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Não Eliane Brum! Apesar de Belo Monte, precisamos de mitos

Não Eliane Brum! Apesar de Belo Monte, precisamos de mitos

Iara Machado

 

Iara Machado é antropóloga, pesquisadora da arte e da cultura da América Latina – machadoiara@yahoo.com.br

Eliane Brum em seu artigo “Lula, o humano” chama atenção para “os erros do PT” e suas contradições como condição para desqualificar o homem que Lula é, e aniquilar o mito que ele encarna,  que na visão dela é uma narrativa fictícia criada por Lula, e pela antológica foto do jovem Francisco Promer, tirada intencionalmente de cima do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo.

            Ao final, a autora afirma que “Compreender o homem que Lula é, assim como a experiência do PT no poder, é mais importante e urgente para o país do que construir um mito”.

            Todavia, além de cometer um erro de cognição do que seja mito, a autora não joga luz alguma na contenda proposta, e desmorona, assim, na redundância sobre os erros do PT, e na aposta de desconstrução do mito que Lula encarna.  Ora, para compreender o humano que é Lula, é preciso recorrer à história. Entender o homem dentro do seu tempo e o paradigma que o domina. Isso significa compreender o homem na história. É como olhar para José Martí, Sarmiento, Virgulino Lampião, entre outros, com suas temporalidades dentro o tempo, e historicidades dentro da história. Cada um em seu espaço-tempo.

            Sem esta perspectiva a crítica esvazia, apaga as diferenças e, grosso modo, põe tudo e todos no mesmo saco. É preciso, portanto, ver que as contradições que assolam estes líderes humanos não superam seus movimentos de luta na história.  E são eles e suas contradições que fomentam a construção de outro relato, a luz de seus mitos.

            Tais mitos Eliane Brum, não são construídos. Eles existem. E voltando ao Lula, o mito que ele evoca nasce antes dos erros do PT. E sua encarnação também. Os mitos nos habitam a todos, antes mesmo do PT.

Continuando, a autora vai e vem entre a aparente compaixão do humano, o ódio ao Lula e o desejo da aniquilação do mito. Em certo momento se aproxima do significado do mito, mas sustenta a mitagogia e cai no buraco, na linha abissal que separa ciência e mito.  Nesta linha Eliane Brum navega.  Opõe o humano ao mito, da mesma forma que muitos separam a religião da política, atribuindo às missas prestadas à Marisa Letícia, um showmício. Ainda, ao criar a oposição entre humano x mito, vida x mito, perde de vista a lógica dialética, tão necessária para entender tanto o mito quanto o humano, e a relação homem – mito.

            Não, Eliane Brum! O mito vem justamente do humano e suas contradições, e é difícil compreender os erros do PT, assim como de Lampião, de José Martí, e Sarmiento, de Chaves e Morales e até Zumbi dos Palmares.  Mas tento aqui responder a tal contenda. Se não por inteiro, ao menos em parte reiterando a compreensão da luta desses “humanos” para ultrapassar seu tempo, e que não podem ser aniquiladas por seus erros e contradições. Nem tão pouco seus sonhos transformados em ficções. Pois o mito, Eliane Brum, não é uma lenda, ou um mundo fantástico de super-heróis. Isso são mitagogias elaboradas a todo tempo na tentativa de apagar a estética sofisticada da mitopoiética inerente ao mito, motor do tempo, que de morte em morte nasce, e assim sendo não se desfaz.

            Desta forma, o mito, Eliane Brum, não pode ser construído do alto, na fotografia tirada de cima, nem tão pouco com o olhar de fora porque ele vem do olhar de dentro, da base.  Ele persiste no decorrer da história residindo na camada mais profunda do ser humano, superexistindo aos mantos culturais que o revestem, esperando a hora de despontar. Não, Eliane Brum! O mito não é construído como quer a indústria cultural, que ao se apropriar de expressões populares, desfaz seus sentidos. Ao contrário, surge das profundezas das almas diante da iminência da morte, e por isso só pode ser criado em vida, de onde brota trazendo a esperança de volta.

            O mito, Eliane Brum, ah o mito! Ele mora dentro do coração do homem, onde lateja a vontade de vir a ser outro homem, melhor. Daí a necessidade de estar com os seus. Assim, o mito não está apenas na narrativa de quem fala, mas também na mente de quem a ouve. E é nesta gramática das relações humanas, entre corações e mentes, que se constrói uma história, se elabora uma dramaturgia e o mito resplandece.

             Por tudo isso, Eliane Brum, a vida humana de Lula, atrelada aos erros do PT, em nada atrapalha o mito, porque o mito é uma ideia presente em Lula, o humano, e em seus interlocutores, que já conhecem de cor e salteado os erros do PT. E isto, nada importa para eles, para os quais Lula é um líder. Para eles, tanto faz os fracassos ou os sucessos do PT. Para eles, discutir os erros do PT, como disse um metalúrgico do ABC: “deixa p’rá direita, porque roupa suja se lava em casa”.

             Portanto, toda mobilização, a fotografia, as caravanas, os rituais, não dizem respeito a “construir um mito”. O mito não se constrói, porque ele já existe nas entranhas.  No caso de Lula, o humano, o mito encarnado nas profundezas do seu ser, cuja substância é o trabalhador, nasce e renasce a cada ritual, onde se evoca o socialismo para reivindicar sua redenção, que é também a de todos os seus interlocutores. Em síntese, é a libertação do trabalhador.

            Assim, Eliane Brum, os erros do PT, a única coisa que podem nos ensinar é como se constrói o poder em meio a tantos governantes sem mitos. Ou como manter os sonhos em meio ao poder. Mais que compreender o humano de Lula, é mister abranger o mito que ele encarna, porque apenas este pode jogar luz ao humano e à história. Destarte, apesar de Belo Monte, carecemos sim de mitos e seus rituais para ter de volta a utopia que só estas experiências, baseadas em sofisticados pensamentos, podem nos oferecer. Isso, Lula, o humano, conseguiu nos proporcionar. Mobilizou nossos sonhos. E estes são bem maiores que os erros dos PT.

            Não é tentado destruir o mito que superaremos Belo Monte, e tão pouco construiremos um país melhor, porque este como disse, é o motor da história, com todas as suas contradições.

Iara Machado é antropóloga, pesquisadora da arte e da cultura da América Latina.

 

Artigo da Eliane Brum:

https://brasil.elpais.com/brasil/2018/04/09/politica/1523288070_346855.html

 

 

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