Crônicas Gilda E. Kluppel Gilda E. Kluppel

O Doutor Mágico

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O Doutor Mágico

Gilda E. Kluppel

Gilda E. Kluppel é professora de Matemática do ensino médio em Curitiba/PR, Mestre em Educação pela Universidade Federal do Paraná.

Ele não se conforma ao ver brinquedos descartados, por causa de um defeito ou até por saírem da moda. E tudo começou quando observou um vizinho despejando no lixo uma série de brinquedos, que estavam estorvando a casa. Penalizado com a situação, pediu para ficar com todos. Assim, junta e conserta os brinquedos que as crianças não desejam mais.

Alguns consideram um passatempo inusitado, em que, muitas vezes, a paciência é colocada à prova. Não é tarefa fácil, recuperar brinquedos com defeitos ou faltando peças. Desenvolveu habilidade para restaurar objetos, usa a criatividade, com pedaços de garrafas de plástico consegue formatar as peças que faltam, entre outras técnicas que desenvolveu. Logo, adquiriu das crianças, o apelido de Doutor Mágico. Recebe as doações de pessoas conhecidas, vários brinquedos chegam bastante danificados, tornando maior o seu desafio.

Existem locais que realizam o conserto de brinquedos, mas o trabalho executado sem fins lucrativos, além de funcionar como uma terapia, tornou-se um prazer. Nutrido de entusiasmo e dedicação, veste um jaleco branco, tal qual um verdadeiro médico. Estimado pelas crianças, do prédio, que visitam o “hospital”, para ver as “cirurgias”, capazes de promover inúmeras “curas”, consideradas surpreendentes. Na sala reservada, parecida com um centro cirúrgico, devido aos inúmeros instrumentos, salta aos olhos a estante repleta de prateleiras, com o resultado do trabalho, brinquedos restaurados com o frescor de novos.

Durante a infância, brinquedos novos eram caros para o bolso de seus pais, acostumou-se com os brinquedos herdados pelos irmãos mais velhos. Ainda confeccionava pipas, carrinhos puxados por barbantes, telefone com latas, entre outros. Chegava a montar carrinhos de rolimã incrementados, causando admiração de todos. Numa época em que não existia o brinquedo assassino, o tal do Chucky, as crianças aprenderam a compartilhar os brinquedos, cada um aguardava a sua vez para brincar.

Bastava pouco para se divertir, afinal, para uma criança, qualquer objeto pode se transformar num brinquedo. Lembra-se da irmã, a menina desenhava linhas com grãos de feijão e milho sobre a mesa, um “faz de conta” de pintar quadros vistosos, para serem expostos em uma galeria de arte. Nunca deixou de ser feliz por não possuir uma infinidade de brinquedos. Logo, espanta-se com a necessidade, gerada socialmente, que imputa às crianças o recebimento de uma enxurrada de brinquedos, porém, sequer conseguem arrumar tempo para brincar com todos. As crianças, cada vez mais precocemente, aderindo à cultura do consumismo. Além disto, a dependência tecnológica tem deixado muitas crianças sedentárias e desestimuladas com brincadeiras que exijam algum esforço físico.

Entretanto, os excessos, gerados na época de final de ano, não se tornam motivos para o desânimo. Enfim, os inúmeros brinquedos “curados” podem sair da estante, para serem doados às crianças, em locais nos quais o Papai Noel não chega a passar. Todos os brinquedos encontram os seus respectivos donos, brinquedos descartados que haviam perdido a alma, agora encontrada, com o brilho no olhar de uma criança.

Depois de um dia exaustivo e recompensador, ao voltar para casa, com o sentimento do dever cumprido, surge uma emergência para o Doutor Mágico. Uma mulher chorando, em frente ao seu prédio. “O senhor pode me ajudar?” Pergunta ela. “Todos tratam o meu bebê como um brinquedo, mas ele é real. Ele está triste por isso, não sei mais o que fazer. O senhor também acha que é um brinquedo?”

Ao perceber que a mulher está agoniada, olha para a boneca e responde: “Eu vejo uma criança”. A mulher esboça um largo sorriso. O doutor cuidadosamente leva o bebê para examinar, recomendando repouso. A mulher deixa aos seus cuidados e parte feliz. Ele não sabe se agiu de modo correto, mas, ao propiciar um sorriso, diante da situação, considerou válida a resposta. Acomoda a boneca num lugar especial da estante vazia, já que todos os brinquedos foram doados. Entretanto, a mulher não apareceu no dia seguinte, conforme o combinado.

Ela nunca mais retornou para apanhar a boneca, deixou apenas um bilhete na portaria do prédio, em que estava escrito: “Agradeço a atenção e por embarcar em meu desejo de que fosse uma criança de verdade, aquele brinquedo me ajudou a superar um longo período de depressão. Soube no dia seguinte, em que deixei a minha boneca, que estava grávida de verdade. O meu sonho se realizou!”

Adultos também precisam, em algumas ocasiões, da magia dos brinquedos para amenizar uma dor. Sente a importância dos brinquedos, capazes de substituir momentaneamente os desejos inatingíveis. E cada vez mais, segue em sua tarefa, ajudar a construir sonhos por meio de um brinquedo. Ele também se diverte, afinal o conserto faz parte da brincadeira.

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