história

Uma análise da BNCC: a história em perspectiva

Uma análise da BNCC: a história em perspectiva

Ualisson Pereira Freitas*
Gustavo de Souza Rubbi**

Resumo

Gustavo Rubbi – Graduando licenciatura e bacharelado em História pela Universidade Federal de Uberlândia, Câmpus Pontal. Email: gustavorubbi@hotmail.com

Este trabalho tem como objetivo analisar a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) de história em suas propostas para o ensino e aprendizagem. Pretende estabelecer relações destas proposições com os conceitos de multiculturalidade, identidade e diferença, procurando entender sob qual perspectiva o documento foi construído. Concluiu-se que apesar de apresentar a existência de uma diversidade dos distintos grupos sociais, o documento dispõe de um caráter omisso no que diz respeito a existência de uma hegemonia e uma hierarquização destes grupos.

Palavras-chave: História. BNCC. Grupos sociais. Multiculturalidade.

Abstract

This study aims to analyze the National Curriculum Common Base (BNCC) of history in their proposals for teaching and learning. It intends to establish relations of these propositions with the concepts of multiculturality, identity and difference, trying to undestand under which perspective the document was constructed. It is concluded that, despite the existence of a diversity of different social groups, the document has a missing disposition regarding the existence of a hegemony and hierarchy of these groups.

Keywords: History. BNCC. Social Groups. Multiculturality

Introdução

A Base Nacional Comum Curricular consiste em um documento construído para definir os conhecimentos e aprendizagens indispensáveis para os discentes durante a educação básica. Com o objetivo de fundamentar o currículo e as propostas pedagógicas no Brasil, a base promete que estas definições estão voltadas para a construção de uma sociedade justa, democrática e inclusiva. É preciso pensar, no entanto, que como toda construção histórica, a BNCC está carregada de interesses daqueles que a compuseram. Assim, o documento não se caracteriza por uma neutralidade, mas por ideologias que podem ser caras a educação.

Ualisson Freitas – Graduando licenciatura e bacharelado em História pela Universidade Federal de Uberlândia, Câmpus Pontal. Email: ualissonpereira@hotmail.com

Deste modo, é interessante colocar em xeque, não só quais conteúdos estão sendo propostos para os anos iniciais e finais da educação básica, mas também é imprescindível analisar como estes conteúdos podem ser desenvolvidos. Se abordar a história sem evidenciar que existem diferentes grupos é nocivo a educação, expor e perpetuar a existência destes grupos numa condição de inferioridade pode ser também extremamente danoso. Existe uma hierarquização entre estes distintos grupos que precisa ser revelada, problematizada, combatida.

Procurando desestabilizar esta ordem que afirma uma cultura em detrimento de outras, McLaren (2000) propõe que a diversidade seja trabalhada não pelo consenso, mas pelas lutas através de um multiculturalismo crítico revolucionário. Nos faz pensar que a história é palco de interesses que se chocam, de disputas no campo da memória, de conflitos e ideologias diversas, logo, abordar os acontecimentos evidenciando apenas uma perspectiva contribui para a manutenção de uma ordem e uma narrativa oficial que exclui ou ignora toda uma gama de outras narrativas e culturas.

Após apresentar esta perspectiva, buscamos analisar a BNCC, de modo à relacioná-la aos conceitos de multiculturalidade, identidade e diferença. Procura-se, portanto, com este escrito avaliar se, de alguma forma, a BNCC de história foi redigida e construída considerando estes aspectos imprescindíveis.

A diversidade e a diferença na BNCC

No início do documento é apontada a visão de que toda história é composta por distintos sujeitos. O documento expõe também que “as perguntas e as elaborações de hipóteses variadas fundam não apenas os marcos de memória, mas também as diversas formas narrativas, ambos expressão do tempo, do caráter social e da prática da produção do conhecimento histórico.” (BNCC, 2017, p.347)

Nota-se, a partir deste trecho a evidencia da superação de uma história positivista, pautada em verdades absolutas e em grandes acontecimentos. O documento deixa explícito a existência de várias formas de narrativas advindas de hipóteses também diversas, que são formuladas como expressões do tempo presente.

Logo após afirmar que existem diferentes formas de narrativa, o texto  da BNCC, ao expor a relação da história com os documentos, ressalta que o conhecimento histórico tem a função de demonstrar “como os indivíduos construíram, com diferentes linguagens, suas narrações sobre o mundo em que viveram e vivem, suas instituições e organizações” (BNCC, 2017, p.347) confirmando novamente uma preocupação em relatar a existência da diversidade entre os grupos que compõem a sociedade.

Observando este discurso de maneira inativa, somos levados a acreditar em um total altruísmo e beneficência do documento com relação aos distintos grupos sociais. É preciso, no entanto, ser cauteloso. Se por um lado, a atual composição da BNCC de História, corrobora para a superação de uma história factual, ao apresentar a existência de diferentes linguagens e narrativas e demonstrar um mundo diverso, por outro, contribui para que a história seja destituída de seu caráter transformador em um movimento de omissão dos conflitos e hierarquizações destes grupos.

Apesar de reafirmar a importância da percepção dos grupos sociais em diversos trechos, o documento toca de maneira insuficiente – para não dizer negligente – na questão dos conflitos. Não basta reconhecermos que existem grupos diferentes e não chamarmos a atenção para a existência de uma onda homogeneizadora, a partir da qual diversas culturas são ameaçadas todos os dias. Tratar estes grupos por uma perspectiva de consenso consiste em contribuir para a manutenção de uma sociedade que preza pela permanência de uns e o detrimento de outros.

Nos momentos que a BNCC trata destes conflitos, o texto é superficial, ou se caracteriza por uma certa ambiguidade numa contraposição entre “respeito a pluralidade” e “circunstâncias de tensão”:

Entre os saberes produzidos, destaca-se a capacidade de comunicação e diálogo, instrumento necessário para o respeito à pluralidade cultural, social e política, bem como para o enfrentamento de circunstâncias marcadas pela tensão e pelo conflito. (BNCC, 2017, p.347)

         Em outro trecho o documento apresenta a diversidade cultural e respeito às diferenças sociais, culturais e históricas como objeto de conhecimento no 5º ano do ensino fundamental, cuja habilidade específica (EF05HI04) consiste em “associar a noção de cidadania com os princípios de respeito à diversidade e à pluralidade.” (BNCC, 2017, p.365). Expõe assim, que

a noção de cidadania, com direitos e deveres, e o reconhecimento da diversidade das sociedades pressupõem uma educação que estimule o convívio e o respeito entre os povos. (BNCC, 2017, p.354)

É importante que este “respeito a diversidade cultural”, mencionado constantemente no documento, seja problematizado. Os grupos que são considerados “diversos” não devem ser abordados como aqueles que não se encaixam em um padrão ideal e que, por isso, devem ser respeitados. Essa percepção contribui para a ideia de que estes grupos são inferiores.

Se a BNCC aponta que “a percepção de que existe uma grande diversidade de sujeitos estimula o pensamento crítico, a autonomia e a formação para a cidadania.” (BNCC, 2017, p.350), McLaren argumenta que a única maneira de promover a criticidade está na adoção de um Multiculturalismo revolucionário. Portanto, o papel do educador não consiste em evidenciar para os alunos a existência de seres e grupos diferentes uns dos outros, é além disso, fazer com que […]“não se contentem mais em ocupar espaços furtivos de afirmação privada, mas que possuam a vontade e o conhecimento para transformar tais espaços em esferas públicas por meio da criação de movimentos sociais.” (McLaren, 2000, p.17).

Evidencia-se assim, que o ensino não deve demonstrar um consenso com relação a estes povos, mas esclarecer que historicamente houve uma hierarquização que precisa ser problematizada para ser combatida e superada. Existe, organicamente, uma distinção entre o “Eu” e o “Outro”, e essa relação não deve ser marcada pela “diversidade” mas pela “diferença” sem promover ou estabelecer níveis entre as culturas.

A identidade na BNCC: o eu e o outro

A diferença está associada, intrinsecamente, a identidade. Reconhecer que temos características definidas, consiste em discernir que existem atributos que não nos contemplam. Nesse sentido a BNCC faz a diferenciação entre o “Eu” e o “Outro”:

O exercício do “fazer história”, de indagar, é marcado, inicialmente, pela constituição de um sujeito. Em seguida, amplia-se para o conhecimento de um “Outro”, às vezes semelhante, muitas vezes diferente. Depois, alarga-se ainda mais em direção a outros povos, com seus usos e costumes específicos. Por fim, parte-se para o mundo, sempre em movimento e transformação. Em meio a inúmeras combinações dessas variáveis – do Eu, do Outro e do Nós –, inseridas em tempos e espaços específicos, indivíduos produzem saberes que os tornam mais aptos para enfrentar situações marcadas pelo conflito ou pela conciliação. (BNCC, 2017, p.347)

Esta “constituição do sujeito”, referenciada pela BNCC, consiste em um processo de afirmação do “Eu”. É expressada a ideia, de que primeiro nos percebemos no mundo, enquanto ser detentor de vontades próprias, e só depois entendemos a existência de outros seres, com  outras concepções, vivências e que concebem o mundo de forma distinta.

Neste processo, é imprescindível que o aluno aprenda à não fazer julgamento de valor, no que diz respeito aos diferentes grupos que compõem a sociedade. O docente deve se atentar para que os discentes entendam o “Eu” e o “Outro” não como positivo ou negativo, mas como construções possíveis, existentes em um mesmo mundo.

Considerando que a definição — própria ou a que fazemos dos outros — está relacionada diretamente as experiências que vivenciamos e como interpretamos a realidade, a diferenciação entre o “Eu” e o “Outro” deve ser construída a partir de uma capacidade de leitura histórica do mundo. Leitura essa, que deve ser incentivada pelo professor, ao apresentar diferentes pressupostos teórico-metodológicos, bem como, ao desenvolver a “relação entre posição na estrutura social e visão do processo histórico.” (SEFFNER, 2000, p.262). Dessa forma, os alunos, terão capacidade de compreender ativamente que os valores atribuídos as diferentes formas e manifestações culturais são construções.

Sabendo da complexidade de desenvolvimento das concepções de estrutura social e processo histórico, importantíssimos para a construção da identidade, acreditamos que a distinção entre o “Eu” e o “Outro” (enfatizada pela BNCC apenas no 2º e 3º ano do Ensino Fundamental)  deveria ser contemplada —  se não em todos os anos — com muito mais frequência na Base Nacional Comum Curricular. Afinal,

aprender informações no processo de escolarização é também aprender uma determinada maneira, assim como maneiras de conhecer, compreender e interpretar o mundo em geral e seu “Eu” no mundo. (STEPHANOU, 1998, p.18)

Após estabelecer conexões da BNCC com os conceitos de identidade, diferença e expor a necessidade de se evidenciar os conflitos, além da possibilidade de existência das diferentes formas culturais, elaboramos algumas considerações.

Considerações finais

Evidenciamos que a BNCC, apesar de expor a existência de diversos grupos sociais, desconstruindo uma história factual, pautada em uma visão linear e positivista da sociedade, não aborda, de forma explícita, as lutas e as contradições existentes entre os diferentes grupos sociais, deixando de revelar as relações de oposição — construídas historicamente — entre negros e brancos, homossexuais e heterossexuais, étnicas, religiosas entre muitas outras.

Apesar de demonstrar a existência da diversidade cultural, a BNCC não oferece condições para que os alunos compreendam que as atribuições de valores à qual estes grupos são submetidos, são construções. Com a atual BNCC aplicada de maneira precisa, os alunos tomam conhecimento de que existem características próprias de determinados povos mas não deixam de estabelecer uma relação de hierarquização, consciente ou inconscientemente.

Não abordando as diferenças e as contradições, devidamente, os alunos ficam obsoletos com relação a conceitos como  construção histórica, tempo histórico e estruturas sociais, importantíssimos ao ensino. O conceito de identidade é descaracterizado, na promoção de uma percepção de que existe superioridade de uns com relação aos outros, e assim os objetivos do ensino de história ficam defasados.

 O conhecimento histórico trata-se, não só“ de transformar a história em ferramenta a serviço de um discernimento maior sobre as experiências humanas e as sociedades em que se vive” (BNCC, 2017, p.351), o ensino deve estar voltado para a “construção de um raciocínio de natureza crítica e mobilizadora, que aponte para o futuro, pressuposto fundamental para a vida do homem em sociedade.” (SEFFNER, 2000, p.269)

Cabe por fim ressaltar, que uma Base Nacional Comum Curricular que não reporta ao futuro, sequer uma vez em sua composição, não está presando por mudanças e melhoras na sociedade, mas por permanências e pela manutenção de um sistema que mostra a diversidade, mas que não é a favor e não contribui, para a existência de um mundo pluricultural.

Referências Bibliográficas

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria da Educação Básica. Base nacional comum curricular. Brasília, DF, 2017. Disponível em:
< http://basenacionalcomum.mec.gov.br/#/site/inicio>. Acesso em: jun. 2018.

MCLAREN, Peter. Multiculturalismo Revolucionário: pedagogia do discente para o novo milênio / Peter Mclaren. Trad. Márcia Moraes e Roberto Cataldo Costa – Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 2000. p. 11-23.

SEFFNER, Fernando. Teoria, metodologia e ensino de história. In: GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcellos; PETERSEN, Sílvia Regina Ferraz; SCHIMIDT, Benito Bisso; XAVIER, Regina Célia Lima. Questões de teoria e metodologia da história. Porto Alegre: Editora da Universidade, 2000. p. 257-288.

STEPHANOU, Maria. Currículos de história: instaurando maneiras de ser, conhecer e interpretar. In: Revista Brasileira de História, 1998. V.18, n.36.

 

 

 

*Graduando licenciatura e bacharelado em História pela Universidade Federal de Uberlândia, Câmpus Pontal. Email: ualissonpereira@hotmail.com

**Graduando licenciatura e bacharelado em História pela Universidade Federal de Uberlândia, Câmpus Pontal. Email: gustavorubbi@hotmail.com

 

Como citar esse artigo:

FREITAS, U. P.; RUBBI, G. S. Uma análise da BNCC: a história em perspectiva. Revista P@rtes. São Paulo, 2018.

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