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Sobre o Homem

SOBRE O HOMEM

Margarete Hülsendeger

 

Foi o verão em que — pela bilionésima vez — o caos, a brutalidade, a bagunça se revelaram mais sutis do que a ideologia ou a moralidade. Foi o verão em que o pênis de um presidente esteve na cabeça de todos, e a vida, com toda a sua impureza desavergonhada, mais uma vez confundiu todo o país.

Philip Roth

Em outubro de 2012 ele anunciou que não escreveria mais. Essa declaração foi feita a uma revista francesa (Les Inrockuptibles) mais ou menos nos seguintes termos: “Não tenho intenção de escrever nos próximos dez anos. Acabei”[1]. Esses dez anos não chegaram a se completar porque em 22 de maio de 2018, aos 85 anos, ele faleceu de insuficiência cardíaca. Para quem ainda não descobriu de quem estou falando, apresento Philip Roth (1933-2018), considerado um dos “gigantes da literatura norte-americana” e recorrente candidato ao Prêmio Nobel de Literatura, prêmio que agora ele jamais receberá.

Roth escreveu 30 obras[2] ao longo de sua carreira, começando com Adeus, Columbus (1959) e terminando com Nêmesis (2012). Desse conjunto de três dezenas de romances eu, até o momento, só consegui ler quatro: Adeus, Columbus; Patrimônio (1991); Nêmesis e A marca humana (2000), nessa ordem. O desejo de lê-lo não surgiu de forma espontânea; na verdade, Roth foi indicado por um colega, professor de literatura, como um escritor que eu deveria ler (ênfase no “deveria”). Na ocasião, ele emprestou-me Adeus, Columbus, um conjunto de seis histórias curtas, cujos personagens são, na sua maioria, judeus e o ambiente é a classe média americana. Depois desse livro passaram-se muitos anos até que, novamente, outro professor de literatura recomendou-me uma nova obra de Philip Roth, um verdadeiro soco no estômago chamado Patrimônio.

Esse livro é um relato autobiográfico do tempo que Roth cuidou de seu pai doente. Trata-se de uma história impactante que narra como a doença pode afetar duas pessoas (pai e filho) que, durante a maior parte de suas vidas, mantiveram uma relação fria e distante. Apesar de ser um tema difícil, Patrimônio não é uma prosa melosa, que apela para velhos clichês de amor e perdão, mas uma narrativa crua, sem enfeites e por isso mesmo emocionante. Em um determinado trecho, quando o narrador (Roth) se refere ao que tem de fazer pelo pai, ele diz: “A gente limpa a merda de um pai porque ela precisa ser limpa, mas, depois de limpá-la, tudo que se deve sentir é sentido como nunca antes”. Essa frase dá o tom de todo romance, um tom carregado de emoção, mas sem qualquer traço de pieguice. Aliás, essa é uma das características mais marcantes de Roth, a abordagem de assuntos complicados, muitas vezes desagradáveis, sem apelar para sentimentalismos desnecessários.

Depois de Patrimônio – dessa vez o intervalo de leitura não foi tão grande (um ano e meio, talvez) –, li Nêmesis, a última publicação de Roth. O reencontro foi bom, muito bom. Nesse livro, Roth fala como uma doença pode alterar a perspectiva de uma pessoa, como ser um sobrevivente não significa, necessariamente, que se está em paz (ou feliz) com isso. Nemesis conta a história de um jovem e vigoroso professor de educação física, admirado e querido por seus alunos, que após superar um surto de poliomielite nos anos 40, torna-se um fantasma de si mesmo, pois, acredita que ter sobrevivido é uma espécie de traição com aqueles que não tiveram a mesma sorte. Uma história de como podemos construir uma prisão em torno de nós mesmos e jogar a chave fora. Daí o título do livro, Nêmesis, que tanto pode significar o nome da deusa da vingança como alguém que inflige uma retaliação; no caso o próprio protagonista, ao não se perdoar por ter sobrevivido.

E, finalmente, chegamos ao último (até o momento) livro de Roth que tive o prazer de ler, A marca humana. Se tivesse de escolher uma única palavra para defini-lo seria ESPETACULAR (assim, com letras maiúsculas e em negrito). Depois de ter lido Patrimônio, acreditei que nenhum outro livro de Roth teria o poder de me impactar; obviamente, estava enganada. A marca humana é um livro com mais de quatrocentas páginas (456 para ser mais exata) que te obriga a sentir. Sentir o quê? Tudo! É outro soco no estômago, um livro para pensar, para se ter na cabeceira e lê-lo quando estivermos prestes a emitir qualquer tipo de julgamento sobre qualquer tema ou pessoa.

A marca humana é basicamente isso, um julgamento, no qual o juiz e o carrasco são pessoas como você e eu. Nessa história, Roth nos traz como protagonista um respeitável professor universitário, de 71 anos, chamado Coleman Silk, que vê sua carreira e reputação arrasadas por conta de uma expressão utilizada em sala de aula. Se em Nêmesis o tema de fundo foi o surto de poliomielite na década de 40, em A marca humana o assunto desencadeante é o escândalo sexual, ocorrido em 1998, envolvendo o Presidente dos Estados Unidos na época, Bill Clinton e a estagiária Monica Lewinsky. Roth combina esse “grande evento” nacional com sua “pequena história” para mostrar como a opinião pública desinformada e maledicente pode destruir vidas, muitas vezes, de maneira irremediável.

Contudo, o romance não seria tão espetacular se a trama fosse apenas a narrativa de uma fofoca. Na verdade, Roth aproveita para fazer uma crítica severa à sociedade norte-americana, seus preconceitos e sua visão de mundo estreita e puritana. Para dar força a seu argumento, o protagonista, criado por Roth, além de sofrer uma acusação, sem fundamento, de racismo, também é apontado como um explorador de mulheres por conta do relacionamento que estabelece com uma mulher bem mais jovem, funcionária da limpeza na faculdade onde ele havia sido, além de professor, diretor. Roth explora a febre do politicamente correto e como ela pode desencadear uma verdadeira caça às bruxas, fenômeno recorrente nos Estados Unidos, alimentado não só pelos meios de comunicação, mas pelas pessoas comuns que parecem extrair prazer nos mexericos e na difamação.

Margarete Hülsendeger é Física e Mestre em Educação em Ciências e Matemática/PUCRS. É mestra e doutoranda em Teoria Literária na PUC-RS. margacenteno@gmail.com

Agora coloque nessa panela de pressão, que é a sociedade americana (e vamos ser justos muitas outras sociedades, inclusive a nossa), uma professora estrangeira que se pensa melhor do que é, um ex-combatente do Vietnã com transtorno de estresse pós-traumático e a presença de um enorme segredo, você terá a “receita” de um livro, não só espetacular, mas surpreendente. A forma como Roth costura todas essas vidas, apresentando seus pensamentos mais íntimos, assim como seus preconceitos mais sórdidos, faz com que a leitura transcorra praticamente com a respiração presa pela ansiedade do que encontraremos logo após a virada da próxima página.

Além disso, o retrato da trajetória do protagonista nos faz questionar quantas vezes tomamos decisões que depois não conseguimos desfazer porque se tornaram parte do que somos. Do mesmo modo, a descrição da corrente de mexericos que se estabelece na pequena comunidade imaginada por Roth, em especial dentro da universidade onde Coleman havia sido sempre uma figura de destaque, demonstra a força da maledicência, uma força capaz de destroçar a imagem de um homem devido a palavras que, dentro do contexto em que foram ditas, nada significaram. O mais impressionante, no entanto, é acompanhar como todo esse cenário é derrubado quando o enorme segredo vem, finalmente, à tona.

Eu poderia continuar escrevendo sobre A Marca Humana indefinidamente porque, como todo o bom livro, ele é capaz de gerar diferentes leituras e interpretações. Além do mais, ele tem a capacidade de fazer o seu leitor ir em frente, descobrindo segredos não revelados e, consequentemente, tentando encontrar sentido em tudo o que foi narrado. Por conta dessas características e tantas outras que estou deixando de apontar, A marca humana é uma obra inesquecível e é uma pena que Roth não esteja mais entre nós para continuar nos brindando com histórias tão bem contadas e que têm o bônus de fazer o leitor refletir, não só sobre o mundo, mas sobre si mesmo. Leia e comprove!

[1] Disponível em: <https://www.dn.pt/artes/livros/interior/philip-roth-nao-vai-escrever-mais-livros-2878142.html>. Acesso em: 24 jul 2018.

[2] No Brasil todas as obras de Philip Roth são publicadas pela Companhia das Letras.

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