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A banalidade do Apocalipse

A BANALIDADE DO APOCALIPSE

Norberto Bobbio

O sentimento do fim é característico de quem interpreta seu próprio tempo como era de decadência

Em 1995, ao receber o Prêmio Gianni Agnelli, Norberto Bobbio proferiu um discurso, cujo excerto, aqui reproduzido, foi organizado e publicado pelo jornal milanês Il Sole 24 Ore, em 17 de outubro de 1999, véspera do aniversário do filósofo.

A aproximação do fim de um século, apesar da convenção representada por esta cesura no curso histórico, sempre suscitou perguntas em torno do princípio e do fim dos tempos. Sobretudo diante do fim não de um século, mas de um milênio, sendo que o último século, aquele que está para chegar ao fim, foi um século de desastres e de erros, talvez sem precedentes.

Um sério jornal católico propôs a seus leitores que contassem, às vésperas do Terceiro Milênio, cada um o próprio apocalipse, a própria imagem do fim do mundo. Não é preciso nada além de abrir os jornais para constatarmos que a palavra “apocalipse”, ainda que amesquinhada e domesticada, tornou-se de uso cotidiano. O sentimento do fim é característico de quem interpreta o próprio tempo como uma era de decadência, na qual “tudo se precipita”.

Sabemos, no entanto, que toda moeda tem dois lados. Olhando nosso tempo não mais do ponto de vista do moralista, do filósofo, do profeta de desventuras, mas daquele do cientista e do técnico, nossos ouvidos serão surpresos por uma música totalmente diferente: o lamento fúnebre se converte em hino de vitória.

Tenho minhas razões para considerar que o contraste entre as duas atitudes diante da ciência e de suas conquistas, afinal nada novas, aliás velhíssimas e recorrentes – que poderíamos chamar de predominantemente moral ou moralista, a primeira, e a outra de prevalentemente pragmática -, dependa do juízo oposto que cada uma das partes, a partir do diferente observatório no qual se encontre, é levada a dar a ideia de “progresso”.

O que houve neste século não é o fim, tampouco a interrupção, do progresso, mas a dissociação entre progresso científico ou técnico e progresso moral. O fato de que o progresso científico e técnico, contrariamente à previsão das “grandes narrações”, como foram chamadas as filosofias da história do século 19, não tenha contribuído com o “aperfeiçoamento” moral do homem, mas somente à sua melhora material, fornecendo-lhe, ao contrário, instrumentos para exercitar com maior eficácia sua vontade de poder, é problema sobre o qual a discussão é constante porque a solução não é absolutamente fácil e sim impérvia. Ao menos até agora, as opiniões são irredutivelmente discordantes. Deparando-se com um mundo hostil em relação à natureza e aos seus semelhantes, de acordo com a hipótese hobbesiana de que “o homem é o lobo do homem” (hipótese desmentida por muitas pesquisas recentes sobre a sociedade primitiva, mas válida para grande parte do mundo histórico por nós conhecido), o homem procurou torná-lo mais habitável, inventando, de um lado, as artes produtoras de instrumentos, dirigidas à transformação do mundo material para tornar possível à sobrevivência, e do outro, regras de conduta dirigidas à regulamentação dos comportamentos individuais, para possibilitar uma convivência pacífica. Instrumentos e regras de conduta constituem o chamado mundo da cultura, contraposto e sobreposto ao mundo da natureza.

Parece-me incontestável que o universo das técnicas tenha sido ao longo dos séculos bem mais dinâmico do que o das regras.

Enquanto o progresso científico e técnico não para de suscitar a nossa admiração e o nosso entusiasmo, ainda que misturado a um sentimento de angústia por efeitos perversos que dele podem derivar, continuamos a nos interrogar sobre a existência do Mal, exatamente como há mil anos, repetindo infinitamente os mesmos argumentos, colocando-nos sempre as mesmas perguntas sem respostas, ou com respostas que nunca nos acalmam completamente, como se estivéssemos sempre imersos no mesmo mistério.

Sei por experiência que o curso da história da humanidade é ambíguo e que seu sentido depende de quem o interpreta, da situação histórica na qual o interpreta, dos instrumentos intelectuais de que dispõe quem se propõe a fazê-lo. E cada previsão, melhor seria dizer “profecia”, é somente uma aposta. Assim como o apocalipse, que me sugeriu o início deste texto.

O apocalipse? Ei-lo, então, para concluir a minha pessoal historinha: o fim do século está próximo. Eu não o verei. Mas posso muito bem imaginar aquele dia. Será o dia 1° de janeiro de 2000. Um dia de festa. Na noite anterior, alguns fogos a mais e mais bêbados pelas ruas. Todas as redes de televisão competindo em demonstrar maior bom humor, mais alegria, maior transgressão. No dia seguinte, dois amigos se encontram pelo fim da manhã, em consequência da noitada. Qual sublime conversa pensam que eles terão? Falarão do tempo e do que pensam em fazer à tarde. O primeiro diz: “Há um belo concerto no conservatório”. O outro responde: “Prefiro ficar em casa e ver televisão. Estreia um novo programa de auditório, que será muito divertido”.

Hannah Arendt, diante do horror dos campos de extermínio nazistas, inventou a categoria da “banalidade do mal.” Eu, modestamente, tentei prefigurar a banalidade do apocalipse.

NORBERTO BOBBIO

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