Recall: pior sem ele!

A recente onda de recalls de empresas montadoras do ramo automobilístico me fez lembrar do filme O Julgamento Final (Class Action, EUA, 1991).
No filme, um advogado, interpretado pelo magnífico Gene Hackman, aceita o caso de um homem que perdeu a família, os braços e as pernas num acidente automobilístico, e deseja acionar o fabricante do carro.

A causa, em princípio, poderia não ter maiores desdobramentos, mas as circunstâncias do acidente convenceram o advogado de que ali havia, literalmente, fumus boni iuris (fumaça do bom direito), pois, sem nenhum motivo aparente ou causa agravante, o carro se incendiara, sem dar chance de fuga aos seus ocupantes. Além disso, casos similares já haviam sido documentados sobre aquele mesmo modelo de veículo.
O maior problema do advogado, no entanto, estava no fato de sua filha atuar no escritório de advocacia que representava a montadora. A competentíssima jovem nutria terrível rancor pelo pai, que considerava culpado pela infelicidade e morte da mãe.

Isso, no entanto, não a impediu de perceber que havia, de fato, algo errado na postura do fabricante. Os depoimentos e laudos só contribuíram para aumentar sua desconfiança, o que a colocava constantemente em choque com questões de ética profissional.
Num determinado momento, após pressionar a empresa, esta esclareceu, a contragosto:
O modelo em questão era um sucesso de vendas, com dezenas de milhares de unidades vendidas ao longo de mais de dez anos, em várias versões. De fato, havia um problema no veículo, que só foi identificado depois de vários anos: um fio do sistema elétrico roçava no tanque de combustível e o atrito, como o tempo, desgastava o isolamento. Nestas condições, poderiam ocorrer faíscas elétricas, o que potencializava explosões e incêndios. O problema fora corrigido nos novos modelos.
Mas, e quanto aos anteriores?

O estarrecedor foi que, em resposta a esse questionamento, um dos executivos da empresa alegou que haviam pensado nisso, mas eram muitas unidades. Na época, eles fizeram um cálculo atuarial, para comparar os custos do recall, inclusive quanto a prejuízos de imagem que ele acarretaria, em relação a eventuais indenizações, em caso de sinistros. A conclusão foi de que, para a empresa, era preferível arcar com os custos das indenizações, caso perdessem as ações.
O filme teve um final feliz, o que nem sempre ocorre na vida real.
Transportando essa ficção para a realidade atual, a necessidade de recalls denota, sem dúvida, problemas de controle de qualidade nas linhas de produção, o que pode arranhar a imagem das empresas. O desconforto do proprietário também existe, pois ficará inseguro e isso talvez influencie sua tomada de decisão numa futura troca de veículo.

Mas, imaginem se não houvesse o recall, como no filme?
É certo que muitos deles ocorrem depois de acidentes que poderiam ser evitados, se o fabricante já tivesse conhecimento de anomalias. E é praticamente impossível que elas não ocorram em ao menos um lote dos milhares de componentes de um automóvel ou outro produto. Assumir publicamente uma falha e fazer um recall é, portanto, uma demonstração de preocupação com o consumidor. É óbvio que há prejuízos financeiros e de marketing, mas os patrimônios e vidas assim poupados são inestimáveis.
Fica daí, então, uma certeza quase proverbial:
Recall: ruim com ele, muito, muito pior sem ele!

 
Adilson Luiz Gonçalves
Mestre em Educação
Escritor, Engenheiro, Professor Universitário e Compositor

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