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Por hora, o privilégio

Mara Rovida é jornalista, doutora em Ciências da Comunicação pela USP e membro do Grupo de Pesquisa do CNPQ Comunicação e Sociedade do Espetáculo
Mara Rovida é jornalista, doutora em Ciências da Comunicação pela USP e membro do Grupo de Pesquisa do CNPQ Comunicação e Sociedade do Espetáculo.

* Mara Rovida
Descobriu cedo o mundo dividido e organizado pelas diferenças que separam, muitas vezes, segregam. Sabia-se mediano, com parcelas abaixo e outras acima. Reconhecia pelo cheiro seu lugar no mundo, seu espaço amistoso e confortável, suas regalias de pessoa média, com algum acesso e muita ambição.
Os primeiros brados foram aprendidos na escola. Com apoio de quem educa, mas não ensina. Quem paga tem direitos, quem recebe tem deveres. Assim a vida se organiza e as relações se orientam pelo Código de Defesa do Consumidor. Direitos e regras, definidos em lei, servem para defender um primeiro grito, ainda tímido, mas com respaldo.
Não demora para que o peito fique inflado e o ânimo inflamado. Na vida média, a oportunidade de ver de fora, de olhar de um ponto distanciado não tarda em aparecer. Dos velhos hábitos ocidentais, vislumbra modelos que parecem engajados, despojados e inovadores – mesmo que sua base seja o resgate de velhos padrões.
Na volta para casa, encontra outros medianos, talvez medíocres, que também experimentaram o velho mundo e sonham em trazer para as bandas de cá um pouco mais de civilidade. Num discurso desconectado historicamente, pensa ter descoberto um diálogo nunca antes observado, o norte que dita padrão e o sul que o copia porcamente.
De peito estufado e dedo em riste, emite sua mensagem em tom verborrágico e certeiro. Desqualifica apressadamente o contraditório. Justifica de pronto os deslizes. Segue exigindo sua verdade erguida por uma perspectiva sua, e apenas sua.
Teve um tempo que sua casa se ligava à escola pelo carro dos pais. O contato com o mundo se estruturava na assepsia de uma janela sempre fechada. Em algum momento, descobriu que poderia tomar o lugar do condutor e fez festa, foi pra festa e levou consigo os amigos e talvez um ou outro sonho de sujeito descuidado que atravessou seu caminho.
Hoje se paramenta para sair às ruas e demanda o modelo conhecido no outro lado do oceano. A cidade deve se curvar ao desejo desenfreado de seu olhar médio de sujeito medíocre. Seu direito imposto como vontade de estar acima de sua vida mediana vira outra coisa. Um privilégio a mais para quem nunca soube o que era um direito.
* Mara Rovida é jornalista, doutora em Ciências da Comunicação pela USP e membro do Grupo de Pesquisa do CNPQ Comunicação e Sociedade do Espetáculo

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