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Mais do que uma primavera

Margarete Hülsendeger

A veces los muchachos tienen un valor a prueba de balas, y sin embargo no poseen un ánimo a prueba de desencantos.[1]

Mario Benedetti

 

Margarete Hülsendeger é Física e Mestre em Educação em Ciências e Matemática/PUCRS. É mestra e doutoranda em Teoria Literária na PUC-RS. margacenteno@gmail.com

O uruguaio Mario Benedetti (1920-2009) é uma daquelas figuras emblemáticas da literatura latino-americana. Poeta, cronista, romancista, ensaísta e crítico, Benedetti fez parte daquela geração de escritores que enfrentaram a dura realidade das ditaduras que se instalaram no continente latino-americano nos anos 60 e 70. Por conta da repressão foi um dentre muitos a ser forçado a se exilar e, na busca de asilo político, esteve na Argentina, no Peru e, finalmente, em Cuba, onde permaneceu até retornar ao seu país, em 1983.

Um ano antes de voltar ao Uruguai publicou Primavera num espelho partido[2], um livro com pouco mais de 200 páginas, no qual mistura ficção com informações autobiográficas e uma prosa que se aproxima, como é característica de Benedetti, da linguagem poética. Um romance, delicado e profundo, que cativa o leitor da primeira à última frase.

As narrativas autobiográficas estão organizadas em capítulos chamados “Exílios”. Neles, Benedetti recupera um pouco das suas andanças quando era obrigado a se esconder da polícia secreta e queimar papéis comprometedores que poderiam levá-lo aos porões da ditadura e, consequentemente, à tortura. Conta, por exemplo, que, numa noite, uma boa amiga avisa-o pelo telefone que “um lindo desfile militar está pronto para começar diante da sua casa”, sinal que uma batida policial estava prestes a ocorrer e era preciso “queimar algumas coisas” que poderiam ser consideradas perigosas. Mais tarde, quando o telefone volta a tocar, a mesma amiga pergunta: “Então, gostaste do desfile?”, ao que ele, respirando fundo, responde “Sim, foi magnifico. Que disciplina, que cores, que elegância. Desde criança, sou fascinado pelos desfiles. Obrigada por me avisar”. Com alívio, ele sabe que, naquela noite, a queima poderia ser suspensa.

Ainda em “Exílios” ele narra como, em outra noite, quando estava exilado no Peru, foi convidado “cordialmente” a se retirar do país. Benedetti diz que ao questionar o motivo dessa ação, recebeu do oficial a seguinte resposta: “Não sabemos, nós só cumprimos ordens”. Inicialmente, foram-lhe dados dez minutos para organizar seus pertences, minutos que acabaram virando uma hora e meia, na qual, segundo ele, pode arrumar melhor a mala e utilizar com mais calma o incinerador. A história, um tanto surreal, termina com o policial entregando-lhe os documentos e pedindo que ele não saísse do país ressentido com os peruanos. Segundo Benedetti, a despedida foi cordial (assim como o “convite”) e encerrada com um aperto de mãos na porta do avião que o levaria a Buenos Aires.

A parte ficcional, a mais extensa, tem múltiplos pontos de vista, cada um deles contribuindo para a construção da narrativa, formando uma espécie de mosaico que descreve as consequências trágicas da ditadura sobre uma família. Entre os diversos narradores, há três essenciais: Silviano, o morador do “Intramuros”, o velho professor Don Rafael e a menina Beatriz.

Santiago é um preso político, condenado a cinco de anos de prisão por atividades subversivas. Suas reflexões são apresentadas na forma de cartas que ele troca com a esposa Graciela e o pai, Don Rafael. Nessa correspondência, Santiago fala das adaptações pelas quais a mente e o corpo precisam passar para suportar a prisão, do peso da ausência que sente da esposa e da filha Beatriz, da esperança de uma futura anistia e, principalmente, da necessidade de se agarrar às pequenas coisas (como as manchas nas paredes), pois, como ele mesmo explica “quando se está aqui tudo pode chegar a ser interessante”. Dessa maneira, mais do que simples cartas, os textos que compõem “Intramuros” são uma dolorosa reflexão sobre o sofrimento provocado pelo isolamento e o medo de, ao não conseguir suportar a dor do próximo interrogatório, acabar delatando seus companheiros.

Don Rafael, pai de Santiago, vive o seu próprio exílio, com sua voz representando a melancolia daqueles que foram obrigados a deixar sua terra natal. Uma angustia profunda que pouco tem a ver com a militância política ou com esse conceito abstrato chamado “pátria”. A angustia de Don Rafael está mais associada ao desejo de voltar para casa e ao fato de saber que o filho pode estar sendo torturado, ou se recuperando de uma sessão de tortura, enquanto ele, impotente, nada pode fazer. Benedetti, ao criar Don Rafael, expõe a dor de um pai que estaria pronto para colocar-se no lugar do filho, mesmo compreendendo que seu gesto seria rejeitado por não ser suficientemente odioso e por não ter desejado derrubar, desarmar, vencer os opressores. Essa dura “tarefa” coube a Santiago e o sofrimento do filho tornou-se também o seu.

E, finalmente, há Beatriz. Sem dúvida nenhuma, a minha personagem preferida. Narradores infantis são difíceis de construir, mas Benedetti cria Beatriz com tal sensibilidade que é impossível duvidar que os pensamentos (e atitudes) não sejam de uma menina de sete anos. Seus desentendimentos com a mãe, Graciela, sua forma única e especial de ver o mundo refletem a necessidade de compreender o que aconteceu com o pai. Ao falar das estações do ano, por exemplo, percebe que a mãe não gosta da primavera porque foi nessa estação que seu pai foi preso. Até mesmo seu fascínio com os prédios altos e seus elevadores, de alguma forma, a leva até o pai. Comparando as sombras dos grandes edifícios com as sombras das árvores, conclui que enquanto as segundas estão manchadas de luz, as primeiras são espaços onde circulam pessoas com expressões sérias e por isso teme que o pai, “ali onde está”, esteja preso em um desses espaços, nos quais, segundo ela, impera a tristeza.

Primavera num espelho partido trata de um tema doloroso, as consequências de uma ditadura, de uma forma sensível e delicada. O último capítulo chama-se “Extramuros” e nele o autor, usando a estrutura de um poema, apresenta todas as incertezas e angústias que acompanham Santiago quando, finalmente, é anistiado e vê-se livre para recomeçar uma nova vida. Uma vida que ele, ao mesmo tempo, anseia e teme. Uma vida estranha, mas, como diz Santiago, uma estranheza que passará porque de estranheza ninguém morre. Primavera num espelho partido não deve ser apenas lido, é preciso refletir sobre as questões que Benedetti nos traz na forma de ficção; entender, por exemplo, que qualquer promessa de segurança é falsa quando o preço a ser pago é permanecer calado diante da violência, da intolerância e do preconceito. Recomendo a leitura!

[1] “Às vezes os jovens têm uma valentia à prova de balas, no entanto, não têm confiança à prova de desencantos” (Tradução minha)

[2] BENEDETTI, Mario. A primavera num espelho partido. Tradução Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011.

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