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A CASA DE VINICIUS DE MORAES E DE LYGIA BOJUNGA: ARQUITETURA DA ESCRITA

A CASA DE VINICIUS DE MORAES E DE LYGIA BOJUNGA: ARQUITETURA DA ESCRITA

Patrícia Berlini Alves Ferreira da Costa*

 

Resumo: Nesse artigo fazemos uma análise literária do poema “A casa”, de Vinicius de Moraes, e do capítulo intitulado “A casa dos consertos”, presente na obra A bolsa amarela, de Lygia Bojunga. O corpus analisado apresenta uma breve contextualização histórica da literatura infantil, a intertextualidade entre as casas dos autores em estudo e o modo como elas foram arquitetadas através da escrita.

Palavras-chave: Literatura infantil, Casa, Vinicius de Moraes, Lygia Bojunga.

Abstract: In this article we do a literary analysis of the poem “The house”, from Vinicius de Moraes, and the chapter entitled “The repair house”, present in the work “The yellow bag”, of Lygia Bojunga. The analised corpus presents a brief historical contextualization of children’s literature, the intertextuality between the autors houses in study and the way they’ve been architected through writing.

Keywords: Children’s literature, House, Vinicius de Moraes. Lygia Bojunga.

 

Breve contextualização histórica da literatura infantil 

 

Patrícia Berlini Alves Ferreira da Costa
Coordenadora de Orientação Educacional
IFRO – Campus Colorado do Oeste

De acordo com Nelly Novaes Coelho (1985), a literatura infantil conhecida atualmente como clássica, a partir de seus ancestrais, raízes e fontes orientais indo-europeias, trouxe ao mundo algo fantástico e maravilhoso para retirar os leitores do universo real e levá-los aos sonhos e às fantasias.

Sob essa perspectiva, estudiosos de várias universidades têm buscado descobrir o caminho que a literatura percorreu desde as origens até o século XXI. Nesse sentido, algumas hipóteses dessa trajetória foram levantadas a partir de documentos encontrados em diferentes regiões do mundo cujo teor documental estão registrados nas inscrições em pedras, nas tabuinhas de argila e nos pergaminhos.

Para Coelho (1985), dessas impressões, as primeiras formas de escritas permitiram que palavras ditas a milênios ficassem marcadas para serem ouvidas nos dias atuais. Era como se as escritas primitivas tivessem força para ajudar o homem a vencer os seus inimigos e animais ferozes. Além disso, a história dos homens primitivos, contadas através de desenhos nas cavernas, era como se fosse uma leitura sem palavras, o que lembra muito bem as histórias contadas por caricaturas hoje em dia, nas quais mostram a magia literária desde a era pré-histórica.

Sob esse prisma, nos primórdios da humanidade, a vontade de contar histórias deve ter nascido no homem quando este sentiu a necessidade de se comunicar, e assim, passar para a sociedade as informações de suas experiências, que seriam muito significativas a quem precisasse ouvi-las.

Dessa forma, Coelho (1985) descreve que a gênese da literatura infantil ocidental está nas primeiras narrativas cuja difusão aconteceu durante a Idade Média pela transmissão oral dos povos. Logo, das primeiras narrativas orientais nasceram as medievais arcaicas que se popularizaram na Europa e se transformaram em literatura folclórica.

Sendo assim, entre os povos fortes e fracos, poderosos e desvalidos, houve certas peculiaridades históricas e culturais; uma relação direta entre a natureza e a literatura, criada para adaptar as exigências de cada época e região. Na Idade Média, por exemplo, o tema mais abrangente, presente nas versões latinas e em línguas vulgares, foi o da vitória dos povos fortes contra os fracos.

Nessa época, entre os séculos VI e VIII, surgiram em terras do Ocidente Europeu, a literatura popular chamada também de prosa narrativa, derivada das fontes orientais ou gregas, as quais denotam os problemas da vida cotidiana e dos valores do comportamento ético-social.

Entretanto, segundo Coelho (1985), a literatura de origem culta é aquilo que chamamos de prosa aventuresca das novelas de cavalaria realizadas por um idealismo extremo; além de um mundo de magias maravilhosas causando um estranhamento da vida real e concreta do cotidiano.

Para a escritora, em terras europeias, entre os séculos IX e X, começaram-se a expandir oralmente a literatura popular, hoje conhecida como folclórica ou infantil, iniciando assim a realização do processo histórico cultural; de fato, a preparação do mundo para a idade moderna.

Além disso, quando se fala em modernidade, foi através das narrativas transmitidas oralmente de uma terra a outra que a invenção literária foi comunicada e divulgada, o que alterou, entretanto, o caráter moralizante: principal marca da maior parte da literatura até o século XX.

Para tanto, a literatura é vista como o reflexo da sociedade. Dessa forma, as obras literárias consideram os valores: morais, religiosos, econômicos, e os políticos culturais da época as quais pertencem; um extenso processo evolutivo vivido pela humanidade desde as origens dos tempos. Isso não é diferente na literatura infantil, pois a situação da criança na sociedade, os conflitos entre os pais e os filhos, a exploração do trabalho infantil, entre outros, são temas bastante presentes nessa literatura dedicada aos pequenos leitores.

Da biografia dos autores em estudo

Vinicius de Moraes, carinhosamente chamado de poetinha, estudou Letras, Jornalismo, Cinema e Direito. Além disso, o poeta foi criado em um ambiente musical, pois sua mãe e a avó tocavam piano; o pai, violão. O autor e também cantor, teve muitos parceiros musicais como: Toquinho, Tom Jobim, Chico Buarque, Edu Lobo, entre outros. Embora não tenha sido arquiteto, Vinicius de Moraes foi influenciado por amigos arquitetos com os quais conviveu, o que contribuiu para a criação do poema: A Casa, que mais tarde foi musicalizado pelo próprio poeta. Ainda, os versos desse poema exemplificam a capacidade do autor na elaboração de estratégias artísticas e literárias que abusam não só da criatividade, mas também da imaginação.

Por outro lado, Lygia Bojunga Nunes é gaúcha de Pelotas. Mudou-se para o Rio de Janeiro aos oito anos de idade. Foi como atriz que iniciou sua vida profissional. Posteriormente, escreveu para a rádio, depois para a televisão, mas a paixão pelos livros acabou predominando e ela assumiu por completo sua vocação literária. A Bolsa Amarela, cujo capítulo 9 escolhemos para analisar, é um dos seus livros mais premiados, (recebeu, entre outros, em 1982, o prêmio Hans Christian Andersen, IBBY, considerado o Nobel da Literatura Infantil).

Da intertextualidade entre as casas de Lygia Bojunga Nunes e Vinicius de Moraes

  O poema: A casa, de Vinicius de Moraes, está publicado no livro A arca de Noé (1970). Essa obra marcou a literatura infantil brasileira porque, diferentemente de outros livros de poemas destinados aos pequenos leitores, A arca de Noé distanciava-se do caráter moralizante que muitas vezes o texto infantil apresentava. Além disso, o tom de brincadeira, os jogos verbais, as situações inusitadas e a presença recorrente dos animais são alguns dos aspectos que fazem A arca de Noé uma obra de qualidade e de valor literário.

O poema: A casa, assim como: O pato, é um dos poemas do autor mais conhecidos. Isso se dá, talvez, pela brincadeira, pelo humor, pelo aspecto inusitado da arquitetura da casa, pela musicalidade do poema, enfim, por todos esses recursos. Fato é que no poema em análise, o eu lírico brinca de ser um arquiteto, valendo-se da escrita para (não) construir sua casa imaginária.

Vejamos o poema:

A Casa

Era uma casa

Muito engraçada

Não tinha teto

Não tinha nada

Ninguém podia entrar nela não

Porque na casa não tinha chão

Ninguém podia dormir na rede

Porque na casa não tinha parede

Ninguém podia fazer pipi

Porque penico não tinha ali

Mas era feita com muito esmero

Na Rua dos Bobos

Número Zero (MORAES, 1991, p.28)

Ao escrever esse poema, Vinicius de Moraes afirma que a casa: Não tinha teto/Não tinha nada, o que de fato imprime humor a essa afirmação mencionada pelo eu lírico. Ora, onde está a graça de uma casa que não tem nada? Pois bem, a graça está na ausência de elementos, os quais permitem que a casa seja verdadeiramente uma casa.

Em seguida, no campo da imaginação: Ninguém podia entrar nela não/ Porque na casa não tinha chão. Logo, essa referência faz o leitor autoquestionar-se, pois qual arquiteto desenharia uma casa sem chão sabendo que o chão é o alicerce da casa o qual segura as paredes? Convém lembrar que o público alvo do poema, as crianças, tem por hábito esparramar seus brinquedos pelo chão, e enquanto brincam aprendem um pouco mais sobre a vida e sobre os alicerces que estruturam seu cotidiano.

Tendo em vista os aspectos apresentados, no parâmetro da negação, Ninguém podia dormir na rede/ Porque na casa não tinha parede. Entretanto, as paredes particularizam a casa, pois por dentro delas as pessoas têm privacidade. Além disso, o eu lírico ainda enfatiza que: Ninguém podia fazer pipi/Porque penico não tinha ali, mesmo sabendo que o banheiro é o lugar mais singular dentro de uma casa, no qual as pessoas fazem suas necessidades fisiológicas sem serem incomodadas por alguém.

Não obstante, a casa era feita com muito esmero/Na Rua dos Bobos/Número Zero. É fato que, além de tudo, a casa era feita com cuidado. Ainda, vale salientar que bobos não significa tolos, mas pessoas fora do alcance da racionalidade/fantasia dos poetas e crianças e por que não os arquitetos? Acerca do número zero, metaforicamente, essa referência demonstra a busca da plenitude, da casa ideal, da arquitetura perfeita, da casa que todos gostariam de ter.

Contudo, um outro tipo de arquitetura construída pela escrita pode ser observado no capítulo 9 da obra: A bolsa amarela, de Lygia Bojunga Nunes, intitulado A casa dos Consertos. Essa obra foi publicada em 1976. Para quem tem conhecimento é sabido que em 1976, a sociedade brasileira estava em plena ditadura militar. Como representação disso, Lígia Bojunga discute em sua obra o papel da liberdade, pelo olhar de uma criança, representado nas peripécias da personagem Raquel e de todos os medos que ela guarda dentro da bolsa amarela.

A autora, tal como Vinicius de Moraes e outros, como: Ziraldo, Ruth Rocha, Ana Maria Machado, Elias José e José Paulo Paes, está entre aqueles escritores responsáveis pelo chamado boom da literatura infantil brasileira. Esses artistas da palavra tinham e têm respeito pelo leitor; por isso colocavam em suas mãos livros de qualidade. Talvez, esse seja um dos motivos que leva a novela A bolsa amarela ser tão premiada (além do prêmio já citado anteriormente, essa obra recebeu, em 1976, o prêmio: O melhor para a criança, da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil; em 1978, entrou para a Lista de Honra do IBBY  International Board on Books for Youth;).

Em A bolsa amarela, Lygia Bojunga soube fundir a realidade e a ficção ao fazer com que a crítica à opressão sob a personagem Raquel floresça em meio ao universo maravilhoso. Vejamos um fragmento do capítulo em estudo:

A CASA DOS CONSERTOS

Entrei. A casa dos Consertos se dividia em quatro partes. Na primeira tinha uma menina assim da minha idade; na outra tinha um homem; na outra, uma mulher, e na outra, um velho. A menina estava estudando, a mulher cozinhando, o homem consertando um relógio, o velho consertando uma panela.  (BOJUNGA, 2002, p. 80)

Pode-se observar que a casa dos consertos é dividida em quatro partes: na primeira parte, há uma menina estudando; na segunda, há um homem consertando uma panela; na terceira, há uma mulher cozinhando; e na quarta, um velho consertando um relógio. De repente, um grande relógio começa a bater e a tocar uma música ao mesmo tempo. A família dessa casa começa a dançar por todos os lados. Assim que o relógio para de tocar, as pessoas trocam de lugar e começam a fazer o serviço uma das outras: o velho faz o trabalho da menina, a menina faz o trabalho da mãe, assim por diante.

A arquitetura da casa dos consertos foi projetada pelos próprios moradores da casa, assim, em à casa de Lygia Bojunga, há mais preocupação com os aspectos do interior, pois dentro da casa há toda uma organização entre os afazeres domésticos e os moradores que nela há. Além disso, não se trata de uma casa qualquer, contudo, restritivamente, é a casa dos consertos, criada para consertar coisas que as pessoas pensam não ter mais utilidade.

Entretanto, em à casa de Vinicius de Moraes a preocupação se dá com o exterior em relação ao desenho da casa, o que a coloca como sendo uma casa comum. Quando o eu lírico usa o verbo no tempo pretérito imperfeito para dizer: Era uma casa, os leitores podem pensar: então era uma casa, já não é mais? Além disso, o artigo indefinido uma ressalta que se trata de qualquer casa; diferente da casa dos consertos, na qual é usada a preposição /de/ + artigo definido /os/, esclarecendo que tipo de casa é essa.

Todavia, quando se fala de definição, em relação aos moradores da casa dos consertos, a escritora usa os artigos indefinidos para uma menina, uma mulher, um velho e um homem que a princípio são pessoas comuns. No entanto, logo em seguida, a escritora vai determinando os moradores da casa dos consertos pelos artigos definidos ao especificar que a menina estava estudando, a mulher cozinhando, o homem e o velho consertando, ao contrário da casa de Vinicius de Moraes que nem morador podia ter porque era uma casa inexistente.

Ainda, uma das coisas inusitadas que chama a atenção dos leitores mirins na casa dos consertos é o cachorro pendurado na parede para ser consertado também. O cachorro, por sua vez, só pensa em morder os outros e por isso terá seu pensamento consertado. De fato, a casa dos consertos não conserta apenas objetos e, provavelmente, se a casa dos consertos de Lygia Bojunga se encontrasse com a casa do poeta Vinicius de Moraes consertaria o que está faltando nesta, ou seja, tudo. No entanto, se a casa do poeta fosse consertada não haveria o mesmo encantamento que hoje há.

Por fim, a arquitetura das duas casas, tanto a de Lygia Bojunga quanto a de Vinicius de Moraes, foi desenhada para encantar o público infanto-juvenil. A primeira, pelos acontecimentos do seu interior, e a segunda, pela inexistência do seu exterior; mas ambas pelos seus elementos que permitem o cumprimento desse encanto.

Considerações finais

Atualmente não há um ideal de literatura infantil. Será ideal a que compreender a necessidade do tipo de leitor que se destina com a época que ele está vivendo. O maravilhoso não está no cotidiano real das pessoas e sim na imaginação e no simbólico.

Dessa forma, é através desse encantamento que o homem encontra um apaziguamento para suas ansiedades e amores causadas pela impossibilidade de se completar no plano real. Sendo assim, este ir e vir prazeroso ao imaginário estabelece uma relação entre o brincar e o fantasiar de uma maneira que o público alvo da literatura infantil deixa-se conduzir pelo maravilhoso presente nas produções literárias.

A literatura infantil, portanto, possibilita ao leitor vivenciar experiências grandiosas devido as lacunas presentes nos textos, pelas quais convidam os leitores a completá-las no plano real. Nesse sentido, expande o caráter humanizador a fim de trazer ao público os valores sociais propiciando uma leitura completa entre as obras e os respectivos leitores em formação.

Referências

BOJUNGA, Lygia. A bolsa amarela. São Paulo: Ed. Objetiva, 2002.

COELHO, Nelly Novaes. Panorama histórico da literatura infanto/Juvenil. São Paulo: Quiron, 1985.

MORAES, Vinicius de. A arca de Noé. Poemas infantis. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.

 

COSTA, P.B.A.F

* Formada em Letras e Pedagogia pela Universidade Federal de Rondônia. Pós-Graduada em Psicopedagogia Clínica e Institucional pela UNINTER. Pós-Graduada em Libras pela Faculdade de Santo André – Vilhena/RO. Orientadora Educacional do Instituto Federal de Rondônia.

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