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Duas mulheres da zona rural e seus mundos: uma discussão com/a partir de Paulo Freire

 

Duas mulheres da zona rural e seus mundos: uma discussão com/a partir de Paulo Freire

 

Darlene Rosa da Silva*

Dirlei de Azambuja Pereira**

 

Darlene Rosa da Silva – Pedagoga no Instituto Federal Sul-rio-grandense/Campus Visconde da Graça – Pelotas/RS. Integrante do Grupo de Pesquisa HISALES. Formada em Pedagogia (UCPEL/2005), Especialista em Educação Básica: Teoria e Prática Docente (URCAMP/2007), Mestre em Educação (UFPel/2010). E-mail: darlennerosa@yahoo.com.br

Resumo: O artigo faz uma discussão inicial sobre alguns aspectos presentes nos mundos da vida de duas mulheres residentes nas localidades Costa do Bica e Paredão, ambas situadas na zona rural de Piratini/RS/Brasil, e o pensamento de Paulo Freire. Acreditamos que o debate em torno dessas histórias e a teoria freiriana permite a constituição de reflexões acerca do modo de produção da vida no sistema social vigente, bem como potencializa a edificação de uma análise crítica sobre o papel da educação no processo de humanização.

Palavras-chave: Mulheres, Mundo da Vida, Paulo Freire, Educação.

 

Abstract: The article makes an initial discussion of some aspects present in the worlds of life of two women living in the Costa Bica and Paredão localities, both located at the rural area of Piratini/RS/Brazil, and Paulo Freire’s thought. We believe that the debate around these stories and Freire’s theory allows reflections on the way of life production in the present social system, and enhances the building of a critical analysis of the role of education in the process of humanization.

Key-words: Women, World of Life, Paulo Freire, Education.

 

 

 

 

“Cada um de nós é um ser no mundo,

com o mundo e com os outros.

Viver ou encarnar esta constatação evidente,

enquanto educador ou educadora,

significa reconhecer nos outros […]

o direito de dizer a sua palavra”.

 

Freire (1997, p. 26).

 

 

“O ser humano é, naturalmente,

um ser da intervenção no mundo

à razão de que faz a História.

Nela, por isso mesmo,

deve deixar suas marcas de sujeito

e não pegadas de puro objeto”.

 

Freire (2000, p. 119).

 

 

Dirlei de Azambuja Pereira – Integrante do Grupo de Pesquisa FEPráxiS. Formado em Pedagogia (UFPel/2006), Especialista em Pedagogia Gestora (FACVEST/2008) e em Mídias na Educação (UFSM/2011), Mestre em Educação (UFPel/2010) e Doutorando em Educação (UFPel). Bolsista CAPES/Demanda Social. E-mail: pereiradirlei@gmail.com
Uma primeira versão desse artigo foi publicada nos Anais do VIII Colóquio Internacional Paulo Freire – Educação como Prática da Liberdade: saberes, vivências e (re)leituras em Paulo Freire, evento realizado em Recife/PE, no ano de 2013.

Este texto decorre de um estudo maior apresentado, em 2010, no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Portanto, para esse escrito[1], trazemos, como mote problematizador, os resultados de uma pesquisa quanti-qualitativa que teve como foco conhecer o nível de escolaridade da população residente nas localidades do Paredão e da Costa do Bica, situadas na zona rural do município de Piratini/RS. Em maio de 2007 e em janeiro/fevereiro de 2008, foram mapeadas, por meio de visita domiciliar, 114 famílias que residiam nessas localidades. Através de uma entrevista estruturada, foi delineado o perfil educacional, cultural e socioeconômico de 344 sujeitos, entre homens, mulheres e crianças. No entanto, em algumas residências, houve a realização de entrevistas semi-estruturadas com o intuito de conhecer as histórias de vida dessas pessoas com relação à escolaridade ou a inexistência dela. Partindo desse pressuposto, neste ensaio, relataremos as histórias de duas mulheres: a primeira, moradora na localidade Costa do Bica, que se alfabetizou sozinha depois de adulta, e a segunda, analfabeta, residente no Paredão, que através da sua linguagem denuncia a exclusão sentida pelo povo dessa região.

 

Antônia[2] era indígena, agricultora, morava com o marido e com quatro dos seis filhos que o casal teve. A partir do contato mantido com ela, em 2008, foi possível vislumbrar alguns aspectos da sua história, em especial, a luta de Antônia contra o analfabetismo. Em um determinado momento da entrevista, ao dissertar sobre a pouca escolaridade dos filhos e das filhas, Antônia afirmou: “Pra mim é um fracasso total os meus filhos não ter continuado a estudar, sendo que foi por força de vontade que aprendi. Por isso eu achava que meus filhos iam adorar estudar” (ANTÔNIA, 07/01/2008).

 

 Na fala de Antônia está explícito o sentimento de frustração diante do abandono da escola por parte de seus filhos. Aqui, apenas como um brevíssimo comentário, é interessante observar que não foi somente os filhos de Antônia que desistiram da escola. A escola também desistiu deles. A cultura de que são sempre os alunos que desistem da escola é dada como a única verdade existente no que se refere a essa questão. O inverso (a escola ser também responsável pelo abandono dos alunos) não é legitimado pela lógica opressora. Voltemos à história de Antônia. Ao ser questionada sobre como aprendeu a ler, ela nos conta que esse processo foi solitário e que ocorreu depois de adulta, através dos rótulos de produtos:

Eu pegava tudo: era caixa, era vidro, qualquer coisa que eu sabia o que tava escrito e, então, eu ficava olhando. Rótulos que eu sabia, ou remédio que eu sabia, ou eu perguntava a palavra pra uma pessoa e ela dizia, e eu ficava ali olhando e repetindo e foi por aí que eu aprendi […] aquela loucura, desde pequenininha, aquela vontade de aprender a ler (ANTÔNIA, 07/01/2008).

Antônia não frequentou a escola quando estava com a idade considerada como própria para tal atividade, devido à ausência de uma instituição de ensino onde morava, mas, quando adulta, buscou alfabetizar-se, realizando a “loucura… de aprender a ler” (palavras suas). Este esforço pessoal é relatado com entusiasmo e como o resultado de momentos de angústia e dedicação, que a levaram a inserir-se na cultura escrita.

Entre as estratégias que Antônia utilizou para aprender a ler, está o ato de observar, de ficar olhando e repetindo, de perguntar para outra pessoa. Os rótulos disponíveis aproximaram-lhe de um mundo do qual estava excluída, o mundo das letras, da cultura escrita.

Ao incorporar o ato de ler em suas práticas cotidianas, Antônia insere-se no mundo da leitura. Em seu relato, argumenta que através da leitura “a gente entra numa viagem, a gente faz uma viagem que é só da gente. Depois de eu começar a ler uma coisa eu me perco. Olha, não tem um passeio, não tem nada melhor que um livro bom e que tu consiga ler” (ANTÔNIA, 07/01/2008). É interessante destacar que no lugar onde residia Antônia não havia locais para aquisição ou empréstimo de livros, revistas e jornais. No entanto, ela engendrou algumas estratégias para desenvolver a prática de leitura. Antônia morava em uma escola desativada. Este fato permitiu que ela resgatasse muitos livros que foram desprezados no prédio, por ocasião do fim das atividades escolares naquele local. Assim, os livros da antiga escola, quando jogados no lixo, foram resgatados por ela devido a sua vontade de aprender a ler e, desde aquele tempo, passaram a compor a sua biblioteca pessoal, da qual tem muito orgulho.

Além da história de Antônia, outra nos marca profundamente: é a de Maria, uma senhora que dizia ter 80 anos de idade, analfabeta, indígena, mãe solteira, residente na localidade Paredão e que morava em uma casa de dois cômodos de barro e santa-fé, sem água encanada e energia elétrica. Antes de chegarmos à casa de Maria, foi possível avistá-la de longe, puxando uma corda que estava presa a galhos de árvores. Na outra mão, ela portava um facão. Maria é uma senhora muito gentil que, tão logo é explicitado o motivo da visita de desconhecidos, até então para ela, não titubeia a fazer o convite para que entrássemos em sua casa. Ao ser ligado o gravador, com a sua devida permissão, dá-se início a uma conversa descontraída até o momento em que uma pergunta é feita: “Qual é o seu nome?”. Em uma fração de segundo, a sua expressão facial muda significativamente. Após alguns instantes, Maria (26/05/2007) rompe o silêncio e diz: “Não sei senhora, eu me esqueci senhora. Eu disse que não ia dá mais meu nome [pausa]. A senhora pode escutá? [pausa] Eu não ia dá mais meu nome porque eu dô meu nome e a gente não recebe nada sinhô. Tudo recebe em Piratini e nóis aqui não recebemo nada sinhô”.

Essa é Maria, uma senhora que, diante de todas as mazelas a que estão submetidos os oprimidos deste mundo, ainda, do seu jeito, indigna-se frente aos privilégios de alguns em detrimento do sofrimento de muitos. Maria, ao expressar a recusa de dizer o seu nome em decorrência daquilo que muito lhe foi prometido e nada cumprido, evidencia o descaso do poder público e do modelo social capitalista diante de suas necessidades básicas. A história de opressão vivida por Maria, infelizmente, não é uma exceção. Ela é muito mais comum do que pensamos. A denúncia dessa moradora da zona rural, que sobrevivia de doações realizadas pelos vizinhos, nos mostra que a luta contra a opressão não pode ser realizada somente por aqueles que estão sujeitos às condições mais desumanas do viver hoje. Pelo contrário, ela é (e deve ser) uma busca coletiva. Na medida em que uma mulher (ou um homem) vive nessas condições, enquanto seres vocacionados para a humanização, é nosso dever amoroso lutarmos com ela por um futuro verdadeiramente justo e igualitário.

Ditas estas palavras, seria interessante questionar: em que medida as vivências dessas duas mulheres dialoga com o pensamento de Paulo Freire? Ao termos a oportunidade de conviver com Antônia e Maria, em um momento específico de investigação, acreditamos que refletir sobre as histórias dessas duas mulheres à luz de alguns pressupostos teórico-freirianos tornou-se imperativo. Primeiro, porque Antônia e Maria, ainda que nessa ocasião estejamos apresentando apenas excertos de suas entrevistas, nos convidam a refletir sobre as leituras que fazem de seus mundos (aqui utilizamos o plural para evidenciar as especificidades que estão circunscritas em cada história de vida). Segundo, porque essas mulheres, por meio de suas falas (ainda que no caso de Maria isso seja mais evidente), fazem uma denúncia muito clara sobre os processos de desumanização vivenciados. Se o mundo escolarizado não chegou até Antônia e, mesmo contra a corrente, ela conseguiu se alfabetizar, no caso de Maria o sistema lhe usurpou todas as condições dignas e imprescindíveis para um bem viver.

Ao dialogarmos com suas vidas, acreditamos que Freire, através de suas obras, nos permite refletir sobre a necessidade de problematizarmos as histórias que residem em cada pessoa e que, na maioria das vezes, passam a integrar uma estatística e, assim, escondem rostos, falas, dores e um vasto mundo de opressão que precisa ser descortinado. Ainda caberia uma segunda pergunta frente ao escopo desse ensaio: que relação há entre as histórias de Antônia e Maria e o ato educativo? Pois bem, respondemos: tudo. Se entendermos que educar é humanizar, histórias de vida, como as de Maria e de Antônia, devem ser trazidas sempre ao palco da reflexão porque elas nos permitem debater sobre o papel da educação para além das paredes das escolas e dos espaços formais. Enquanto uma mulher ou um homem estiver à mercê de situações como as vivenciadas por essas duas senhoras, é nossa tarefa ética lutar por um mundo socialmente justo e humanamente digno. E isso é, também, uma tarefa inerente (senão a maior) da educação.

 

 

Referências

ANTÔNIA. Entrevista. [07 jan. 2008]. Piratini/RS/Brasil. Entrevista concedida à Darlene Rosa da Silva e Dirlei de Azambuja Pereira.

FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. 35. ed. São Paulo: Cortez Editora, 1997.

________. Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: Editora UNESP, 2000.

________. Pedagogia do oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999.

MARIA. Entrevista. [26 mai. 2007]. Piratini/RS/Brasil. Entrevista concedida à Darlene Rosa da Silva e Dirlei de Azambuja Pereira.

SILVA, Darlene Rosa da. Aspectos socioeconômicos e de (não)escolaridade dos moradores do Paredão e da Costa Bica (Piratini, RS). 2010. 151f. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Educação – Faculdade de Educação – Universidade Federal de Pelotas, Pelotas.

 

Como citar:

 

SILVA, Darlene Rosa da; PEREIRA, Dirlei de Azambuja. Duas mulheres da zona rural e seus mundos: uma discussão com/a partir de Paulo Freire. Revista P@rtes, São Paulo/SP, Jan./2015. Disponível em <http://www.partes.com.br/2015/02/10/duas-mulheres-da-zona-rural-e-seus-mundos-uma-discussao-coma-partir-de-paulo-freire/>

 

 

* Pedagoga no Instituto Federal Sul-rio-grandense/Campus Visconde da Graça – Pelotas/RS. Integrante do Grupo de Pesquisa HISALES. Formada em Pedagogia (UCPEL/2005), Especialista em Educação Básica: Teoria e Prática Docente (URCAMP/2007), Mestre em Educação (UFPel/2010). E-mail: darlennerosa@yahoo.com.br

** Integrante do Grupo de Pesquisa FEPráxiS. Formado em Pedagogia (UFPel/2006), Especialista em Pedagogia Gestora (FACVEST/2008) e em Mídias na Educação (UFSM/2011), Mestre em Educação (UFPel/2010) e Doutorando em Educação (UFPel). Bolsista CAPES/Demanda Social. E-mail: pereiradirlei@gmail.com

[1] Uma primeira versão desse artigo foi publicada nos Anais do VIII Colóquio Internacional Paulo Freire – Educação como Prática da Liberdade: saberes, vivências e (re)leituras em Paulo Freire, evento realizado em Recife/PE, no ano de 2013.

[2] Usamos pseudônimos ao nos referirmos as duas entrevistadas.

 

 

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