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O filme “A Chegada” e a metamorfose da realidade por meio da linguagem

 

Gustavo Fernandes Domingues*(1) e João Vítor Solano*(2).

 

“Eu pensava que esse era o começo da sua história. A memória é uma coisa estranha, ela não funciona como eu imaginava. Somos tão presos ao tempo, à sua ordem!” (ARRIVAL, min. 1-2, 2016)[1]

 “‘Se a forma de afiguração é a forma lógica, figuração chama-se lógica’ (…) ‘A figuração lógica pode afigurar o mundo.’ (…) ‘A figuração representa uma situação possível no espaço lógico.’” (WITTGENSTEIN, 1961, p. 60)

 

Resumo: Qual a verdade que há nas cores? Qual a verdade que há nos nomes que damos aos objetos? Isso tudo não é uma representação de mundo correspondente à nossa linguagem? A questão filosófica apresenta aqui é pensada primordialmente pelo filósofo austríaco, naturalizado britânico, Ludwig Wittgenstein (1889-1951), com base em sua obra “Tractatus Logico-Philosophicus, dando imagem ao marco histórico conhecido como virada linguística. No entanto, é intrigante perceber como essa ideia filosófica é representada na obra de ficção científica de Denis Villeneuve intitulada “A Chegada”, no qual trava uma discussão entre a linguagem e a representação de mundo.

Palavras-Chaves: Linguagem; Realidade; Lógica; Figuração e Afiguração.

Abstract: What’s the truth about colors? What truth is there in the names we give to objects? Isn’t all this a representation of the world corresponding to our language? The philosophical question presented here is thought primarily by the Austrian philosopher, naturalized British, Ludwig Wittgenstein (1889-1951), based on his work “Tractatus Logico-Philosophicus, giving image to the historical landmark known as linguistic turning point. However, it is intriguing to understand how this philosophical idea is represented in Denis Villeneuve’s science fiction work entitled “Arrival”, in which he holds a discussion between language and world representation.

Keywords: Language; Reality; Logic; Figuration and Affiguration.

  

 

INTRODUÇÃO

Gustavo Fernandes Domingues – *Graduando em Bacharelado e Licenciatura em História, 5º período, pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). E-mail: gustavo1357642@hotmail.com

Este trabalho é baseado nas ideias de Wittgenstein, um dos principais filósofos do século XX, estudioso da matemática, inovador da história da Lógica nos anos 20, com base em seu primeiro trabalho publicado, o livro chamado “Tractatus Logico-Philosophicus”, a representação da nossa realidade é condicionada pela nossa linguagem, pelo modo que comunicamos, para isso, ele chama a atenção para uma outra visão filosófica do mundo que dá sentido a essa teoria, a de não ver o mundo como um mero agregado de coisas (objetos) que podem ser pensadas separadamente, mas sim uma relação mútua entre elas, ou seja, do mesmo modo como não conseguimos pensar em algo fora do espaço e do tempo, também “não podemos pensar em nenhum objeto fora da possibilidade de sua ligação com outros” (WITTGENSTEIN, 1961, p. 56)

MUNDO IGUAL À LINGUAGEM?

Com a nossa forma simbólica de representar a linguagem, a escrita alfabética, acontece o mesmo no sentido das palavras, elas só adquirem significado quando estão inseridas em uma frase, pois somente a frase, composta por mais palavras organizadas de acordo com uma forma lógica, vai ser considerada verdadeira ou falsa. Por exemplo, “livro” é algo que necessita de complemento para se tornar uma unidade significativa, e quando usamos a frase “o livro está aberto na mesa” que posso assegurar se a proposição é verdadeira ou falsa. Quanto à questão lógica na formação da frase, deverá haver algo em comum nas diversas proposições para que elas possam ser considerada, ou seja, ter um sentido, por exemplo, a frase “O livro bate as suas asas em direção ao mar” não faz um sentido lógico para nós, enquanto “O livro é levado em direção ao mar” é compreensível a ponto de se considerado, independente da sua veracidade.

É importante entender o que significa para Wittgenstein a “figuração” e “afiguração” do mundo. Para ele, é impossível conhecermos a realidade do mundo, visto que nossa linguagem está moldada nas regras dele, sendo assim o mundo no qual conhecemos já é “figurado”, enquanto a “afiguração”, seria uma representação de um modelo de mundo, a partir do modelo já “figurado”.

João Vítor Solano – Graduando em Bacharelado e Licenciatura em História, 5º período, pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). E-mail: jvsolano80@gmail.com .

De acordo com esses pressupostos filosóficos, a nossa linguagem deforma a realidade tal como ela é, construindo assim uma percepção do real que somente o conhecimento da linguagem pode oferecer, nesse sentido, nossa linguagem afigura o mundo, sendo assim conceituado por Wittgenstein como a “figuração’ do mundo, nas palavras dele citada no começo desse trabalho, “a forma de afiguração é a forma lógica”, portanto “a figuração lógica pode afigurar o mundo”, ou seja, a própria linguagem está sujeita à lógica e à forma do mundo. Segundo o autor, não podemos pensar além da realidade, e sim como essa lógica estrutura nossa linguagem, ou seja, “A figuração é um modelo da realidade” (WITTGENSTEIN, 1961, p. 59).

O FILME E SUAS RELAÇÕES FILOSÓFICAS

        O filme “A Chegada” (Arrival) produzido em 2016, foi dirigido por Denis Villenuve, é uma longa-metragem de drama e ficção científica. Em seu enredo é mostrado uma linguista Dra. Louise Banks (Amy Adams) que após a chegada de estranhas criaturas vindas do espaço, é chamada pelo exército norte-americano para estabelecer contato com os “Heptapods”, nome dado à “Eles”, a fim de conseguirem saber o propósito deles. O filme se inicia mostrando a relação da protagonista com sua filha, até a morte da filha por conta de uma doença, no decorrer da obra, conforme a compreensão da linguagem dos “Heptapods” por parte da Louise Banks, o espectador  passa a compreender a realidade do mundo a partir da linguagem desses seres, como no filme, o físico Ian Donnelly (Jeremy Renner) fala:

“Diferente de toda língua escrita humana, a escrita deles é semasiográfica, ela transmite significado e não representa um som (…) Porque diferente da fala, um logograma não é preso ao tempo, como a nave e os corpos, a linguagem escrita não tem uma direção para frente ou para trás (…) O que levanta a pergunta, ‘é assim que eles pensam?’.” (ARRIVAL, min. 52-56, 2016)

Com isso, percebemos que na verdade a protagonista estava vivendo seu presente, futuro e passado, e assim, vendo os momentos e o fim trágico que viria a acontecer com a filha que viria a ter, quando ela entendeu a linguagem desses seres de outro planeta. Sendo assim, segundo Wittgenstein, a nossa linguagem está presa às regras e a lógica do mundo, quando Louise Banks passa a compreender a linguagem dos “Heptapods”, ela passa a afigurar a lógica de mundo deles, mudando sua concepção de tempo e linguagem.

Essa perspectiva vai muito além da narrativa do filme, também se pode analisá-la na estrutura na qual a obra foi pensada, possibilita a interpretação de que, conforme a Louise Banks vai tendo conhecimento da linguagem desses extraterrestres, o espectador começa a interpretar o filme de outra forma, no começo do filme mostra ela e sua filha, passando a ideia de um acontecimento passado, ou seja, uma memória, mas como a própria personagem diz, “A memória é uma coisa estranha, ela não funciona como eu imaginava”, pois ao passarmos a entender melhor a linguagem dos “Heptapods”, entendemos que a cena comentada retrata o futuro de Banks. Sendo assim, percebemos que de acordo com os avanços em interpretar a linguagem extramundana, a nossa visão sobre a narrativa do filme, muda em consonância com o aprendizado da protagonista.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A obra cinematográfica “A chegada”, além da reflexão linguística, procura também passar uma visão a respeito de guerras e confrontos, mostrando a importância do diálogo entre as partes para evitar a violência, e como essa falta de comunicação prejudica essa relação. No filme, essa visão é passada através da posição de algumas nações frente a vinda desses seres, percepção presente também por parte dos americanos, onde eles armam uma bomba no interior da espaçonave. Como também percebemos nos noticiários, que a demora de uma resposta à humanidade, ela mostrava inquieta, passando assim ter um comportamento mais hostil.

Porém, nos atentamos mais na reflexão acerca da linguagem, analisando a narrativa e estrutura dessa obra por meio da visão de Wittgenstein em seu primeiro livro “Tractatus Logico-Philosophicus”. Com isso, buscamos compreender como o modo que os “Heptapods” se comunicavam e escreviam está relacionado com a forma lógica de seu mundo, ou seja, conforme Banks compreende a linguagem desses seres, ela passa a viver o mundo de outra forma, enxergamos nesse ponto a ideia filosófica de Wittgenstein, de que a linguagem molda nossa percepção sobre o mundo. Nas palavras dele, “A totalidade dos pensamentos verdadeiros é figuração do mundo” (WITTGENSTEIN, 1961, p. 61), isto é, as nossas verdades sobre o mundo, apoiada  em nossa estrutura linguística, que também é sujeita a lógica do mundo, não se passa de uma imagem distorcida do real provocada por ela, a linguagem.  

 

Referências:

ARRIVAL. Direção: Denis Villeneuve. [S. l.: s. n.], 2016. Disponível em: https://globoplay.globo.com/a-chegada/t/JzN9CPpvDN/. Acesso em: 30 jul. 2020.

TRACTATUS Logico-Philosophicus. São Paulo: Routledge & Kegan Paul Ltd, 1961. 152 p. v. 10.

[1] Fala da personagem Louise Banks (Amy Adams)

 

*(1) Graduando em Bacharelado e Licenciatura em História, 5º período, pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). E-mail: gustavo1357642@hotmail.com.

*(2) Graduando em Bacharelado e Licenciatura em História, 5º período, pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). E-mail: jvsolano80@gmail.com .

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