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Estudos Descoloniais e a realidade social: uma análise dos filmes “Crash – No Limite” e “Cronicamente Inviável”

Débora dos Santos Prada*

Debora Prado – Graduanda de Licenciatura e Bacharelado em História pela Universidade Federal de Uberlândia. E-mail: debora_prada@hotmail.com

RESUMO: O presente artigo desenvolve temáticas acerca de diversos preconceitos disseminados socialmente, tais como: racismo, xenofobia e machismo, baseados nos filmes “Crash: no limite”, de Paul Haggis e “Cronicamente Inviável” de Sergio Bianchi, em constante diálogo com conceitos referentes aos estudos descoloniais de autores como Aníbal Quijano e Stuart Hall.

PALAVRAS CHAVE: SISTEMA MUNDO, COLONIALIDADE, COLONIALISMO, BRANCURA, BRANQUITUDE, MULTICULTURALISMO, MULTICULTURALIDADE.

ABSTRACT: This essay develops themes about different types of prejudices that exist in our society, such as racism, xenophobia and sexism. The analyze is based on two movies: “Crash: in the limit, by Paul Haggis and “Cronicamente Inviável”, by Sergio Bianchi in constant dialogue with concepts related to descolonial studies by authors like Anibal Quijano and Stuart Hall.

KEY WORDS: WORLD SYSTEM, COLONIALITY, COLONIALISM, WHITENESS, MULTICULTURALISM, MULTICULTURALITY.

INTRODUÇÃO

 

DESENVOLVIMENTO

O filme “Crash – No Limite”, com a direção de Paul Haggis, foi produzido nos Estados Unidos pela Lionsgate e lançado em Outubro de 2005. Além disso, recebeu diversos prêmios e tem no elenco como principais personagens os atores: Sandra Bullock, Don Cheadle, Matt Dilon, Jennifer Esposito, Brendan Fraser, Ludacris, Thandie Newton e Ryan Phiillippe. No desenvolver da produção, que se passa nos Estados Unidos, são ilustradas diversas situações do cotidiano relacionadas a diferentes tipos de preconceito e discriminação, com um enfoque maior nas questões de racismo e xenofobia. O filme começa com a cena de um acidente de trânsito, no qual uma imigrante chinesa bate na traseira do carro de uma policial, porém, no momento em que as duas começam a conversar acerca do ocorrido, uma começa a ofender a outra, ambas com discursos preconceituosos. O longa se dá em meio a situações muito semelhantes à primeira, nas quais são exemplificadas diversas formas de racismo e xenofobia vindas de diversos tipos de pessoas. Algo muito interessante a respeito do desenrolar do filme é que ele nos mostra o quanto o preconceito é contraditório, tendo em vista que mesmo que uma pessoa seja vítima de racismo, por exemplo, ela também pode reproduzi-lo.

No que tange ao filme “Cronicamente Inviável”, com a direção de Sergio Bianchi, podemos afirmar que é uma obra brasileira, produzida em 2000 pela 1 filme e que se baseia na realidade brasileira para falar de racismo, xenofobia, machismo, pobreza, exploração do trabalho e falta de consciência de classe. O filme, assim como “Crash – No Limite”, ilustra diversas situações cotidianas envolvendo diferentes tipos de discriminação que acercam a vida de seis personagens de forma mais específica, estes interpretados pelos atores: Dira Paes, Betty Gofman, Daniel Dantas, Dan Stulbach, Zezeh Barbosa e Cecil Thiré. A obra começa com quatro dos seis personagens principais sentados em uma mesa de um restaurante, do qual um destes é dono, conversando acerca do pagamento da faxineira, que foi esquecido de ser deixado por Maria Alice (Betty Gofman), que compõe a mesa, para Josilene (Zezeh Barbosa). Nesta primeira cena podemos observar a primeira referência do filme, pois é mostrado dois pontos de vista acerca da mesma situação. Primeiramente, Maria Alice, ao comentar que se esqueceu do pagamento da faxineira e justificar sua ação através do argumento de que havia muitas coisas para resolver, reconhece seu erro e diz que se compadece de Josilene, pois esta trabalha o dia todo cuidando da casa de outras pessoas e não tem tempo para cuidar da própria casa. Após isto, o narrador do filme nos encaminha para uma cena mais realista, na qual Maria Alice mostra certa desvalorização pelo trabalho de Josilene e diz que fará o pagamento outro dia, pois está muito ocupada. Portanto, podemos observar que o decorrer do filme é composto por diversas cenas como esta, mostrando como a diferença de classe, etnia e gênero é algo que influencia a realidade brasileira. Assim como a produção de Paul Haggis, “Cronicamente Inviável” trabalha com a contradição e ironia do discurso preconceituoso, nos fazendo refletir sobre nossas próprias ações.

Tendo em vista os conceitos de Sistema-Mundo, Colonialidade e Colonialismo, presentes no artigo de Aníbal Quijano “Dom Quixote e os moinhos de vento na América Latina”, podemos afirmar que ambos os filmes são capazes de exemplificá-los, sendo que “Cronicamente Inviável” pode ser enquadrado de forma mais abrangente, já que o artigo tem foco na América Latina. Segundo Quijano, Colonialismo é todo um conjunto de acontecimentos e práticas da era colonial, já a Colonialidade são todos os rastros deixados por esse Colonialismo, influenciando o pensamento contemporâneo. Nesse contexto, o Sistema-mundo diz respeito às características do colonizador e, consequentemente, das características da nossa sociedade atual. Para Quijano, quando os colonizadores chegaram à América Latina, eles não trouxeram consigo somente um sistema econômico capitalista, mas trouxeram também o homem branco, cristão, patriarcal e heterossexual, o que fez com que a sociedade crescesse tendo essas características como base de sua cultura. Portanto, a obra de Sergio Bianchi, já que se passa no Brasil e este é um país latino, demonstra de forma clara como o Sistema-mundo molda as relações sociais. Um exemplo disso é a cena do filme em que dois policiais aparecem agredindo um indígena, que além de não ter um fenótipo do homem branco europeu, não tem em suas raízes a religião cristã, e por isso acaba sofrendo com preconceitos por parte daqueles que têm suas cabeças moldadas pelo senso comum e por uma ideologia racista e cristã, elementos estes do Sistema-mundo.

Outro assunto muito relacionado à esta análise é a condição branca, que envolve os conceitos de Brancura, que está relacionada com o fenótipo, ou seja, com a cor da pele, e Branquitude, que está relacionada com os privilégios simbólicos e materiais daqueles que têm a pele branca em razão da brancura não ser mais só um fator de identidade. Nesse sentido, é necessário trabalhar para desconstruir a condição branca, compreendendo que muitas vezes a brancura é vista como a neutralidade e que o negro é a exceção, o diferente. Este assunto se encaixa tanto em “Cronicamente Inviável”, quanto em “Crash – No Limite”, pois as duas obras retratam situações de racismo, nas quais o ser branco é ser “normal” e o ser negro é ser “diferente”. Para exemplificar, podemos relacionar com a cena da obra de Paul Haggis na qual um carro é assaltado e a polícia é acionada para fazer a busca deste e dos assaltantes. Nesta cena, dois policiais são informados acerca de como aconteceu o assalto, em quais mediações e o modelo e a placa do veículo. Dessa forma, os dois saem para procurá-lo e ao avistarem um veículo do mesmo modelo do qual foi roubado, começam a perseguição, porém, os policiais sabem que aquele não é o carro certo, já que as placas não correspondem, mas por serem duas pessoas negras dentro do carro, um dos policiais resolve segui-los, pará-los e enquadrá-los. Esta cena mostra explicitamente que a atitude do policial foi racista, pois apesar de ele saber que aquele não era o carro roubado, ele escolheu perseguí-lo, tendo em vista que duas pessoas negras ocupavam o carro.

Além destes conceitos e exemplos, podemos também citar o texto de Stuart Hall a respeito das questões multiculturais. Neste, observa-se os conceitos de Multiculturalidade e Multiculturalismo. O primeiro diz respeito a um adjetivo, que dá característica a uma sociedade, ou seja, uma sociedade multicultural é aquela na qual coexistem diversos saberes, ideologias, religiões, costumes e características culturais. Já o segundo, Multiculturalismo, diz respeito às formas e políticas utilizadas para lidar com a Multiculturalidade, tendo em vista que podem existir diferentes tipos de Multiculturalismos, como o Multiculturalismo Liberal, o Multiculturalismo Conservador, o Multiculturalismo Pluralista, o Multiculturalismo Crítico, entre outros. Tanto na obra de Sergio Bianchi, quanto na obra de Paul Haggis, podemos observar uma sociedade multicultural, mas que não sabe lidar com essa multiculturalidade. Isso se dá porque nos dois filmes são mostradas cenas nas quais imigrantes são tratados de forma xenofóbica, por exemplo. Em “Cronicamente Inviável” uma cena no trânsito, na qual acontece um acidente entre um carro e um ônibus, o motorista do ônibus é nordestino e por estar na cidade de São Paulo começa a ser mal tratado com falas como “volte para o Nordeste!”. Já em “Crash – No Limite”, podemos ver também a presença de imigrantes chineses e persas, os quais são sempre destratados e marginalizados por conta de suas origens, ou seja, por não serem nativos norte-americanos. Estas cenas nos mostram uma representação de que nenhum dos dois contextos, tanto brasileiro quanto norte-americano, estão preparados para lidar com a multiculturalidade, o que reflete uma deficiência de políticas multiculturais que visem todos os grupos sociais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

São muitos os exemplos que os filmes trazem que podem ser aplicados em nossa realidade juntamente com os conceitos acerca dos estudos descoloniais, por isso é necessário analisá-los aqui de uma forma mais generalizada. É importante ressaltar que as duas obras são bastante irônicas, tendo em vista que mostram constantemente situações nas quais pessoas que sofrem opressões diferentes acabam também oprimindo outras. Isso reflete como o Sistema-mundo do homem, branco, heterossexual, patriarcal, racista e cristão está implícito em nossa cultura e como qualquer outro tipo de manifestação cultural que seja diferente da do Sistema-mundo não está preparada para ser recebida socialmente. Portanto, é necessário que reflitamos acerca de nossas atitudes, que problematizemos nossas ações e sejamos críticos a respeito do sistema imposto, buscando sempre trabalhar para a inclusão, para a diversidade e para uma sociedade na qual existam políticas multiculturais realmente preocupadas em integrar aqueles que são silenciados e colocados à margem da sociedade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CRASH: No limite. Direção de Paul Haggis. Estados Unidos da América: Imagem Filmes, 2004. Longa Metragem (1h47min), son., color.

CRONICAMENTE Inviável. Direção de Sergio Bianchi. Brasil: 1 Filme, 2000. Longa Metragem (1h40min), son., color.

HALL, Stuart. Da diáspora: Identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG; Brasília: Representação da UNESCO no Brasil, 2003.

QUIJANO, Aníbal. Dom Quixote e os moinhos de vento na América Latina. Revista Estudos Avançados. Set./Out. 2005, vol. 19, no. 55, p. 9 a 31.

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