tiveram relacionamentos extraconjugais acreditavam que eram exceções, e afirmavam que seus amigos tiveram vários casos e aventuras, mesmo amando as esposas. Em vários momentos da pesquisa, os entrevistados demonstraram o medo de serem acusados de “bichas”, “veados” ou “efeminados” por não corresponderem ao modelo de virilidade do brasileiro, ao mesmo tempo em que acusavam os homens com a performance idealizada de “machistas” e “galinhas”. Na pesquisa que realizo no momento,5 com cerca de 1.300 homens e mulheres entre vinte e cinqüenta anos, revelam-se outros dados interessantes. Quando peço para os homens responderem o que “todo homem é”, eles dizem “machista”, “safado”, “infiel”, “mentiroso”, “cafajeste”, “conquistador”,  voltado para o sexo”, “volúvel”, “mulherengo”. As mulheres também destacam “que todo homem é” “infiel”, “galinha” e “machista”. As mesmas apontam como o principal problema no relacionamento a infidelidade.

João Silvério Trevisan (1998) explica o donjuanismo como uma busca obcecada e insatisfatória de novas aventuras, que gera a “infidelidade típica do macho”, tão disseminada que, em muitas culturas, acabou se tornando evidência de virilidade. Este aspecto aparece de forma marcante na minha pesquisa. Mais de 70% dos homens pesquisados afirmam ter sido infiéis e os motivos mais apontados são “vontade”, “atração física”, “desejo”, “não consegui resistir” e “para não me arrepender das oportunidades que perdi”. Cerca de 40% das mulheres dizem ter sido infiéis por alguma insatisfação ou problema no casamento ou no namoro. O mais interessante a ser analisado talvez não seja o fato de os homens traírem mais que as mulheres, mas os motivos que os levam à traição e, mais ainda, os sentimentos diferentes que homens e mulheres atribuem a este fato. Somente nas respostas femininas aparece um sentimento de culpa muito grande pela traição, acompanhado de uma necessidade de se desculpar por ela ter ocorrido em função de uma carência ou insatisfação com o relacionamento. Nas respostas masculinas, o sentimento mais presente é o de disponibilidade ou inevitabilidade de algo previsto ou desejado.

Trinta por cento das mulheres pesquisadas afirmam ter tido um único parceiro sexual ao longo da vida e outras 30% dizem ter tido dois ou três; as demais sabem dizer exatamente com quantos homens “transaram”, sendo que o número máximo encontrado até agora foi 27 parceiros. Os homens respondem “não sei”, “não me lembro”, “difícil computar”, “bastante”, “milhares”, “várias”, “uma porção”,  “algumas dezenas”, “poucas”, “algumas”, “mais ou menos cem”, “mais ou menos trinta”, “mais ou menos vinte”, “mais ou menos dez”. Será que isso significa que o relacionamento sexual para o  homem é menos importante do que para a mulher? Que os homens continuam dissociando o sexo da afetividade? Ou será apenas um discurso masculino sobre a sexualidade que busca enfatizar o não- envolvimento com as parceiras, podendo corresponder (ou não) à realidade? Esses são dados iniciais da pesquisa mas já revelam algumas diferenças significativas no comportamento (ou discurso) de homens e mulheres. Como afirma Sócrates Nolasco (1995), as características socialmente prescritas para o papel masculino exigem que “um homem de verdade” seja viril, conquistador e competitivo sexualmente. Para o mesmo autor (1997), o sentimento de identidade masculina está fortemente relacionado ao de desempenho sexual.

Outra resposta curiosa é para a pergunta “O que as mulheres invejam no homem”. As respostas femininas mais freqüentes têm sido “força física”, “poder”, “liberdade”, “independência”, “salário maior”  e, ainda, “não ter cólica”, “não menstruar”, “não ter celulite”, “o prazer de sentir o pênis crescer”, “fazer xixi em pé”, “fazer xixi em qualquer canto”. A maioria dos homens diz que não inveja nada na  mulher e apenas cinco responderam que invejavam a “maternidade” e um único “o fato de a mulher não ter de fazer barba”.

De acordo com esse quadro, não é de se estranhar a matéria publicada em O Globo (31/1/1999) que anuncia o verão de 1999 como “O verão dos espadas”. A matéria afirma que “espada” é a nova gíria da cidade que discute a ideia de masculinidade na década de 1990. O termo, agora recuperado, surgiu nos círculos dos playboys elegantes da década de 1950 a partir de um ícone guerreiro eminentemente europeu. A gíria “espada”, para o psicólogo Sócrates Nolasco, lembra os heróis medievais e está sendo usada pela nova geração como uma tentativa de valorizar a virilidade, em um momento em que a figura do macho está tão desgastada.

O homem heterossexual branco está intimidado. Houve uma atualização da imagem social da mulher, do negro, do homossexual. O homem continuou como era. Nesta nova ordem do mundo, ele virou o opressor, o politicamente incorreto. A espada é uma representação do guerreiro, é viril. Resgata a força e o status.

Alguns homens, no entanto, parecem não querer ser “espada” e optam por descobrir novas possibilidades de “ser homem”. São homens que reconhecem e contribuem para as mudanças que o  comportamento masculino vem sofrendo. Para João Silvério Trevisan (1997), muitas dessas mudanças podem ser vistas como produto dos espaços conquistados pelos homossexuais masculinos que se abriram também para os heterossexuais como, por exemplo, o uso de roupas mais descontraídas, os cabelos compridos ou tingidos, os brincos, os cuidados com a aparência e com o corpo e, até, operações plásticas por razões puramente estéticas. Não é à toa que matérias de jornais e revistas, assim como seriados (Will & Grace) e filmes americanos (A razão do meu afeto), mostram que o gay passou a ser objeto de desejo das mulheres ditas “independentes”. Em uma matéria da Folha de S. Paulo (11/10/1998), uma mulher que vive se apaixonando por gays diz: “Eles têm uma sensibilidade absurda, são mais bonitos, mais cheirosos, mais bem arrumados. Queria que a metade dos homens se cuidasse como eles se cuidam.” Outra diz que os gays são mais inteligentes, carinhosos e divertidos. Em um quadro sintético a matéria conclui:

Elas gostam de gays porque acham que…

Não têm atitudes machistas

São mais sensíveis

Se preocupam mais com a aparência

Ouvem mais e são compreensivos

Podem ser mais carinhosos e delicados na hora do sexo

Dançam bem e ficam no clube dançando até as 7h da manhã

São boa companhia na hora de fazer compras

Não perdem tempo fazendo coisas como assistir a mesa-redonda de futebol.

Considerando, tal como Kimmel (1998), que tanto a masculinidade quanto a feminilidade hegemônicas, produzidas pela sociedade patriarcal, são “invisíveis” àqueles que tentam obtê-las como ideais de gênero, pode-se dizer que atualmente há uma maior consciência crítica das experiências e visões de mundos consideradas específicas de homens e mulheres. Papéis considerados masculinos – como homem provedor, forte, chefe de família – e aqueles femininos – como mulher, mãe, esposa, dona de casa -, que ainda aparecem de forma significativa nas respostas dos questionários analisados na minha pesquisa, são relativizados por outros atributos, como homem sensível, vaidoso e delicado, e mulher forte, trabalhadora, corajosa. Esse jogo permite observar, nitidamente, a coexistência de modelos tradicionais de ser homem e mulher e novas representações sobre o masculino e o feminino, traduzindo-se em múltiplos padrões que competem com os modelos hegemônicos.

É possível encontrar matérias de jornais e revistas com entrevistados que acreditam que o futuro aponta para o predomínio das relações bissexuais, quando o sexo biológico da pessoa pela qual se está atraído ou apaixonado terá pouca importância). Elisabeth Badinter (1986) já discutiu essa possibilidade em Um é o outro. Para a socióloga francesa, homens e mulheres estariam cada vez mais próximos e indiferenciados, sem traços culturais marcados como exclusivamente femininos ou masculinos.

Os estereótipos do homem viril e da mulher feminina estão pulverizados. Não há mais um modelo obrigatório, mas uma infinidade de modelos possíveis. Cada um se atém à sua particularidade, à sua própria dosagem de feminilidade e de masculinidade. As diferenças necessárias para a sedução se estabelecem na intimidade do casal. (Badinter, 1986: 262)

Atenção: Homens em obras

É essa liberdade para escolher entre uma multiplicidade de caminhos, e a conseqüente responsabilidade que ela acarreta, que parece assustar homens e mulheres. Eles (e elas) demonstram ter medo de perder as regras e classificações que tornavam relativamente fácil saber como se comportar, o que desejar e que papéis cumprir. Hoje, tanto as opções afetivo-sexuais quanto as profissionais são infinitas, e as escolhas podem provocar um verdadeiro pânico do desconhecido, ou podem ser vividas como uma deliciosa aventura.

Quando comecei a estudar homens e mulheres, há mais de dez anos, minha motivação foi compreender o que acontecia na sociedade brasileira e por que havia tantas queixas e insatisfações. O que anteriormente era considerado um tema menor nas ciências sociais hoje é estimulado por financiamentos e concursos, o que cria um campo fértil de estudos. Talvez isso signifique que, em vez de estar em crise, a masculinidade se tornou uma questão a ser pensada e debatida. Algo que era visto como natural, o poder do macho, passou a ser questionado, ou melhor, problematizado por homens e mulheres.

Até recentemente, como lembra João Silvério Trevisan (1998), homens heterossexuais não se julgavam “discutíveis”. Hoje, não existe mais a possibilidade de eleger um único modelo que servirá como referência de masculinidade para todos. Não é mais possível acreditar que aquele amigo nunca “broxa” e “já comeu mais de cem”. Esse modelo é, agora, alvo de risos e críticas, não apenas das mulheres independentes.

Encontramos hoje, na cultura brasileira, uma multiplicidade de comportamentos e desejos masculinos e femininos, muitos convivendo nos mesmos indivíduos, o que gera conflitos e angústias. No caso das mulheres, algo como sonhar com príncipe e ser totalmente autônoma economicamente, ter a vidinha tranqüila de uma Amélia e toda a liberdade sexual de Leila Diniz. O conceito de  desmapeamento”, proposto por Sérvulo Figueira (1985), é útil para analisar a presença de ideais aparentemente contraditórios nos meus pesquisados: a nostalgia da segurança e a valorização de um relacionamento sem vínculos obrigatórios e sem o desgaste do cotidiano. De acordo com o autor, as mudanças sociais são rápidas e “visíveis”, não sendo acompanhadas no mesmo ritmo e intensidade pelas subjetividades individuais, que incorporam ideais “modernos” sem eliminar os “arcaicos”, que permanecem “invisíveis” dentro dos sujeitos. Esse descompasso entre aspectos “visíveis” e “invisíveis” leva à coexistência de mapas, ideais e normas contraditórias muitas vezes insuportável. A convivência do ideal “arcaico”, que permanece ativo e poderoso num plano mais inconsciente, com um ideal “moderno”, no plano mais consciente, gera o “desmapeamento”. Apesar dessa ambigüidade, motivo de desorientação e sofrimento, a sociedade reforça a idéia de que as pessoas são livres para optar, escolher e construir seus estilos de vida e relacionamento.

Se, de um lado, percebemos que persiste uma estigmatização daqueles que são percebidos como um desvio do modelo dominante – como os homossexuais -, de outro, começa a existir um  reconhecimento, e até mesmo uma valorização, desses comportamentos socialmente desviantes. Percebe-se facilmente uma oscilação entre um modelo tradicional de gênero e o desejo de inventar e questionar os comportamentos e papéis sexuais existentes. Assim, cada indivíduo pode sofrer na pele o dilema de mudar ou permanecer, hesitante entre o medo de ser diferente dos demais e a liberdade de poder ser tudo o que deseja. Essa ambigüidade se reflete na mídia e se traduz em muitas dificuldades que heterossexuais, homossexuais e bissexuais devem enfrentar em seu cotidiano.

É possível imaginar uma conclusão para esse eterno debate? Percorri matérias que mostram o pai totalmente participativo e outras que retratam o típico pai ausente; outras ainda defendem o homem-espada ou trazem o gay como modelo desejado de masculinidade; há homens que criticam o comportamento “galinha” e aqueles que se sentem desviantes por terem poucas parceiras…

Do outro lado, mulheres brigam por igualdade e outras sonham engravidar de um homem famoso para garantir uma polpuda pensão para o resto da vida; algumas mulheres idealizam um casamento entre iguais e outras sonham com príncipes encantados e fazem de tudo para agarrar um estrangeiro de olhos azuis; há mulheres que conquistam posições respeitadas no mercado de trabalho e outras que ganham milhões para rebolar a bunda… É possível uma conclusão? Talvez o melhor a fazer seja aprender a conviver com as contradições de gênero presentes na cultura brasileira e – quem sabe? – aproveitar a possibilidade de ter, ao mesmo tempo, o comportamento mais tradicional e o mais moderno (ou pós-moderno).

As mulheres ganharam muitas batalhas nas últimas décadas: o controle da sexualidade, da procriação, espaços profissionais, liberdade e poder. E os homens? Só perderam? Nunca se discutiu tanto a possibilidade de cada um viver a própria vida, seja ela qual for. Será que podemos falar em crise quando tantas portas foram abertas? Talvez o machão esteja realmente em crise, mas é possível que até ele consiga sobreviver, só que será obrigado a coexistir com outras formas de ser homem. O que não sobrevive mais é um modelo hegemônico de masculinidade com base em força, poder e virilidade, embora homens (e mulheres!) continuem alimentando esse ideal.

Este estudo poderia se tornar interminável, pois nunca, como hoje, se debateu tanto o papel masculino, suas crises e mudanças. Enquanto eu concluía este artigo, novas matérias continuam a explorar o tema: “O homem em crise” (O Globo, 6/11/1999), “Homem: sexo frágil” (Jornal do Brasil, 6/11/1999), “Ela ganha mais” (O Globo, 7/11/1999), “Homens querem ser Amélia, que era ‘mulher de  verdade'” (O Estado de S. Paulo, 29/5/1999), todas mostrando que já “não se fazem homens como antigamente”. O homem da década de 1990 parece ocupar o espaço de reflexão que teve a mulher nas décadas de 1960-70, no mundo acadêmico e fora dele. Os debates nos programas de televisão são outro reflexo dessa mudança de enfoque. Na verdade, continuamos preocupados com os mesmos temas que, a cada momento, ganham nova roupagem. É interessante observar como essas preocupações, antes restritas a grupos de elite, se expandiram para todos os setores sociais. Sinal dos tempos?

 

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