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Onde está o mal?

ONDE ESTÁ O MAL?

Margarete Hülsendeger

 

Sempre lhe disseram que as crianças são uma felicidade efêmera, uma visão furtiva, uma impaciência. Uma eterna metamorfose. Rostos redondos que se impregnam de gravidade sem que se perceba.

Leïla Slimani

 

Zygmunt Bauman (1925-2017), filósofo e sociólogo polonês, autor da expressão “modernidade líquida”, ao pensar na sociedade contemporânea percebeu que nos tempos atuais as relações entre os indivíduos tendem a ser cada vez menos frequentes e duradouras, como se elas escorressem por entre os dedos das nossas mãos. Foi utilizando essa linha de pensamento que ele escreveu Amor líquido (2003) e Medo líquido (2006). Nesse segundo livro[1], ao comparar o medo e o mal, diz vê-los como irmãos siameses, pois onde está um sempre encontraremos o outro. Na verdade, ele especula que, talvez, os dois sejam apenas nomes diferentes para identificar a mesma experiência: enquanto um de eles se refere ao que vemos e ouvimos e, portanto, aponta para o mundo exterior, o outro tem relação com o que sentimos, ou seja, com o que está dentro de nós. Bauman resume essa “dinâmica” na seguinte frase: “O que tememos não é bom; o que não é bom nos produz temor”[2].

No mesmo livro ele faz a pergunta: “O que é o mal?”. A resposta, obviamente, não é simples, pois, segundo o filósofo polonês, o que geralmente classificamos como “mal” ou “malvado” é tudo o que não podemos entender, que não conseguimos expressar com clareza e explicar de forma satisfatória. O “mal” é aquilo que desafia e quebra essa inteligibilidade que torna o mundo um lugar habitável. O “mal”, diz Bauman, é sempre evocado quando insistimos em explicar o inexplicável.

Na literatura podemos encontrar diversas obras que procuram dar algum sentido ao “mal”. Crime e castigo, de Fiódor Dostoiévski, é um desses livros. Nele o autor russo procura lançar luz sobre os motivos de um jovem ter matado a machadadas uma velha que lhe tinha emprestado dinheiro. Quando terminamos a sua leitura não encontramos respostas definitivas para o porquê de tal comportamento, na verdade, nem mesmo o assassino consegue compreender o seu ato, preferindo expiá-lo com o propósito de, em algum momento, atingir algum tipo de paz de espírito. Então, pode-se dizer que Dostoiévski, muito antes de Bauman, já havia percebido que o mal é um “fato que não pede e nem admite maior explicação: o mal é”.

Seguindo essa tradição, vamos encontrar em um livro, escrito por uma jovem escritora marroquina e publicado em 2016, o mesmo dilema: tentar compreender como o mal se constrói no interior de uma pessoa e, por consequência, em uma sociedade. A autora chama-se Leïla Slimani e nasceu em Rabat, no Marrocos, em 1981, mas vive desde os 17 anos em Paris. O livro ao qual me refiro é a sua segunda obra publicada, tendo recebido, no ano de sua publicação, o prestigioso Prêmio Goncourt[3]. O nome em francês desse romance é Chanson Douce, publicado no Brasil com o título Canção de ninar[4].

Algumas editoras o classificam como um romance de suspense, de mistério e até como um thriller policial. Se nos ativermos apenas à superfície da obra é possível dizer que ele se enquadra em todas essas classificações, pois há um crime e, portanto, um assassino, uma vítima e a busca para tentar entender as razões que levaram à morte de duas crianças. Sim, nas primeiras páginas o leitor já sabe que as vítimas são duas crianças, uma morta por afogamento e outra esfaqueada. E, sim, também ficamos sabendo que o assassino foi a babá. No entanto, Canção de Ninar é muito mais do que a história de um crime hediondo; ele é o retrato de uma sociedade que vive em meio ao medo, sem entender que, muitas vezes, o que mais se teme mora entre as paredes de nossa casa. O interessante é que Slimani não faz julgamentos, o narrador procura se manter apartado emocionalmente da história, somente narrando os eventos a partir da perspectiva de diferentes personagens. O julgamento e a sensação de horror diante do que é mostrado fica por conta do leitor que deve “digerir” os acontecimentos e aguentar os “socos” que a narrativa lança contra o seu rosto. E aqui cabe uma frase muito citada de Kafka: “Apenas deveríamos ler os livros que nos picam e nos mordem. Se o livro não nos desperta como um murro no crânio, para que lê-lo?”.

Em Canção de ninar tudo começa com um casal, Myriam e Paul, vendo-se as voltas com seus dois filhos e a necessidade de trabalhar. Ambos desejam ir atrás de seus sonhos e aspirações profissionais, mas, ao mesmo tempo, preocupam-se com quem deixar suas crianças, Mila e Adam. O objetivo do casal é encontrar alguém confiável com o qual possam deixá-las e, assim, sentirem-se livres para correr atrás do sucesso que acreditam merecer. É nesse ponto que a autora aproveita para abordar um dos vários temas que circulam na narrativa: as angústias de Myriam ao se ver obrigada a abandonar seu trabalho e estudos como advogada. A combinação de angústia e medo, provocados pelo desejo de investir em um futuro profissional que dê mais sentido a sua vida, é a equação complexa que Myriam, assim como todas as mulheres, precisa resolver. A solução, no entanto, tem um preço alto já que vivemos em uma sociedade que ainda coloca sobre os ombros femininos a responsabilidade de criar e educar os filhos. Myriam representa todas as mulheres que vivem em meio à ansiedade, à incerteza e à culpa de querer ser algo mais do que mãe e dona de casa.

O “milagre” acontece quando surge Lourdes, a babá perfeita. Uma mulher de aspecto maternal, disposta não apenas a cuidar das crianças, mas da casa e dos próprios pais. Alguém que “se sobressai na arte de se tornar, ao mesmo tempo, invisível e indispensável”.

Margarete Hülsendeger é Física e Mestre em Educação em Ciências e Matemática/PUCRS. É mestra e doutoranda em Teoria Literária na PUC-RS. margacenteno@gmail.com

A autora disseca a vida de Lourdes, mostrando-a como uma mulher submissa ao marido e hostilizada pela própria filha. Lourdes é uma mulher sem expectativas, sem esperanças, sem futuro, colocando a realização de seus sonhos nas mãos dos casais para os quais trabalha. Quando ela chega até Myriam e Paul, sua filha fugiu, o marido morreu deixando-a apenas com dívidas. Daí sua necessidade de agradar, de se tornar imprescindível, de conquistar um espaço de acolhimento que lhe foi constantemente negado. Lourdes é uma assassina, mas também é vítima. Talvez seja isso que Leïla Slimani queira nos dizer: em uma sociedade tão centrada na conquista da satisfação pessoal, que pensa muito no “eu” e pouco no “nós”, todos podemos ser um dia assassinos e vítimas.

O crime de Lourdes se constrói de maneira dolorosamente lenta, criando uma tensão que às vezes se torna insuportável. A forma como seus gestos afetuosos com as crianças, se transforma em abuso e até mesmo em uma violência velada, faz correr um frio pela espinha que é difícil de ignorar. Lourdes não é um monstro, mas o monstro está dentro dela, esperando a oportunidade de fugir e arrasar tudo o que está no seu caminho. Quase no fim da narrativa, ela mesma reconhece ter esgotado toda a ternura que tinha em seu coração, com suas mãos não tendo nada mais para afagar. Quando percebe que sua existência é um enorme vazio que ninguém e nada é capaz de preencher, pensa: “Serei punida por isso. Serei punida por não saber amar”.

Em Canção de ninar as ideias de Zygmunt Bauman transformam-se em literatura. Nessa obra vemos, como disse o filósofo, o medo inchando, crescendo, sem nem mesmo os personagens perceberem. Um medo que se escolhe ignorar porque nos foi ensinado a desviar o olhar e a cobrir os ouvidos, pois queremos crer que “coisas assim” não “acontecem em nossa confortável, moderada, civilizada e racional sociedade moderna”.

Canção de ninar toca em pontos muito delicados, um espectro assustadoramente amplo de medos e incertezas que dominam as mentes de homens e mulheres nesse nosso “admirável mundo novo”. Contudo, é um livro que merece ser lido porque não só nos força a refletir sobre nossos mais profundos medos, como nos alerta para a presença do mal no nosso interior. Como explica Bauman, as relações nesses tempos líquidos não se fortalecem, os medos não desaparecem e o mal “aguarda pacientemente o momento mais oportuno para atacar”. O desconforto gerado pelo livro de Leïla Slimani é o resultado da combinação de todos esses sentimentos e sensações, mas sua leitura, repito, é necessária porque pode nos ajudar a ver além do nosso umbigo, a dirigir o olhar para o outro e a perceber que não resolveremos nossos problemas simplesmente fingindo que eles não existem.

[1] BAUMAN, Zygmunt. Medo líquido. Tradução Carlos Alberto Medeiros. São Paulo: Zahar, 2008.

[2] Como li a versão em espanhol, todas as traduções são de minha responsabilidade.

[3] O prêmio literário mais cobiçado na França.

[4] SLIMANI, Leïla. Canção de ninar. Tradução Sandra M. Stroparo. São Paulo: Planeta, 2018.

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