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Intertextos, mulher e memória em Volver, de Almodóvar

Rodrigo da Costa Araujo

 

I. ESCRITURAS FEMININAS

 

Rodrigo da Costa Araujo é professor de Literatura da FAFIMA – Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Macaé. Mestrando em Ciência da Arte pela UFF-Universidade Federal Fluminense.
::contato com o auto

É sob o ponto de vista feminino – isto é, das diferentes modulações que as imagens impõem ao resgate icônico da memória – que se procede à comparação mulher e memória em Volver, do famoso cineasta Pedro Almodóvar. As imagens da memória parecem constituir comparações e intertextos como fios costurados com a vida de cada personagem.

Tudo parece constituir um mundo imagético e icônico através de cenas rápidas, poéticas e significativas. Sempre regatas com efeitos musicais que relembram o passado, as pessoas, as situações, fragmentos de um discurso amoroso.

As primeiras cenas do cemitério que resgatam a vida através da morte, faz das mulheres retratos perfeitos do que se quer falar na narrativa que compõem pedaços e fragmentos de cada uma delas. Costurados e entrelaçados, a dor e a morte parecem unir e afastá-las de alguma forma.

Com efeitos femininos e através de um memorial são constituídas texturas de imagens. Retratos, fotografias, descrições, cenas, composições pictóricas, enfim, signos ou conjuntos de signos sensíveis que compõem uma imagem ou conjunto de imagens. Em Volver – esses são os intertextos nos quais a memória se inscreve, conformando e confrontando múltiplas formas e várias gerações, vários olhares. A lembrança dos lugares; a tradição dos retratos na parede; cenas e fotografias expostas ao olhar semiológico dos outros ou encerradas em roupas, malas, odores, sonoplastias, esquecidas ou escondidas. Um filme representando  cenas de uma família em fragmentos.

II. TEXTOS & INTERTEXTOS

 

Os signos e a textura da memória, contudo, parecem reforçar que a vida não se limita a uma memória individual, mas podem encerrar também traços coletivos (de época, lugares, costumes, acontecimentos, lembranças, comidas), tal como na retomada do velório ou  nos cômicos beijos que causam risos a platéia.

Memória e imagem dialogam com o que Blanchot afirma:

“A imagem fala-nos, e parece que nos fala intimamente, de nós. Mas intimamente é dizer muito pouco; intimamente designa então esse nível em que a intimidade da pessoa se rompe e, nesse movimento, indica a vizinhança ameaçadora de um exterior vago e vazio que é o fundo sórdido sobre o qual ela continua afirmando as coisas em seu desaparecimento.”( 1987, p.256).

Os fragmentos relembram ao espectador as marcas que resgatam os elos entre as personagens. O aparecimento e desaparecimento em pequenos flahes. Uma certa nostalgia dos grandes romances como nos fala Barthes, a ficção, enquanto figuração do afeto, é figuração na consistência, de “momentos de verdade”. “ A verdade está na consciência”, escreve em Roland Barthes par Roland Barthes, citando Poe. (1975, p. 63).

Como um apaixonado, o leitor/espectador dos Fragmentos pode se sentir louco, mas irremediável e deliciosamente aderido a si próprio, a seu passado tornado presente, à sua própria vida, a seu próprio corpo.

O leitor/espectador muitas vezes se sente à deriva, como em momentos em que as imagens nem pertencem mais a um personagem e nem mesmo podem ser reenviadas à realidade, a um imaginário ou a uma alucinação… Outras vezes, são as imagens que, evocadas pela memória, em vez de proporcionarem um reconhecimento ao personagem elas retornam , fazem com que este se sinta desmemoriado, tomado pela errância e pelos fantasmas, tal como a mãe – personagem chave das lembranças.

O vento, signo de trágicas recordações, começa e encerra o enredo que ficou registrado num passado e deixou marcas na vida e nas relações entre mãe e filha. A sonoplastia, em forma de citação memorial, lembra o tempo todo que a vida é uma rede que se constrói em citações, lembranças, fluxo de escrituras que se estende entre as cenas. Ver e viver consiste, segundo Barthes, em atravessar as escrituras de que é feito o mundo, escrever(e ver) é citar.

 

Volver lembra o conceito barthesiano de texto escrevível. Uma narrativa escrevível seria, nesse sentido, aquela que desloca o espectador/leitor da função de consumidor para a de produtor. Estando sempre por ser escrito, faz com que o leitor, no jogo, segundo SANTOS (1989, p. 32) “tenha pleno acesso ao encantamento do significante, à volúpia da escritura”.

Memória/desmemoriado, morte e vida, lembranças e construções são pares que fazem dos personagens um retorno ao sonho, ao imaginário, incorporando procedimentos pertencentes ao ilusionismo ou a uma rede de recordações constantes. Em todos os momentos encontramos fragmentos de um discurso amoroso pertencentes ao mundo da memória e da identidade feminina.

Com o uso sistemático e convencional da cor e da música, os cenários, ainda que coloridos, lembrariam os experimentos das fotografias em preto-e-branco expressivo e silencioso das casas.

 

 

 

 

 

III. PERFIS DE MULHER

 

Entre teatro, ironia, fingimento e realidade passeam as narrativas almodovarianas. A crítica ao sistema hegemônico não se limita à situação feminina, antes, porém, instaura um olhar de alteridades, sobretudo quando descreve as contradições humanas. Suas narrativas esbarram na intensidade brutal do cotidiano das pessoas, na exclusão, nas relações de algum tipo de poder, bem como em metáforas ou ironias recorrentes em sua meteórica produção literária.

Nesse museu pós-moderno de ações bizarras, mas extremamente sensíveis, as mulheres transformam o esquecimento em várias tonalidades da memória, caracterizando o que Linda Hutcheon e Fredric Jamenson apontaram como imagens estilizadas pelos universos do pastiche ou da metanarrativa. Diante das histórias que cada uma delas revelam e ajudam a compor o enredo maior é possível perceber traços típicos da estética pós-moderna.

Assim, semiologicamente, Volver pode ser entendido como o conceito de escritura, uma prática significante (um processo de produção de sentidos), pois tudo se oferece, paradoxalmente, “como um silêncio a ser decifrado”, tudo não faz senão interrrogar: “a obra nunca é de todo significante e também nunca é inteiramente clara; ela é, por assim dizer, “sentido suspenso”: ou seja, oferece-se ao leitor como sistema significante declarado,  mas, furta-se-lhe como objeto significado.

Enfim, Volver suscita mundos de fantasmas, ou como diria Barthes, em seu Prazer do texto, “o brio do texto (aqui diria o filme) (sem o qual, em suma, não há texto) seria a sua vontade de fruição: lá onde precisamente ele excede a procura, ultrapassa a tagarelice e através do qual tenta transbordar, forçar o embargo dos adjetivos – que são essas portas da linguagem por onde o ideológico e o imaginário penetram em grandes ondas”.

 

Referências Bibliográficas:

BARTHES, Roland. Fragments d’un discours amoreux. Paris: Seuil, 1977.

______. O Prazer do Texto. Lisboa: Edições 70, 1974

______. Roland Barthes par Roland Barthes. Paris: Seuil, 1975.

______. S/Z. Paris: Seiul, 1970

______. Ensaios Críticos. Lisboa: Edições 70, 1977.

BLANCHOT, Maurice. O Espaço Literário. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.

BUYSSENS, Eric. Semiologia & Comunicação Lingüística. São Paulo: Cultrix. EDUSP, 1972.

GUIMARÃES, César. Imagens da Memória. Entre o Legível e o visível. Belo Horizonte, Ed, UFMG, 1997.

HUTCHEON, Linda. A Poética do Pós-modernismo. Rio de Janeiro: Imago, 1991.

JAMESON. Fredric. Pós-Modernismo – A Lógica Cultural do Capitalismo Tardio, São Paulo: Ática, 2002

SANTOS, Roberto C. Para uma Teoria da Interpretação. Semiologia, Literatura e Interdisciplinaridade. Rio de Janeiro; Forense Universitária, 1989.

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