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“O tempo infinito e inalterado da infância”

“O TEMPO INFINITO E INALTERADO DA INFÂNCIA”

Margarete Hülsendeger

Mas o tempo – não necessariamente como ele é, mas como o pensamos – proíbe de forma monomaníaca as segundas oportunidades.

Ian McEwan

Se consultamos o dicionário Houaiss em busca do significado do verbo “perder” vamos encontrar 20 entradas diferentes: “ficar sem a posse de” sendo a primeira e “tornar-se absorto, ser tomado por devaneios” sendo a vigésima. No entanto, quando se trata do livro recém-publicado, do escritor inglês Ian McEwan, a definição que, talvez, esteja mais próxima do tema central da obra é a número 13, “ficar sem (alguém próximo), por morte ou rompimento”.

O livro ao qual me refiro chama-se A criança no tempo (The Child in Time, no original) e foi publicado pela Companhia das Letras em 15 de junho deste ano. Contudo, não se trata de um novo livro já que originalmente o ano de sua publicação é 1987. Sendo uma fã de carteirinha do escritor inglês, não posso expressar em palavras o quanto essa novidade me deixou feliz. McEwan é autor de livros de grande sucesso: Amsterdam (1998), Reparação (2001), Solar (2010), Enclausurado (2016), entre outros. Livros cuja temática, muitas vezes, está ancorada em eventos triviais que acabam se desdobrando em situações complexas que obrigam o leitor a assumir uma posição. Com McEwan não há espaço para a neutralidade ou a indiferença. E A criança no tempo não foge a essa regra.

O protagonista dessa história é um escritor de livros infantis, chamado Stephen Lewis, que vive um dos maiores pesadelos de qualquer pai ou mãe: a perda de um filho. No caso de Stephen, de uma menina de três anos chamada Kate. Se você está pensando que Stephen perdeu Kate devido a alguma doença ou acidente, você não conhece McEwan, pois ele não gosta de clichês e, infelizmente, esse se tornou um dos grandes clichês da literatura. Como ocorreu, então, essa perda? Talvez aqui precise trazer outro dos significados do verbo “perder” que encontrei no Houaiss, o número 15: “deixar de estar visível aos poucos; sumir-se”. Stephen “perdeu” Kate quando estava no caixa de um supermercado, enquanto se virava para pagar suas compras.

A descrição de toda a cena eleva os batimentos cardíacos de qualquer pessoa, mas para quem é mãe (ou pai) a consciência da tragédia atinge níveis que beiram a histeria. Em um momento a menina está ali sorrindo para o pai orgulhoso e no outro ela desaparece tornando-se, literalmente, invisível. E mesmo sabendo, desde o início da história, que algo terrível havia acontecido, essa percepção não diminui a ansiedade ou nervosismo quando o personagem rememora não só a situação, mas tudo o que ocorreu antes e depois dela. E muitas coisas acontecem, a começar pela dissolução do casamento, quando Stephen e a esposa Julie, não conseguindo falar sobre o assunto, fragilizados pela culpa, acabam cavando entre eles um fosso que inviabiliza qualquer comunicação.

Quando a história começa, a menina está desaparecida há três anos, o casal encontra-se separado e Stephen está preso a um comitê, criado pelo governo, para definir as diretrizes básicas para o cuidado de crianças. As epígrafes que abrem cada capitulo são trechos de um suposto manual – “Manual autorizado de puericultura”, do Departamento Real de Imprensa – que conteria uma série de regras de comportamento para o manejo das crianças por pais e professores. A epígrafe do capítulo oito é especialmente ilustrativa: “Nessas ocasiões, os pais em apuros podem encontrar certo consolo na bem conhecida analogia entre a infância e a enfermidade — um estado física e mentalmente incapacitante que distorce as emoções, as percepções e a razão, e em que o amadurecimento corresponde a uma lenta e difícil recuperação”. Não sei se esse Manual existe ou se é apenas ficção, mas a ironia dessas palavras frente ao drama que Stephen e Julie estão vivendo não pode ser ignorada e o uso da ironia é, sem dúvida nenhuma, uma das qualidades dos textos de McEwan.

No entanto, se você pensa que o livro de 288 páginas trata apenas da dor de Stephen e Julie pela perda da filha de três anos, você não conhece McEwan. Ele agrega a narrativa outras variáveis, entre elas a presença do casal Thelma e Charles, ela uma física teórica, ele um político em ascensão. McEwan sempre demonstrou um grande interesse por questões relacionadas a ciência a ponto de em dois de seus livros, Solar e Amor sem fim, os protagonistas serem físicos. Portanto, não é de estranhar que ele tenha utilizado questões oriundas da física, mais especificamente da física quântica, para ilustrar como o tempo está conectado ao espaço, à matéria e, consequentemente, à energia. Mas, não se assuste: a ciência para McEwan é apenas um meio para atingir um fim, ou seja, introduzir na trama uma certa estranheza que é uma das características de suas ficções. E a estranheza assume, na história, a forma de um devaneio (sonho, ilusão, delírio, escolha a palavra com a qual se sentir mais confortável) no qual Stephen “observa” seus pais, quando ainda eram namorados, tornando-se, nesse instante preciso do tempo, a testemunha de uma situação que poderia ter significado o seu próprio não-nascimento.

Margarete Hülsendeger é Física e Mestre em Educação em Ciências e Matemática/PUCRS. É mestra e doutoranda em Teoria Literária na PUC-RS. margacenteno@gmail.com

Thelma é a porta-voz de elucubrações sobre a não linearidade do tempo, explicando de forma bastante didática as várias teorias que na época (final dos anos 80) estavam em alta dentro da física quântica: “temos de nos agarrar aos modelos — tempo como um líquido, tempo como um complexo envelope com pontos de contato entre todos os momentos’. Charles, esposo de Thelma, é uma história completamente diferente, pois se revela ao final um personagem bastante complexo. E aqui está minha única crítica ao livro: o fato de Charles não ter sido melhor aproveitado na trama. Sabemos como Stephen e ele se conheceram, Charles publicou o livro que teria lançado Stephen como escritor, e sabemos como Charles termina, morto pelo frio debaixo de uma árvore onde ele construiu uma casa de brinquedo, mas não sabemos o que aconteceu no “meio” desses dois eventos. Tudo é deixado em suspenso, cabendo ao leitor preencher os vazios. Talvez, essa tenha sido a intenção de McEwan, mas, como leitora, sinto que Charles merecia mais atenção.

A publicação de A criança no tempo foi, como disse no início, uma grata surpresa e, no que me diz respeito, um presente maravilhoso, pois considero Ian McEwan um dos melhores escritores da contemporaneidade. Ele sabe equilibrar real e inusitado, verossímil e absurdo, transformando uma situação surreal em algo que pode acontecer a qualquer momento e a qualquer um. McEwan coloca seu leitor sempre em uma saia justa, forçando-o primeiro a ver (realmente ver!) o que está acontecendo, para depois enfrentar dilemas dos quais só pode sair se assumir uma posição. Ler McEwan é sempre uma experiência que envolve grandes doses de ansiedade e nervosismo, mas são emoções que valem a pena sentir quando estamos diante de uma história que foi muito bem contada. E McEwan é, realmente, um grande contador de histórias. Sua leitura vale muito a pena.

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