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Desafios do estágio supervisionado no contexto das políticas brasileiras de formação de professores da educação básica

DESAFIOS DO ESTÁGIO SUPERVISIONADO NO CONTEXTO DAS  POLÍTICAS BRASILEIRAS DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES DA EDUCAÇÃO BÁSICA

 

Vilma Aparecida de Souza[1]

Maria Aparecida Guerra Lage[2]

 

Resumo:

O presente artigo focaliza desafios do Estágio Supervisionado na formação de formação de professores da Educação Básica, frente às políticas brasileiras de formação de professores no cenário das reformas educacionais implementadas a partir dos anos 1990. Além disso, situa os embates de educadores contra os descaminhos instituídos pelas reformas, buscando indícios para repensar rumos para superar tais desafios.

Palavras-chave: Formação Docente; Estágio Supervisionado; Prática educativa

 

Abstract

This article focuses on the challenges Supervised Internship in the formation of formation of Basic Education teachers, compared to Brazilian teacher training policies in the field of educational reforms implemented from the year 1990. Moreover, located the clashes educators instituted against the waywardness reformers, seeking clues to rethink directions to overcome such challenges.
Keywords: Teacher Training; Supervised Internship; educational practice 

 

Ranços e avanços na Formação de Professores da Educação Básica

Vilma Aparecida de Souza – Doutora em Educação. Professora do Curso de Pedagogia da Universidade Federal de Uberlândia- FACIP – Faculdade de Ciências Integradas do Pontal.

A legislação educacional brasileira (LDB, lei 9394/96), na década de 1990, esteve a serviço do projeto de reforma do Estado, com o objetivo de adequar o ensino brasileiro às transformações no mundo do trabalho provocadas pela globalização econômica, pelas novas tecnologias e pelas técnicas de gerenciamento da produção.

Essas políticas introduzem no cenário brasileiro não somente um novo modo de compreensão da formação de professores e do próprio professor como, também, criam novas instâncias formadoras, tais como o Curso Normal Superior e os Institutos Superiores de Educação. Trata-se de instâncias que estabelecem uma lógica de estreita articulação entre as agências formadoras e os sistemas de ensino. Essas políticas, portanto, induzem reformas que definem os conhecimentos considerados básicos para os cursos de formação dos professores da Educação Básica, limitando-se à ênfase das competências.

Brzezinski (2001) afirma que, no processo de construção das diretrizes curriculares para a formação de professores, ocorre uma separação entre dois mundos na sociedade brasileira: o mundo do sistema – o oficial – e o outro, o mundo vivido – o real. De um lado, aporta-se o mundo do sistema que, ancorado nas políticas de princípios neoliberais, abraça a globalização excludente reafirmando parcerias com organismos internacionais. Por outro lado, o mundo vivido, construído historicamente desde 1980, em lutas travadas pelo Movimento Nacional de Educadores, o qual propõe que seja adotada uma política global de formação e profissionalização docente, precisa considerar

[…] a Universidade como locus de formação inicial e promover a valorização do profissional da educação por mecanismos adequados de formação continuada, de melhoria das condições de trabalho, de uma carreira do magistério estimulante e de salários dignos (BRZEZINSKI, 2001, p. 119).

Maria Aparecida Guerra Lage – Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação, da Universidade Federal de Uberlândia-MG.
Professora efetiva de Biologia da Escola Estadual de Uberlândia, MG. Email: maglage@terra.com.br

A referida autora e colaboradores, em um documento apresentado como contribuição da ANPEd (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação) em 2001, alertavam, ainda, que seria imprescindível avançar nas discussões sobre as propostas de “Diretrizes para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica, em Cursos de Nível Superior”, no que se referia à organização institucional e curricular da formação inicial de profissionais para a educação básica. Nesse sentido, apresentaram, inclusive, algumas propostas:

  1. a) a recomendação explícita da adoção da base comum nacional, com enfoque na docência, para todos os cursos que formam profissionais para a Educação, para que se garanta unidade para a multiplicidade de experiências curriculares, sem as limitações de um currículo mínimo e sem prejuízo do reconhecimento das instituições de ensino superior e dos currículos dos estudantes;
  2. b) a explicitação de que as diretrizes nacionais sobre formação do professor para educação básica são aplicáveis à formação de professores que ocorre no curso de Pedagogia;
  3. c) o estabelecimento de diretrizes específicas para o curso de Pedagogia, como licenciatura plena, com base na proposta da Comissão de Especialistas em Pedagogia, de 06.06.1999;
  4. d) a indicação de diretrizes curriculares específicas para a formação de formadores, isto é, para formação de professores do ensino superior que formam professores;
  5. e) o fortalecimento da concepção de que os cursos de formação de professores são cursos de licenciatura plena, com duração mínima de 3.200 horas e não habilitações de outros cursos agregados a outra graduação;
  6. f) a eliminação da licenciatura de curtíssima duração em nível superior, com 1.600 horas, legalizada pela dispensa para os futuros professores não só de 800 horas pela prática anterior, mas também de 800 horas para aqueles que foram habilitados em cursos de Magistério, em nível médio. Na opinião da ANPEd, o aproveitamento de 800 horas da “prática anterior” como cumprimento da prática de ensino exigida pela LDB para todos os cursos que formam professores para a Educação Básica (art. 65) surge na proposta de diretrizes curriculares como um mecanismo que poderá dissociar na formação do professor o que, pela natureza conceitual, é indissociável: a teoria da prática;
  7. g) a aplicação dos mesmos requisitos mínimos exigidos para a formação de professores no âmbito universitário para as instituições não universitárias enquanto a realidade de muitos “brasis” necessitar dessas instituições, mas que elas consideradas como locais transitórios e não permanentes de formação;
  8. h) estabelecimento de rigorosos mecanismos de avaliação externa e de auto-avaliação de todas as instituições e modalidades de formação presenciais das e não presenciais, a fim de impedir as formas aligeiradas de certificação de professores;
  9. i) a definição de políticas educacionais e destinação de recursos de tal ordem que a formação inicial de todos os profissionais da educação seja feita na universidade, preferencialmente pública (BRZEZINSKI, 2001, p. 122-123).

Entretanto, a aprovação da RESOLUÇÃO CNE/CP Nº 1, de 18/02/2002 (BRASIL, 2002), que institui Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores da Educação Básica na licenciatura, de graduação plena, distancia-se das propostas defendidas nas contribuições apresentadas pela ANPEd e assume em sua fundamentação feições da “pedagogia das competências” (BRZEZINSKI, 2008a). Embora seu processo de tramitação tenha sido marcado por embates entre educadores e organismos governamentais, sua aprovação representou um retrocesso no que se refere à possibilidade de se tornar um “expressivo mecanismo de política global de formação e de valorização de profissionais da educação” (BRZEZINSKI, 2008a, p. 184).

Desafios do Estágio Supervisionado: a superação do viés tecnicista e prescritivo   

O Estágio Supervisionado assume um caráter relevante no currículo dos Cursos de Licenciatura, sendo o componente curricular que consolida o eixo da prática educativa, lócus para docência e espaço de contribuição para uma formação que privilegie a reflexão crítica, a articulação entre a teoria e a prática, possibilitando a interação com o campo de atuação.

No entanto, considerando a visão estreitamente técnica e prescritiva de formação de professores que vem prevalecendo, é preciso trazer para as discussões do Estágio Supervisionado análises e estudos que possibilitem ir na contramão dessa lógica, desse perfil de tecnólogo de ensino que pretende redefinir a formação de professores de acordo com as exigências do mercado, tendo como eixo central o desenvolvimento de competências para o exercício técnico-profissional, ancoradas num “saber fazer”, em detrimento do “conhecimento”. Para Veiga (2002), tal concepção de formação voltada para o desenvolvimento/treinamento de competências é superficial e limitada, prejudicando uma formação mais sólida do docente. Uma formação centrada no desenvolvimento de competências reduz-se a uma formação técnica, na qual esse tecnólogo será

[…] aquele que faz mas não conhece os fundamentos do fazer, que se restringe ao microuniverso escolar, esquecendo toda a relação com a realidade social mais ampla que, em última instância, influencia a escola e por ela é influenciada. Essa concepção confere ao trabalho do professor um caráter muito ligado a um saber prático (VEIGA, 2002, p. 72-73).

Essa concepção de formação docente que norteia as políticas de formação, limitando-se a um treinamento pragmatista e prescritivo, faz parte do objetivo maior das políticas atuais de formação de professores que tem como propósito muito mais conceder uma certificação, do que conferir uma boa qualificação aos leigos atuantes no sistema educacional e aos futuros professores.

Para Brzezinski (2008a), esse “modelo” de formação de professores, que tem como meta a certificação aligeirada e quantitativa, faz parte de um projeto de sociedade e de educação, nos quais o conceito de formação de professores vem sendo adotado em consonância com os ditames dos organismos internacionais.

Ainda segundo a autora, em coerência com a agenda dos organismos internacionais, o modelo de formação de professores adotado pode ser caracterizado pelas diretrizes a seguir:

  1. a) reproduz as reformas curriculares implantadas em outros países; b) institucionaliza preferencialmente a formação de professores fora da universidade; c) aparta a licenciatura do bacharelado; d) privilegia as dimensões técnicas e praticista do trabalho docente; e) fundamenta-se no modelo curricular clássico, etapista e fracionado, para o qual o desempenho do estudante tem primazia sobre o conhecimento e a cultura; f) proporciona uma reprodução maciça de profissionais com compromisso exclusivo com o mercado de trabalho; g) é orientado pela pedagogia das competências que induz um perfil profissional uniforme e homogeneizado; h) opta por conceder certificação que se superpõe a uma boa qualificação inicial e continuada dos docentes (BRZEZINSKI, 2008b, p. 198-199).

Como efeito de uma estratégia neoliberal, as políticas educacionais sinalizam uma nova concepção de formação de professores, bem como elegem novas instâncias formadoras, como o Curso Normal Superior e os Institutos Superiores de Educação. Tais reformas conduzem diretamente à ênfase da questão dos saberes e das competências na formação dos futuros professores brasileiros (BORGES; TARDIF, 2001).

Analisando os efeitos dessas políticas, Silva (2008, p. 236) adverte que

[…] não há a preocupação em formar professores com condições para de fato intervir nas situações de ensino e aprendizagem, mas na formação de “técnicos” com uma formação aligeirada, desvinculada do compromisso social e político com as demandas da comunidade em que se encontram, mas capazes de explorar conteúdos padronizados que os livros didáticos apresentam de forma irrestrita e acrítica.

Para Freitas (2002), a desresponsabilização do Estado do financiamento público, a individualização das responsabilidades sobre os professores, a centralidade da noção de certificação de competências nos documentos orientadores da formação de professores, que constituem elementos das políticas de formação, possibilitam desvelar as concepções que revelam um processo de flexibilização do trabalho docente em contraposição à profissionalização do magistério.

Delineia-se, portanto, uma política de formação de professores centrada na certificação de competências e na avaliação, pautada em diretrizes legais que privilegiam: o aligeiramento e o rebaixamento de formação; a formação descomprometida com a pesquisa, a investigação e a formação multidisciplinar sólida; processos de avaliação de desempenho e de competências vinculadas ao saber fazer e ao como fazer em vez de processos que tomam o campo da educação em sua totalidade, ou seja, centrando a formação de professores no campo exclusivo da prática (FREITAS, 2002).

Frente a tal quadro, faz-se necessário trazer à tona questões para o debate: como o estágio pode contribuir para uma formação que privilegie a reflexão crítica? De que maneira a teoria e a pesquisa no estágio podem influenciar a formação?

Considerações finais

Analisando a formação do professor e o que se espera dele enquanto formador, considera-se de fundamental importância retomar a discussão de Brzezinski (2001) acerca das dissonâncias entre as propostas do mundo oficial e o mundo vivido pelos docentes no interior de sua formação e de suas práticas.

Nesse sentido, é imperioso considerar se a formação que o professor recebe permite a ele trabalhar dentro de uma “prática unodocente que confere identidade ao professor” (BRZEZINSKI, 2008c). Isso em um Brasil com diferentes contextos de formação, com uma LDB ajustada aos ditames da política neoliberal e com uma formação técnica com ênfase nas competências, no qual o professor limita sua prática pedagógica num “saber fazer” em detrimento do conhecimento. Em poucas palavras, é preciso saber, nesse ínterim, até que ponto o professor torna-se aquele que faz, mas não conhece os fundamentos de seu fazer, fazer esse que deveria propiciar o desenvolvimento de diversas habilidades cognitivas em seus alunos.

Para isso, considera-se fundamental que a formação docente contemple a conjugação de dimensões que envolvam o saber científico; o saber pedagógico, que conduza a uma reflexão sobre as práticas educativas, o saber cultural e o saber político, dentre outros. Considerando esses pressupostos, a formação docente requer, além de preparação nas áreas dos conhecimentos específicos e pedagógicos, uma dimensão política que envolve a ética e um comprometimento social, como resistência a essa sociedade conduzida pela lógica neoliberal.

Para uma formação docente que se oponha a racionalidade técnica, torna-se imprescindível a formação do professor-pesquisador, destacando a pesquisa como componente necessário à formação, desempenho e desenvolvimento de docentes.

As reflexões desenvolvidas neste estudo permitem afirmar que, ao longo das últimas décadas, ocorreu a implementação de um conjunto de reformas que levaram a um redirecionamento das políticas pelo viés do neoliberalismo, provocando mudanças no papel social da educação e da escola, concebendo, ao final, a educação como uma mercadoria. Nesse contexto macro, torna-se relevante um repensar das políticas de formação docente, na busca de caminhos para o enfrentamento dessas amarras. A prática pedagógica tem sido alvo de forte reducionismo, limitando-se às atividades que os professores realizam quando estão na sala de aula com seus alunos. Em oposição a esse reducionismo, torna-se necessário pensar em uma compreensão mais ampla da docência.

Referências

 

BORGES, Cecília; TARDIF, Maurice. Apresentação. Educação e Sociedade. Campinas, v. 22, n. 74, p.11-26, abr. 2001.

BRASIL. Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 23 dez. 1996.

BRASIL. Resolução CNE/CP n. 1, de 18 de fevereiro de 2002. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores da Educação Básica, em nível superior, curso de licenciatura, de graduação plena. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 9 abr. 2002. Seção 1, p. 31.

BRZEZINSKI, Iria. Contribuição apresentada pela ANPEd nas Audiências Públicas sobre as “Diretrizes para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica em Curso de Nível Superior”, promovidas pelo Conselho Nacional de Educação. Revista Brasileira de Educação. Rio de Janeiro, n. 16, p. 118-124, jan./abr. 2001.

______. LDB/1996: uma década de perspectivas e perplexidades na formação de profissionais da educação. In: BRZEZINSKI, Iria (Org.). LDB dez anos depois: reinterpretação sob diversos olhares. São Paulo: Cortez, 2008a. p. 167-194.

______. Política de formação de professores: a formação do professor dos anos iniciais do Ensino Fundamental, desdobramentos em dez anos da Lei n. 9394/1996. In: BRZEZINSKI, Iria (Org.). LDB dez anos depois: reinterpretação sob diversos olhares. São Paulo: Cortez, 2008b. p. 195-219.

______. Políticas contemporâneas de formação de professores para os anos iniciais do ensino fundamental. Educação e Sociedade. Campinas, v. 29, n. 105, p. 1139-1166, set./dez. 2008c.

FREITAS, Helena Costa Lopes de. Formação de professores no Brasil: 10 anos de embate entre projetos de formação. Educação e Sociedade, Campinas, v. 23, n. 80, p. 136-167, set. 2002.

VEIGA, Ilma Passos Alencastro. Professor: tecnólogo do ensino ou agente social? In: VEIGA, Ilma Passos Alencastro; AMARAL, Ana Lúcia (Org.). Formação de Professores: políticas e debates. Campinas, SP: Papirus, 2002. p. 65-93.

 

[1] Doutora em Educação. Professora do Curso de Pedagogia da Universidade Federal de Uberlândia- FACIP – Faculdade de Ciências Integradas do Pontal. Email: vilmasouzza@yahoo.com.br

[2] Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação, da Universidade Federal de Uberlândia-MG.

Professora efetiva de Biologia da Escola Estadual de Uberlândia, MG. Email: maglage@terra.com.br

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