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A hipocrisia em julgamento

 

A HIPOCRISIA EM JULGAMENTO

Margarete Hülsendeger

 

Todo fascista julga estar fazendo o bem. Todo linchador age em nome de princípios nobres. Toda vingança pessoal pode ser elevada a causa política, e quem está do outro lado deixa de ser um indivíduo que erra como qualquer indivíduo, em meia dúzia de atos entre os milhares praticados ao longo de quarenta e três anos, para se tornar o sintoma vivo de uma injustiça histórica e coletiva baseada em horrores permanentes e imperdoáveis.

Michel Laub

 

Todos os dias, nas redes sociais, é possível encontrar pessoas, conhecidas e desconhecidas, dispostas a expor seus mais “profundos” pensamentos e desejos. Existem os que só postam mensagens e fotos “felizes”, como se cada segundo da vida fosse o mais brilhante e alegre; tudo tão colorido, tão luminoso que chega a ser um pouco repugnante. Há também os revoltados, aqueles que se acham a palmatória do mundo, guardiões das verdades morais e éticas, mesmo quando todos sabemos que sobre as nossas cabeças está sempre pairando um telhado de vidro extremamente frágil. E, é claro, há os “legais”, aqueles que estão ali apenas para curtir ou escolher algumas daquelas carinhas que o Facebook coloca a disposição para expor nossas emoções. Esse grupo era (ou ainda é) os “deixa disso”, muito comum nos bares da vida, quando alguma discussão explodia e os “legais” rapidamente intervinham para separar os mais esquentados.

Sim, nas redes sociais e na internet em geral, somos os maiorais, capazes de enfrentar tudo e todos com galhardia, sem correr o risco de colocar em perigo a fachada que tão arduamente construímos. Mas e quando precisamos, realmente, assumir uma posição? Não de longe, na segurança que o espaço virtual nos proporciona, mas de perto, muito perto, olho no olho? Como agimos? Que posições temos coragem de assumir e defender? Vamos ser os “felizes”, os “rebeldes” ou os “legais”? Quem somos?

É nessa posição que o escritor Michel Laub coloca o leitor em seu livro O tribunal da quinta-feira, lançado pela Companhia das Letras, em 2016. Em um texto de 184 páginas, Laub instaura um tribunal no qual está em julgamento o narrador da história, um publicitário paulista de quarenta e três anos chamado José Victor. O juízo ocorre por conta de algumas mensagens de e-mail encontradas pela ex-esposa que comprometem, não só o publicitário, mas um amigo e a atual namorada. A trama poderia ser apenas isso: o rancor de uma ex que, ao descobrir que foi traída (a namorada surgiu antes da separação), resolve se vingar jogando na rede declarações editadas dessas mensagens pessoais. No entanto, a narrativa é muito mais do que um relato sobre a traição ou sobre homens que se apaixonam por mulheres bem mais moças. A história, na verdade, fala da hipocrisia e como ela, aparentemente, se camufla assumindo ares de indignação.

José Victor, como já disse, tem um amigo. Eles se conhecem desde o tempo da faculdade, uma amizade que forjou um companheirismo que deu espaço até mesmo a uma linguagem própria, com um vocabulário que apenas eles entendem. O amigo chama-se Walter e é gay.

O fato de Walter ser homossexual é o gancho para que Laub faça uma recuperação dos primeiros anos da epidemia de AIDS, uma doença que durante muito tempo foi chamada de “câncer do homossexual”. O narrador de Laub ao recuperar essa época, o início dos anos 80, explica que a AIDS era vista como a mistura de duas coisas, “o resultado dos abusos de quem não tem força moral para resistir à natureza e ao mesmo tempo uma condição não dita, uma sigla científica e neutra que esconde um conceito que se espalhará apenas à boca miúda”. Trata-se, portanto, de um “passeio” pelo passado no qual além das “mortes ficcionais” dos amigos dos personagens, Laub nos faz lembrar das “mortes reais” de famosos e famosas como Freddie Mercury, Lauro Corona, Caio Fernando Abreu, Cazuza, Hervé Guibert, Sandra Bréa, Cláudia Magno e “tantos outros nomes e biografias que eram um espelho do futuro”, um futuro no qual muitos outros homens e mulheres seriam infectados.

Então, Tribunal da quinta-feira é um romance sobre a AIDS? Sim e não. Sim, porque relembrar o início da epidemia é entrar na história que o autor quer contar, mesmo que no início não entendamos bem a razão. Não, porque a AIDS é apenas um dos temas, não necessariamente o central; posso, inclusive, dizer que ela funciona como uma espécie de fio condutor da trama. O tema central é, como escrevi no início deste texto, a h-i-p-o-c-r-i-s-i-a, assim mesmo, soletrada. O que torna tudo mais complicado, porque todos temos um pouco dela, mesmo que a gente negue até morrer.

Nesse ponto é que entra a ex-esposa do narrador e as mensagens de e-mail. Quando a história começa a se desenvolver, a primeira reação é dizer “Mas que cara cretino!”. Afinal, além de falar barbaridades com o amigo gay, é um traidor, um homem que está vivendo a crise da meia idade e que, para piorar, se apaixona por uma menina de 20 anos. Confesso: minha primeira reação foi ficar indignada. Mas minha indignação durou pouco e é ai que o livro surpreende, pois, ao virar a página, minhas certezas e indignações foram rapidamente postas em juízo.

As mensagens entre o José Victor e o Walter são bastante comprometedoras quando retiradas do contexto no qual foram escritas, e como o autor não quer deixar dúvidas, traz para o texto algumas delas para que o leitor possa fazer o seu próprio julgamento: “Remetente: Walter. Destinatário: eu. Data: 9/6/2009. Trecho da mensagem: Ontem levei meu irmão burro para passear, ele estava com vontade de engolir e desengolir as coisas” ou “Remetente: eu. Destinatário: Walter. Data: 25/11/2014. Trecho: Alguma chance de, mesmo usando o anel do cadáver eunuco no dedo anular esquerdo, ainda conseguir amar ao modo Cláudia Magno e Sandra Bréa de contaminação?”. Ou ainda: “Remetente: eu. Destinatário: Walter. Data: 10/1/2016. Trecho: Conheci ontem uma possível vítima. É uma redatora-júnior da agência. Pela pele, parece ter uns vinte anos. O nome dela é Danielle”. Se você não entendeu não tem problema, mas se você acha que entendeu não se apresse, não julgue ainda, pois, se fizer isso, talvez ao fim acabe se arrependendo.

As mensagens (todas elas) foram encontradas pela ex-esposa do narrador, a Teca, depois da separação. Teca não teve qualquer problema (moral ou ético) em editá-las e encaminhá-las para todos os amigos e conhecidos do casal, assim como aos colegas da agência de publicidade na qual o ex trabalhava. Nesse momento é impossível não perguntar: ela tinha esse direito? Uma resposta possível: quando ela ficou sabendo da traição, enfureceu-se (com razão) e decidiu que uma boa forma de se vingar era expondo as mensagens pessoais do ex. É isso? Ou será que não? Quem deu permissão para que ela mexesse na conta de e-mail do ex? Isso é ético? Isso também não é uma traição? E quem deu direito a ela de editar essas mensagens e jogá-las no mundo, comprometendo não só a vida pessoal do ex, mas do amigo que, aliás, era amigo dela também?

Parece confuso, mas a vida é normalmente confusa, a gente é que finge que não é. E para complicar ainda mais tem o fato do Walter ter recebido um resultado positivo para o teste de HIV. Um resultado sobre o qual ele silenciou. Apenas José Victor ficou sabendo. E como cobrar do amigo a necessidade de ele avisar seus namorados do passado, presente e futuro de que é soropositivo? Complicado. Sim, a vida também pode ser muito complicada. Mas tem mais! Teca, a ex vingativa, teve um caso com o Walter. Quando? Antes do casamento com o José Victor, mas com grandes possibilidades de ter sido depois do Walter estar contaminado. E como fica o narrador? E a namorada de 20 anos? E a ex? E o Walter? Então, quem mentiu para quem? Quem enganou quem? Quem traiu?

Margarete Hülsendeger é Física e Mestre em Educação em Ciências e Matemática/PUCRS. É mestra e doutoranda em Teoria Literária na PUC-RS. margacenteno@gmail.com

Infelizmente, no ardor da batalha ou da vingança, as mentiras acabam soando como verdades e as pessoas, como diz o narrador de Laub, mentem para parecerem bem resolvidas, incorporando personagens para parecerem mais interessantes e omitindo fatos embaraçosos do presente e do passado. E, como pergunta o José Victor, “que novidade pode haver nisso?”. Nenhuma, é claro! Mas nos comportamos como se nada disso fosse verdade porque precisamos parecer “felizes”, “rebeldes” ou “legais”. E perceber isso, mesmo que seja por meio de uma obra de ficção, é no mínimo perturbador.

O tribunal da quinta-feira é um livro de 184 páginas perturbador. Os personagens principais não morrem, não há sangue, nem lágrimas, mas ele perturba. Porquê? Simples: porque nos vemos refletidos nele. Percebemos que facilmente nos deixamos levar pelas primeiras impressões e fazemos julgamentos quase que instantaneamente. Não pensamos, não procuramos ver os dois lados de uma questão, nos deixamos levar pela raiva e pela necessidade de ver “sangue”, mesmo que metaforicamente. E essas constatações abalam. Eu fiquei abalada porque, no inicio, estava do lado da Teca, julgando muito mal o José Victor e odiando a Dani (a namorada de 20 anos) para depois, meio envergonhada, perceber que entre o branco e o preto há um amplo espectro de tonalidades cinza. Um espectro que quase sempre estamos dispostos a ignorar.

É impossível ler O tribunal da quinta-feira e não refletir sobre essa e tantas outras questões; e, apesar de perturbador, ele é também um livro muito estimulante. Laub mexe com a cabeça do leitor, desequilibra-o, faz com que ele caia e depois se levante e, o mais importante, dá espaço para que ele pense e decida sozinho. Apenas por isso vale a pena a leitura, mas, deixo com você a decisão.

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