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Positivismo, historicismo e marxismo: contradições, dilemas e contribuições para as ciências sociais

LÖWY, Michael. As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen: marxismo e positivismo na sociologia do conhecimento. 9ª Ed. São Paulo: Cortez, 2007. 280p.

 

Positivismo, historicismo e marxismo: contradições, dilemas e contribuições para as ciências sociais

 

Antonio Gil da Costa Júnior *1

Carlos Eduardo de Mira Costa *2

 

Antonio Gil da Costa Júnior -Doutorando em Administração pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN. E-mail: antonio.gil@gmail.com

Löwy inicia sua obra levantando algumas questões muito discutidas metodologicamente e epistemologicamente no cerne das ciências sociais: se é possível a objetividade; se o modelo científico-natural é operacional; se é concebível uma ciência livre de julgamentos de valor e pressupostos político-sociais; e se é possível eliminar as ideologias do processo de conhecimento científico-social. O debate dessas questões acaba por atrelar-se a três correntes de pensamento: o positivismo, o historicismo e o marxismo. Assim o livro tem como objetivo a apreciação das contradições, dilemas e contribuições dessas perspectivas para a construção de um modelo de objetividade próprio das ciências sociais e uma sociologia crítica do conhecimento.

Para atingir o propósito do livro, Löwy designa o termo visão social de mundo, um instrumento conceitual apto a abranger a amplitude do fenômeno sociocultural, principalmente, em dois aspectos: o primeiro o conjunto relativamente coerente de ideias sobre o homem, a sociedade, a história, e sua relação com a natureza; e segundo que esta visão de mundo está ligada a certas posições sociais, isto é, aos interesses e à situação de certos grupos e classes sociais. Assim as visões de mundo podem ser ideologias (forma de pensamento orientada para a reprodução da ordem estabelecida) ou utopias (aspiração de um estado não existente das relações sociais); podem combinar elementos ideológicos e utópicos; ou até mesmo ter um caráter utópico num dado momento histórico para tornar-se, em seguida, uma ideologia.

É neste sentido que Löwy tem como foco mostrar, apoiando-se em uma tradição historicista e nas ideias fundamentais do marxismo, que a objetividade nas ciências sociais não pode constituir no estreito molde do modelo científico-natural e que, ao contrário do que pretende o positivismo em suas múltiplas variantes, todo conhecimento e interpretação da realidade social estão ligados, direta ou indiretamente, a uma das grandes visões sociais de mundo, a uma perspectiva global socialmente condicionada.

Carlos Eduardo de Mira Costa – Mestrando em Meio Ambiente e Recursos Hídricos pela Universidade Federal de Itajubá – UNIFEI. E-mail: cadumira@gmail.com

Assim Löwi faz uma analogia com a lenda do Barão de Münchhausen, um herói pitoresco que consegue escapar de um pântano onde ele e seu cavalo estavam sendo tragados, ao puxar a si próprio pelos cabelos. A “boa vontade” positivista, a objetividade das pressuposições éticas, sociais ou políticas para o autor, é uma ilusão ou uma mistificação. Ou seja, os que pretendem ser seres objetivos são aqueles que nos quais as pressuposições estão mais profundamente enraizadas.

Löwy procurar levantar e compreender a significação específica e as implicações da doutrina positivista sobre a objetividade/neutralidade científico-social, examinando a sua gênese histórica e o seu desenvolvimento, assim como a sua relação com o conjunto da problemática positiva enquanto visão de mundo. O positivismo nasce como um legítimo descendente da filosofia do Iluminismo. É o enciclopedista Condorcet quem contribui da maneira mais direta e imediata no nascimento da nova corrente, na busca de uma ciência social neutra e imune aos “interesses e paixões” das classes dominantes, quanto a física ou a matemática. Assim, apoiando-se no método de Bacon e Descartes, para as ciências econômicas e políticas, Condorcet busca uma ciência social livre de preconceitos, contra a ideologia tradicionalista, principalmente clerical, do antigo regime. É nesse sentido que Saint Simon, discípulo de Condorcet, quem afirma que a ciência do homem deve-se tornar positiva (Simon foi o primeiro a empregar este termo) utilizando os métodos das ciências naturais.

Mas, como mostra Löwy, é Augusto Comte, considerado o fundador do positivismo, que transmuta a visão de mundo positivista em ideologia, em um sistema conceitual que tende à defesa da ordem estabelecida. Assim, desde sua obra de 1825, Considerações filosóficas a respeito das ciências e dos sábios, Comte utiliza o princípio metodológico de uma ciência natural da sociedade. Se Comte cunhou o termo sociologia, é Durkheim quem é considerado o pai da sociologia positivista enquanto disciplina científica. Löwy destaca um trecho de As regras do método sociológico: “A primeira regra e a mais fundamental é a de considerar os fatos sociais como coisas”, ou seja, era necessário estender a ideia das leis naturais aos fenômenos humanos. Löwy enfatiza que é necessário observar como um conceito que havia servido de instrumento revolucionário no século XVIII altera o seu sentido no século XIX, para se tornar, com o positivismo, uma justificação científica da ordem social estabelecida.

Em sua busca histórica, Löwy destaca também Max Weber. Mesmo não considerando-o como um autêntico sociólogo positivista, com algumas concepções metodológicas bastante distantes do positivismos, ele destaca-se em um ponto chave em que há uma convergência entre sua teoria da ciência e a teoria dos positivistas, o postulado da neutralidade axiológica das ciências sociais, um imperativo para os pesquisadores científicos: a separação total e rigorosa entre fatos e valores, constatações e julgamentos. Outro autor que Löwy destaca é Karl Popper, que procurou evitar os impasses mais evidentes do positivismo. Mesmo reconhecendo o caráter necessário, inevitável e cientificamente indispensável dos “pressupostos” ou pontos de vista “preliminares”, Popper discorda de um aspecto essencial e decisivo, recusando distinguir a objetividade das ciências sociais das ciências naturais.

Löwy esclarece que a relação ideologia/conhecimento nas ciências sociais não é somente um confronto entre o positivismo e o marxismo. Existe uma terceira corrente fundamental: o historicismo. Para o autor, “os autores marxistas ou positivistas mais fecundos são aqueles que levaram a sério o historicismo na elaboração de sua teoria da ciência”. O historicismo contém em seu cerne uma dimensão relativista: se todo fenômeno social ou cultural é histórico (portanto limitado no tempo), o ponto de vista do historiador não seria ele próprio historicamente relativo? Para Löwy, a distinção que Dilthey estabeleceu entre as ciências do espírito e as ciências da natureza se tornou clássica e um ponto de referência obrigatório para as ciências sociais: primeiro a identificação do sujeito e do objeto (ambos pertencem ao universo cultural e histórico); segundo a unidade inseparável dos julgamentos de fato e valor; e terceiro a necessidade de compreender a significação vivenciada dos fatos sociais (enquanto a ciência natural pode se limitar a uma explicação exterior dos fenômenos).

Mas é o marxismo que Löwy considera como a primeira corrente a colocar o problema do condicionamento histórico e social do pensamento e a “desmascarar” as ideologias de classe por detrás do discurso pretensamente neutro e objetivo dos economistas e outros cientistas sociais. Para Marx a obra, por exemplo, de um economista pode ser fundamentada sobre certas pressuposições ideológicas burguesas e ter, contudo uma grande importância científica. É por isso sua distinção entre “clássicos” e “vulgares” nos trabalhos econômicos e que define, em uma mesma perspectiva burguesa, um pólo autenticamente científico e um polo superficial e apologético, desprovido de valor do ponto de vista do conhecimento.

De acordo com Marx a problemática, ou seja, o sistema de questões, que define o campo cognitivo de uma ciência. Para ele muitos clássicos não abordaram certas questões essenciais. Desta forma, apesar da profundidade científica de certos autores clássicos, estes “continuam prisioneiros do horizonte burguês”, e por isso não podiam aprender certos aspectos decisivos da realidade socioeconômica. Löwy destaca que o poder da ideologia positivista era tal, no fim do século XIX e início do século XX, que acabou por penetrar também na doutrina do movimento operário socialista à época da Segunda Internacional. É nesse momento que aparecem concepções que visavam fazer do marxismo uma teoria “puramente científica”, que escaparia às determinações sociais e às ideologias (que ficariam conhecidas como “princípio da carruagem”, termo criado por Max Weber).

Löwy realça o marxismo historicista como uma corrente metodológica no seio do pensamento marxista, que se distingue pela importância atribuída à historicidade (dialeticamente concebida) dos fatos sociais. Nesta corrente destaca-se Lukács, que considera toda forma de conhecimento da sociedade necessariamente ligado à consciência de uma classe social, a seu ponto de vista. Para ele a diferença entre o marxismo e o pensamento burguês não é puramente científica, puramente cognitiva. Em sua visão o pensamento burguês é contemplativo, segundo o método científico-natural. O ponto de vista do proletariado, pelo contrário, visa a transformação revolucionária da realidade social, o que instaura uma relação dialética entre o sujeito e o objeto, onde o proletariado é ao mesmo tempo o sujeito e o objeto do conhecimento e da história.

Outro autor destacado é Goldmann. Para ele, se o sujeito é idêntico ao objeto no conhecimento histórico e social, a ciência é, ao menos parcialmente, consciência social, consciência coletiva da classe sobre seu ser social e seu lugar nas estruturas da sociedade global. Evidentemente, em tal ciência/consciência ligada à visão de mundo e aos interesses de uma classe social, é impossível distinguir radicalmente julgamento de valor e julgamento de fato. Sua separação absoluta nas ciências humanas é uma ilusão positivista clássica que domina desde o século XIX até hoje o pensamento universitário.

Outra corrente examinada por Löwy é a Teoria Crítica da Escola de Frankfurt, principalmente nas obras de Horkheimer, Marcuse e Adorno. Em uma explicação consistente, o autor salienta que uma das características essenciais da Teoria Crítica é sua negação irreconciliável da ordem estabelecida e seu antipositivismo (ligadas e manifestadas pela dialética negativa), sendo radical na recusa da doutrina positivista de uma ciência social “sem pressuposições”, “livre de julgamentos de valor” ou “axiologicamente neutra”, que pretende se limitar à coleta e classificação de “fatos” puramente empíricos, como se a seleção dos fatos e sua reconstrução teórica não implicasse necessariamente certas pressuposições e uma certa orientação. Para a Escola de Frankfurt, a apologia de uma ciência “livre de julgamento de valor” não é senão uma tentativa de reduzir a reflexão teórica e um “humilde criado completamente a serviço dos objetivos institucionais da sociedade industrial”.

Löwy também ressalta a ideologia estalinista no marxismo. Para o autor, a URSS foi formada por uma camada social burocrática separada e com interesses sociais distintos. Para Löwy esta classe não seria uma classe no sentido marxista do termo, mas um estamento definido por critérios político-ideológicos, de forma análoga à ordem “clerical” das sociedades pré-capitalistas. Assim a doutrina stalinista é a expressão do ponto de vista desta camada burocrática. E como não sendo uma classe social, ela não é capaz de criar uma nova visão social de mundo, se contentando com a deformação do marxismo e sua transformação em uma ideologia conservadora de um poder, na dominação de uma casta social privilegiada.

Finalizando a obra, Löwy destaca que a formação do modelo científico-natural de objetividade, a constituição de uma ciência da natureza livre de julgamentos de valor e de pressupostos ideológicos, foi o resultado de vários séculos de desenvolvimento do capitalismo. Entretanto, existe uma diferença qualitativa quanto ao papel, a importância e a significação das visões de mundo nas ciências humanas e nas ciências naturais. O positivismo insiste em negar esta diferença, identificando as leis sociais e as leis da natureza, e dissolvendo as ciências sociais e naturais no meio homogêneo de um só método científico e de um só e único modelo de objetividade.

Querer aplicar ao domínio das ciências sociais o modelo de objetividade científico-natural advém de uma ilusão ou de uma mistificação; esta consiste em apelar ao cientista para que ele abandone seus valores, seus “preconceitos” ou sua ideologia, isto é, que ele aja segundo o “princípio do Barão de Münchhausen”! Löwy esclarece que toda ciência implica opção. Esta opção nas ciências sociais e históricas é ligada a certos valores, pontos de vista preliminares e pressuposições axiológicas que determinam as questões que se colocam em relação a realidade social, à problemática da pesquisa.

 

*1 Doutorando em Administração pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN. E-mail: antonio.gil@gmail.com

*2 Mestrando em Meio Ambiente e Recursos Hídricos pela Universidade Federal de Itajubá – UNIFEI. E-mail: cadumira@gmail.com

 

Como citar este artigo: COSTA JÚNIOR, Antonio Gil; COSTA, Carlos Eduardo de Mira. Positivismo, Historicismo e Marxismo: contradições, dilemas e contribuições para as ciências sociais. P@rtes, São Paulo, dezembro de 2013. Disponível em < http://www.partes.com.br>.

 

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