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Ser no mundo e com o mundo: princípios fundamentais do pensamento freireano

Ser no mundo e com o mundo: princípios fundamentais do pensamento freireano

Josefa da Conceição Silva*

Max Leandro de Araújo Brito[*]

Resumo

As idéias de Paulo Freire apresentadas no livro de Scocuglia representam uma busca pela compreensão da relevância humana como elemento constitutivo e constituinte do ato de ensinar e aprender. Longe de querer estabelecer paradigmas ou argumentações dogmáticas, Freire buscou destacar a importância das relações sujeito-objeto-sujeito, sujeito-sujeito muito mais do que a relação sujeito-objeto que seria o mais provável, dado o contexto histórico-cultural em que viveu.

Palavras-chave: relevância humana; paradigmas; argumentações dogmáticas

Abstract

Paulo Freire’s ideas presented in the Scocuglia’s book represent seeking to understand the human relevance as a constitutive element of the act of teaching and learning. Instead of enacting paradigms or dogmatic arguments, Freire sought to emphasize the importance of relations subject-object-subject, subject-subject much more than the subject-object relationship that would be most likely, given the historical and cultural context in which they lived.

Key-words: human relevance; paradigms; dogmatic arguments

Introdução

Analisando o contexto político-econômico daqueles idos anos 60, Paulo Freire inquietava-se por ver na educação um instrumento de politização e de democratização do país. Inquietava-se, sobretudo, por perceber a inércia em que se encontrava a educação no país, cujo ensino nada acrescentava à conscientização política da população que gemia sob o fardo da escravidão no campo e na cidade, sem, contudo, tomar consciência de sua condição de subordinação aos desmandos dos poderosos.

Sua condição e vontade de “ser no mundo” e “com o mundo” não lhe permitia analisar passivamente o seu contexto e ficar inerte diante dele, sem esboçar nenhuma reação contra as condições desumanas com que a maioria da população era tratada nas mais diversas instâncias da sociedade, cujos paradigmas estavam voltados para uma visão linear da história, da ciência e da educação, pautados em uma perspectiva positivista.

É justamente nesse contexto de embate de forças contraditórias que eclode a semente do pensamento freireano, por perceber a distância que se apresenta entre o ensinar e o aprender, entre o alfabetizar e o politizar (ou conscientizar politicamente).

Sua obra nasce da prática e se volta para a prática. É o que poderíamos denominar de reflexão na, sobre e para a prática. Não uma prática insípida e sem sentido, mas uma prática cheia de vida, de avanços e retrocessos, “consciente de sua incompletude”, vivida com paixão em suas contradições e, por isso mesmo, apaixonante, fonte de inúmeras reflexões.

Como Freire pensava uma “educação como prática da liberdade”, sua obra não poderia ter outra característica senão o acolhimento, a receptividade de novas idéias, o respeito ao pensamento do outro e a consciência de que os próprios conceitos deveriam ser reformulados à medida que avançava em suas reflexões. Tal posicionamento denuncia o caráter democrático e libertário com que o conhecimento era tratado em sua obra.

Princípios fundamentais do pensamento freireano

Quem lê Scocuglia tem a impressão de estar diante de um estudante apaixonado pelas idéias de seu mestre. Este livro representa um desejo constante de apresentá-lo ao público, despertando nele a vontade de conhecer mais profundamente a obra de Freire.

Nesta obra, o autor procura discutir os conceitos mais presentes na obra de Freire. Na realidade, os conceitos fundamentais e fundantes do seu pensamento político-pedagógico, destacando sua importância e seu processo evolutivo. Busca, sobretudo, contextualizar a evolução de cada conceito, baseando sua análise em diversos títulos do autor estudado.

Inicia discutindo a relação entre educação, desenvolvimento e conscientização, situada em um contexto marcado pelo nacionalismo-desenvolvimentismo, em um momento em que se passava a acreditar na educação como instrumento favorável ao desenvolvimento econômico e social do país. Nesse contexto, propostas inovadoras para a educação encontravam terreno fértil, especialmente as propostas voltadas para a alfabetização de adultos, que tinha no populismo sua maior fonte de motivação.

As idéias que se configuravam nesse momento diziam respeito a uma reforma de base, cujo sustentáculo principal seria a burguesia, considerada como classe mais apta para realizá-la.

Embora esta reforma tenha sido pensada do ponto de vista da burguesia, as propostas de Freire e sua equipe se baseavam na possibilidade de mobilização de “forças políticas dos setores médios e populares” (p.33) cuja organização caracterizaria o chamado “Movimento de Cultura Popular” em Recife/PE e correlatos em outros lugares do país.

Um ponto interessante que Scocuglia chama a atenção é para a contradição presente na realidade histórico-cultural do país no momento em que essas idéias progressistas em relação à educação estavam sendo geradas.

Desse momento histórico destaca-se como contradição a presença do populismo como fator importante na “manutenção do controle e direcionamento das ações populares” (p.34), em cujas bases foram sendo geradas as idéias de educação “como direito das pessoas, contra a massificação, como possibilidade existencial da consciência individual” (loc cit).

Essa contradição entre a manutenção do controle político e a conscientização crítica da realidade através da educação marca o pensamento e a obra de Freire nesse seu primeiro momento, constituindo-a como um pensamento “em trânsito” que deveria atender às contradições de uma sociedade também “em trânsito”, marcada pela crise paradigmática e política que configurou o nascimento de um pensamento pós-moderno.

Do ponto de vista prático, essa contradição podia ser considerada como um problema a enfrentar, especialmente pela história de submissão política que marcava o cotidiano do país naquele momento, herança de momentos históricos anteriores.

Baseado em modelos autoritários e paternalistas, o povo brasileiro havia desenvolvido o que Freire veio a chamar mais tarde de “cultura do silêncio”, a obediência muda aos padrões impostos pelas estruturas de segregação historicamente construídas.

Nesse sentido, pensar uma “educação como prática da liberdade” se constituía, ao mesmo tempo em possibilidade e em desafio a ser enfrentado.

Esse projeto de educação como formadora de seres autônomos não podia, no entanto, se restringir a formação individual dos cidadãos como seres isolados de um contexto. Na realidade, se configurava em uma necessidade de um “projeto de existência nacional” (p.35) cujo bojo de formação era a luta “anticolonialista” e “antiimperialista” que marcava o contexto histórico e social do período, cujo empreendimento exigia “um controle dos aparelhos estatais”, representado, naquele momento, pela possibilidade de eleições, de aumento no contingente de eleitores, nos quais poderiam ser incluídos os indivíduos recém-alfabetizados.

Nessa perspectiva, o trabalho desenvolvido por Freire e sua equipe no denominado “Método Paulo Freire” atendia a duplo propósito condensado em um objetivo, a saber: à “ascensão intelectual das camadas populares”, que representava de um lado a conscientização política dos alfabetizados, e por outro um acréscimo ao número de eleitores, o que era visto pelos políticos populistas como um importante fator de sua manutenção no poder.

Do ponto de vista político-pedagógico, no entanto, o objetivo de Freire e sua equipe era traçar, no interior desse contexto, um movimento de resistência à ordem dominante que estimulasse o estabelecimento de uma consciência crítica da própria realidade educativa, ultrapassando um estágio de consciência voltado para a compreensão de que os fatos se justificam por eles mesmos, através de explicações superficiais e apressadas de uma realidade estática e imutável.

Nesse sentido, a educação deveria ultrapassar o “anacronismo” do ensino excessivamente ornamental e literário e seguir uma proposta de educação ativa, sintonizada com a realidade e “adequada ao desenvolvimento nacional e à democracia liberal” (p.38).

Tal proposta tinha como forte base filosófica o existencialismo e o personalismo, cujos pressupostos colocavam o sujeito como peça principal de um mundo de relações estabelecidas como o conhecimento, onde o próprio mundo (na categoria de objeto) tem forte influência da subjetividade do indivíduo em sua constituição.

Estabelece-se, assim, a idéia do sujeito da aprendizagem como “ser de relações” não somente consciente de sua existência individual “no mundo” mas também “com o mundo”, ultrapassando a consciência ingênua dos fatos e chegando à compreensão de que ele próprio faz a sua história e é feito por ela.

Considerações finais

A descoberta de si mesmo como ser fabricante de cultura, cujas ações implicariam mudanças estruturais na sua relação no mundo e com o mundo é o que constitui o cerne do pensamento freireano, na busca por uma educação como processo de “conscientização pelo diálogo” e como instrumento na conquista pela liberdade. Nesse processo, o homem precisa libertar-se dos grilhões da dominação, da consciência ingênua do “ser em si”, partindo para uma consciência crítica do “ser no mundo e com o mundo”, construindo uma consciência de classe que supere as relações interpessoais e mergulhe em uma perspectiva intersubjetiva, onde os sujeitos se vêem como co-autores de uma história que é permeada pela interação recíproca, na construção de um mundo mais ético, mais igualitário e mais plural.

Em conseqüência disto, se coloca mais uma vez um desafio à educação: reduzir a desigualdade, através de um projeto de desenvolvimento econômico sustentável baseado na participação responsável do todos os membros da sociedade, tendo em vista a ativação dos recursos de cada país, seus saberes, seus agentes locais, na criação de novas alternativas que afastem os temores da desumanização frente aos avanços tecnológicos.

Assumindo esta missão, a educação se depara com um dilema difícil de resolver: Se por um lado é acusada de prima-dona das exclusões sociais, por outro, recebe o apelo para que possa restabelecer a trama do tecido social que aparece rompido pelas inúmeras mudanças ocorridas nesse período. Nessa perspectiva, surge como um fator de coesão, esforçando-se para promover o respeito pela diversidade e pela especificidade dos indivíduos.

Nesse sentido, cabe ao sistema educativo preparar cada indivíduo para exercer seu papel na sociedade, não fazendo-o aderir a valores forjados no passado, mas levando-o a construir seu próprio sistema de valores, agindo de forma madura, sem deixar-se levar pelas influências dominantes. Com maturidade e espírito de abertura, o indivíduo será capaz de desenvolver uma aprendizagem independente e permanente, desde a infância e ao longo da vida, desenvolvendo uma competência crítica e autônoma.

Referência Bibliográfica

SCOCUGLIA, A. C. A História das idéias de Paulo Freire e a atual crise de Paradigmas. João Pessoa, Editora Universitária, 2003.

Como citar este artigo: SILVA, Josefa da Conceição; BRITO, Max Leandro de Araújo. Ser no mundo e com o mundo: princípios fundamentais do pensamento freireano. P@rtes, São Paulo, 2011. Disponível em: <http://www.partes.com.br>. Acesso em: .


* Mestranda em Ciências da Educação, Turma 4, FIP – Brasil, Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias – ULHT. Campo Grande, 376, 1749-024 Lisboa, Portugal. E-mail: jose_fada@hotmail.com

[*]Mestrando em Administração pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN. E-mail: maxlabrito@yahoo.com.br.

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