Crônicas Margarete Hülsendeger

Quando é dificil entender

cena de Quem somos nós?
Margarete Hülsendeger é Física e Mestre em Educação em Ciências e Matemática/PUCRS. É mestra e doutoranda em Teoria Literária na PUC-RS

QUANDO É DIFÍCIL DE ENTENDER

Margarete Hülsendeger

publicado em 04/02/2010 como <www.partes.com.br/cronicas/mhulsendeger/entender.asp

 

Essa lembrança… mas de onde? De quem? Essa lembrança talvez nem seja nossa, mas de alguém que, pensando em nós, só possa mandar um eco do seu pensamento nessa mensagem pelos céus perdida…

Mário Quintana

A mente muitas vezes nos aplica peças difíceis de entender. Com relativa frequência nos deixamos levar por pensamentos aparentemente sem sentido. Outro dia, me peguei pensando em um filme que, há alguns anos, se tornou conhecido no mundo inteiro. O interesse despertado por ele, no entanto, não foi devido a alguma indicação ao Oscar ou mesmo por que entre seus atores havia pessoas muito famosas. Não. Na verdade, ele se tornou conhecido pelo assunto abordado: a Física Quântica. Estou me referindo, é claro, ao filme intitulado “What the bleep do we know?”, em português, “Quem Somos Nós?”.

Sei que estou meio atrasada – afinal, ele foi lançado em 2004, já gerando inclusive uma continuação –, mas meu interesse não é discutir sobre o filme em si, em minha opinião, já bastante debatido. Desejo, na verdade, analisar apenas uma das suas cenas.

Nela, a personagem principal, chamada Amanda (interpretada pela atriz americana Marlee Matlin), encontra-se na entrada de um cinema. Nesse instante, ocorre uma espécie de desdobramento com várias “Amandas” surgindo aparentemente do nada. O objetivo da cena é representar os diferentes caminhos que a Amanda original pode vir a percorrer em sua vida. As consequências que resultarão de qualquer uma dessas escolhas são uma das várias questões levantadas pelo filme.

A cena torna-se interessante porque transmite a ideia de todas essas possibilidades estarem coexistindo no mesmo espaço e tempo. É deixado, no entanto, para a personagem a decisão de resolver por qual caminho seguir. E quando finalmente essa decisão ocorre, apenas uma Amanda permanece, com todas as outras desaparecendo como se jamais tivessem existido.

É, sem dúvida nenhuma, uma imagem intrigante. Contudo, para mim, ela se tornou especial porque me permitiu refletir sobre a estranheza que a passagem do tempo pode muitas vezes nos causar. E aqui não estou falando da velhice versus juventude ou da questão da mortalidade. Estou me referindo ao passado propriamente dito. Como ele pode nos atingir. Como cada um de nós o vê e o interpreta. Enfim, quem fomos nós no dia de ontem em comparação ao que somos no dia de hoje.

É claro que há pessoas que não veem nenhum sentido nesse tipo de pensamento. Para elas, o passado tornou-as apenas mais experientes, com rugas no rosto e dores nas juntas. Elas não se sentem realmente diferentes; só um pouco modificadas.

Entretanto, há aquelas que têm dificuldades em se reconhecer quando resolvem olhar para trás. Consideram-se pessoas diferentes a cada etapa de suas vidas, como se cada momento tivesse sido vivido por alguém distinto daquele que é hoje. Exatamente como na cena do filme. Cada desdobramento, cada possibilidade, é uma pessoa diferente na linha do tempo. E aqui, quem sabe, a ideia mais adequada nem fosse de uma única linha, mas várias, infinitas linhas se entrecruzando de forma aparentemente desordenada e sem sentido, semelhante a uma teia.

Essa falta de identificação que muitos dizem sentir talvez seja o resultado do não entendimento pleno de todas as experiências vividas. Ou, quem sabe, uma maneira de se proteger contra situações de um passado obscuro e complicado. Estranho? Pode ser. No entanto, é sempre bom lembrar que na vida nem tudo é simples ou fácil de se entender ou explicar. Daí a razão da cena do filme ter me causado tanta impressão. Ver aquelas várias “Amandas” tendo de escolher entre as diversas possibilidades de vida, fez-me lembrar dos vários “eus” que, em algum momento no tempo e no espaço, já existiram e hoje estão praticamente esquecidos.

Para concluir, preciso dizer que a cena, assim como todo o filme, tenta transmitir uma série de mensagens sujeitas às mais variadas interpretações. É possível, por exemplo, imaginar que as várias “Amandas”, na verdade, não desapareceram, após a decisão ter sido tomada, mas se incorporaram a “verdadeira” Amanda. Exatamente como ocorre com muitas das experiências do nosso passado. Por essa razão, ele não deve ser ignorado. Ao contrário. É preciso entendê-lo e aceitá-lo. Afinal, para termos alguma chance de responder a pergunta “Quem somos nós?” temos de nos sentir inteiros, sem medo de encarar o passado, o presente ou o futuro.

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