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DO CONTOS DE FADAS E SUAS INTERPRETAÇÕES

 

DO CONTOS DE FADAS E SUAS INTERPRETAÇÕES

Patrícia Berlini Alves Ferreira da Costa*

 

Patrícia Berlini Alves Ferreira da Costa
Coordenadora de Orientação Educacional
IFRO – Campus Colorado do Oeste

Resumo: O artigo apresentado faz um estudo bibliográfico sobre a representação simbólica dos contos de fadas e suas interpretações. Para essa pesquisa, foram escolhidos os contos: “A Bela e a Fera”, “O Rei Sapo” e “O Príncipe Querido”, que serão interpretados de acordo com as reflexões de Diana e Mário Corso e, principalmente, sob a luz de Bruno Bettelheim.

Palavras-chave: Contos de fadas, Criança, Interpretação.

Abstract: The presented article makes a bibliographic study about the simbolical representation of fairy tales and its interpretations. For this research, the tales chosen were: “Beauty and the Beast”, “The Frog King” and “The Dear Prince”, which will be interpreted according to the reflections of Diana and Mário Corso and, mainly, under the light of Bruno Bettleheim.

Keywords: Fairy tales; Child; Interpretation.

 

Introdução

De acordo com as concepções de alguns psicanalistas, tais como Bruno Bettelheim, Diana e Mário Corso e Marie von Franz, é possível perceber que o trabalho com os contos de fadas na escola, ainda na primeira infância, é essencial para o amadurecimento emocional e psicológico da criança. Tendo essa afirmação como hipótese para a elaboração deste trabalho, entendemos ser relevante discutir, por exemplo, o que é preciso ser considerado ao colocar a criança em contato com esse gênero literário.

Dessa forma, para que o público alvo da literatura infantil amadureça emocional e psicologicamente, é de grande relevância que o professor não lhe interprete o conto de fadas deixando para a própria criança interpretá-lo. De fato, cada criança tem uma forma de ver o mundo o que a conduzirá para uma interpretação singular. Entretanto, o professor, enquanto mediador, precisa compreender como os contos de fadas se representam simbolicamente para entender o que acontece com a mente da criança ao ouvir uma história. Sob essa perspectiva, a atuação da escola como agente de mediação literária para a formação íntegra da criança é o que traz a motivação para o desenvolvimento desse trabalho.

Contudo, fica a critério de alguns psicanalistas a análise das representações simbólicas dos contos de fadas e de sua importância para promover o desenvolvimento emocional e psicológico do pequeno leitor, pois o estudo da psique e do inconsciente trata-se de uma propriedade da psicanálise. Por causa disso, trouxemos para o estudo desse artigo algumas leituras de teóricos, e também psicanalistas, que são convergentes na interpretação das histórias de fadas e de sua relevância para a psique infantil, mais especificamente a reflexão de Bruno Bettelheim como principal suporte teórico para esse trabalho. Sendo assim, a análise “que se segue é o método de interpretação dos contos de fadas (FRANZ, 1981, p. 49) a fim de orientar os professores para as demais interpretações.

 

Os contos e os símbolos: um estudo de suas representações

Segundo Marie von Franz (1981), muitos estudiosos e pesquisadores no campo da mitologia se opõem a algumas afirmações junguianas quando relatam que os mitos não precisam de explicações psicológicas ou de interpretações, ou seja, eles falam por si mesmos. Isso, destaca a autora, é verdadeiro; pois, como discípula de Jung, ela entende que o mito, assim como o sonho, é sua melhor explicação. Logo, “O sonho é a melhor expressão que existe para os acontecimentos interiores, podendo-se dizer o mesmo com relação aos mitos e aos contos de fadas” (1981, p.49).

Então, nesse sentido, aqueles que odeiam interpretações, dizendo que o mito é suficiente, estão certos. A interpretação é um escurecimento da luz original que brilha no próprio mito. Mas se alguém lhe conta um sonho maravilhoso, e está muito empolgado com ele, e você se senta calmamente e diz: “Sim, então você teve esse sonho!”, e ele lhe dirá: “Mas eu quero saber o que significa!”. Você, então pode responder: “Bem, olhe para o sonho! Ele lhe diz tudo que possa ser dito. E essa é a melhor interpretação possível”. Isso tem seu mérito, pois o indivíduo que sonhou vai para casa e pensará sobre o sonho até que de repente terá sua própria iluminação sobre ele (FRANZ, 1981, p.49).

Isso explica que a interpretação dos sonhos, assim como dos contos de fadas, depende de quem lê ou de quem sonha; cujo processo não pode ser interrompido por uma terceira pessoa – afirma Marie von Franz (1981, p. 50). Como a autora sugere, a interpretação de uma história infantil é uma arte deixada para o próprio leitor fazê-la, entretanto, existem algumas regras que nos guiam aos significados de seus símbolos, por exemplo, nos “contos de fadas o tempo e lugar são sempre evidentes porque eles começam com ‘Era uma vez’ ou algo semelhante, que significa fora do tempo e do espaço – a ‘terra-de-ninguém’ do inconsciente” (FRANZ, 1981, p. 51). Essa é a primeira regra.

Além disso, existem quatro funções da consciência, as quais Marie von Franz (1981) chama de: o tipo-pensamento, o tipo-sentimento, o tipo-sensitivo, e por fim, o tipo-intuitivo, que se colocam, como ferramentas, a disposição do pesquisador a fim de contribuir para essa investigação. Logo:

[…] pode-se interpretar um conto de fadas com qualquer das quatro funções da consciência. O “tipo-pensamento” apontará a estrutura e a maneira pela qual todos os temas se conectam. O “tipo-sentimento” colocará todos numa ordem de valores (hierarquia de valores) que é igualmente racional. Com a ajuda desta função uma interpretação boa e completa de contos de fadas pode ser feita. O “tipo-sensitivo” se contentará somente em olhar os símbolos e simplificá-los. O “tipo-intuitivo” verá todos os elementos na sua totalidade; ele será o melhor dotado para mostrar que o conto de fadas, tomado em seu conjunto, não é uma história discursiva, mas é realmente uma única mensagem com muitas facetas. Quanto mais diferenciadas e desenvolvidas são as funções do consciente, melhor e mais rica será a interpretação feita, pois, a história será circundada, tanto quanto possível, pelas quatro funções. Quanto mais se tiver desenvolvido e treinado o uso de suas funções mais conscientes, melhor e mais colorida será a interpretação. É uma arte que tem que ser praticada. Não pode ser aprendida apesar de algumas indicações que eu tento dar. Eu sempre digo aos estudantes que não aprendam somente com minhas aulas, mas que tentem eles mesmos interpretar os contos de fadas, pois essa é a única maneira de se aprender. Interpretação é uma arte, na verdade um ofício, que depende unicamente da pessoa (FRANZ, 1981, p. 28, grifos da autora).

Isso porque essas histórias oferecem para as estruturas psíquicas: imagens esclarecedoras de si.

Para Bettelheim (2017, p. 205), “Tolkien descreve as facetas necessárias a um bom conto de fadas, tais como fantasia, recuperação, escape e consolo – recuperação de um desespero profundo, escape de algum grande perigo, mas acima de tudo, consolo”, ou seja, viveram felizes para sempre.

Segundo o autor, os contos de fadas tradicionais apresentam, no final, um herói que, por merecimento, é recompensado; e a pessoa má terá seu castigo na mesma proporção do mal que praticou.  Desse modo, a justiça sempre prevalece. Podemos ilustrar esse traço invariável com o conto de fadas João e Maria. Nessa história, a bruxa, que desejava engordar as crianças para cozinhá-las, morre queimada no fogo. Isso prova, simbolicamente, que o mal deve ser exterminado da vida do herói para que ele viva feliz para sempre. Entretanto, antes disso, obstáculos precisaram ser transpostos no decorrer da história, a começar pela ameaça à existência do herói. Ainda de acordo com Bettelheim, a ameaça pode ser física ou moral e, mesmo sendo algo complexo, não há problematização dessa questão por parte das personagens. De modo que a questão está posta e cabe aos leitores fazerem as devidas reflexões.

De acordo com Bruno Bettelheim (2017), por exemplo, no conto A Bela Adormecida, quando a fada amaldiçoa a princesa, em nenhum momento isso é questionado por seus pais ou qualquer outra personagem da história. O mesmo acontece com Branca de Neve que não se pergunta sobre o ciúme da madrasta por sua beleza; com Rapunzel que não se questiona sobre o fato de a feiticeira tomá-la de seus pais; e com a madrasta de Cinderela que promove suas filhas às custas da heroína e o pai assim permite.

De qualquer modo, no momento em que a história começa, iniciam-se também os perigos e os obstáculos a serem transpostos pelos heróis começam a aparecer. Fazendo uma analogía, podemos dizer que assim também ocorre na vida da criança quando é colocada no mundo. Então, como explica Bettelheim (2017), ou a criança cede ao desespero ou foge dele como em muitos contos em que as princesas sentam-se sobre uma pedra e choram esperando alguém (fada), ou uma força espiritual, que ass ajudem a se livrar da ameaça.

Na superficie, as coisas são diferentes em “João e Maria”. Essas crianças atingem sua humanidade mais elevada assim que a feiticeira morre queimada, e isso é simbolizado pelos tesouros que obtém. Mas, como os dois definitivamente não estão em idade de se casar, o estabelecimento de relações humanas que abolirão para sempre a angústia de separação é simbolizado não por seu casamento, mas por seu retorno feliz para o pai em casa, onde – com a morte da outra personagem má, a mãe – agora “todas as preocupações haviam terminado, e eles viveram juntos na mais completa alegria” (BETTELHEIM, 2017, p. 209, grifos do autor).

Na história de João e Maria, Bettelheim descreve o desenvolvimento do herói como justo e consolador. Para ele, o consolo é a parte mais elevada do conto de fadas, pois contribui para que a criança tenha coragem de enfrentar os obstáculos surgidos de modo confiante, do mesmo jeito que ocorre com as personagens das histórias que lê ou ouve: “deserção dos pais em João e Maria; o ciúme por parte dos pais em Branca de Neve e das irmãs em Cinderela; a raiva devoradora do gigante em João e o Pé de Feijão; a vileza dos poderes do mal em A Bela Adormecida” (BETTELHEIM, 2017, p. 209).  Tal situação pode criar condições para que a criança encontre soluções para alguns problemas.

Como exemplo disso, ao ler para uma criança a história de Branca de Neve, um adulto, querendo protegê-la, encerrou a história com o casamento da personagem. A criança que conhecia o fim da história, prontamente, perguntou: “E os sapatos de ferro em brasa que mataram a rainha malvada?” (BETTELHEIM, 2017, p. 210). Ou seja, na visão do psicanalista a criança só acredita que está tudo bem com o mundo, sentindo-se segura nele, se o herói for recompensado e os maus forem castigados. Por isso, de acordo com o autor, é melhor que um conto de fadas seja narrado ao invés de lido; para que ele atinja seus significados simbólicos.

Para Bruno Bettelheim (2017, p. 220), a “(…) história de fadas comunica à criança uma compreensão intuitiva, subconsciente, de sua própria natureza e do que o futuro pode lhe reservar se ela desenvolver seus potenciais positivos”.  Nessa perspectiva, as imagens e as ações que os contos apresentam às crianças manifestam estados de sua mente interior. Ou seja, da mesma forma que a criança percebe a mágoa de uma pessoa quando está chorando, o conto de fadas não precisa se estender sobre a infelicidade da personagem; a criança assim a percebe sem o conto mencionar. Isso porque:

Nos contos de fadas, os processos interiores são traduzidos em imagens visuais. Quando o herói é confrontado por problemas interiores difíceis que parecem desafiar uma solução, seu estado psicológico não é descrito; a história de fadas o mostra perdido numa floresta impenetrável e densa, sem saber que caminho tomar, desesperado para encontrar uma saída. Para todos que ouviram contos de fadas, a imagem e o sentimento de estar perdido numa floresta profunda e escura são inesquecíveis (BETTELHEIM, 2017, p. 221).

Segundo o autor (2017, p. 221), “Quando a mãe de Cinderela morre, não nos é dito que Cinderela sofreu por ela ou se lamentou a perda e se sentiu sozinha, abandonada, desesperada, mas simplesmente que todos os dias ela ia ao túmulo da mãe e chorava”. Claro que, conforme destaca o psicanalista, se analisarmos os contos de fadas a partir da verossimilhança com o mundo real, poderíamos encará-los como inapropriados para as crianças. No entanto, é essa semelhança que as ajuda a solucionar seus conflitos do interior.

Cabe aqui lembrar que a interpretação dos contos de fadas é relevante para melhor compreender o amadurecimento emocional e psicológico da criança. Entretanto, conforme Marie von Franz e Bruno Bettelheim, ao se narrar um conto ao pequeno leitor, fica a critério dele a interpretação da história, pois ele vê o mundo de modo particular. Dessa forma, de maneira alguma, o professor, enquanto mediador literário, deve explicar os símbolos dos contos de fadas ao público infantil, contudo, é importante que tenha conhecimendo desse assunto para que possa saber como trabalhar, portanto, com esse gênero literário.

“A Bela e a Fera” na conquista do amor e da humanidade

Em 1740, o conto: “A Bela e a Fera”, foi publicado anonimamente por Gabrielle-Susanne Barbot de Villeneuve, cuja versão retrata um príncipe que perde o pai ainda jovem e que sua mãe, a rainha, parte para uma guerra em defesa do reino deixando seu filho aos cuidados de uma fada malvada que tenta seduzi-lo e ao ser rejeitada, o transforma em fera. Logo, em 1756, a história foi reescrita por Jeanne-Marie Leprince de Beaumont que ocultou alguns fatos inapropriados para as jovens da época, atribuindo um teor mais romântico do que erótico à história.

Para Joseph L. Henderson (2008), uma das versões do conto “A Bela e a Fera” é aquela que a filha mais jovem de quatro irmãs torna-se a preferida do pai, pois enquanto as outras almejam presentes caros, Bela deseja somente uma rosa branca. Essa é a adaptação na qual Henderson analisa as representações simbólicas.Na história de Branca de Neve é possível observar que, a vida, em seu aspecto social, é determinada pelo começo, meio e fim, isto é, as crianças crescem, desprendem-se dos pais, vão em busca de oportunidades, enfrentam obstáculos, e se tudo correr bem, seguem felizes; pelo menos é o desejo de muitas pessoas no contexto real. Cabe lembrar que os desafios são vencidos por meio das virtudes de Bela – que não se preocupa com as aparências físicas, mas com a interioridade da Fera, personagem que tem a aparência física de um animal, mas é um ser humano enfeitiçado.

Corso e Corso (2006) afirmam que nos contos de fadas, como “A Bela e a Fera”, há um desencontro inicial, pois a relação entre as personagens começa a partir da repulsa de Bela pelas qualidades  de Fera, cujo instinto é típico de um animal, as quais são parecidas com as características do homem. Entretanto, “Uma vez posta à prova a nobreza dos sentimentos e a força dos heróis, o casal terá direito a uma imagem condizente com a idealização da paixão” (CORSO; CORSO, 2006, p. 129), ou seja, como se diz: “quem ama o feio, bonito lhe parece”, pois:

dar a vida em troca da do pai, pode ser agora lido como a necessidade de uma escolha. […] A aparência monstruosa do consorte revela o quanto ela ainda não pode ver nele nada atraente, apenas assustador por ser um homem, como o pai, mas que tem, para com ela, intensões bem diferentes (CORSO; CORSO, 2006, p. 136).

Para Corso e Corso (2006), esse conto revela que as pessoas aprendem a amar se aprenderem também a lidarem com as frustrações, além de compreenderem as necessidades dos outros. De acordo com os autores, a história “A Bela e a Fera” pode ser comparada simbolicamente à conquista do amor e da humanidade, pois da mesma forma que a Fera (animal) torna-se príncipe (homem), é fato que ninguém nasce homem, ao contrário, torna-se um.

Segundo Henderson, “verificamos que Bela representa qualquer jovem ou mulher envolvida numa relação afetiva com o pai” (2008, p. 180). Para o autor, a bondade da jovem está representada por meio da rosa branca que coloca ela e o pai sob o domínio de uma força que expressa não só a bondade, mas também a crueldade.

Além disso, para Bettelheim,

Há três traços típicos nas histórias do ciclo do noivo animal. Em primeiro lugar, permanece-se sem saber como nem por que o noivo foi transformado num animal; e isso apesar de a maioria dos contos de fadas fornecer tal informação. Em segundo lugar, foi uma feiticeira que praticou tal ato; no entanto, ela não é punida por suas más ações. Em terceiro, é o pai que faz com que a heroína se una à Fera  (2017, p. 388).

De acordo com esse autor é o afeto e a bondade de Bela que transformam as atitudes da Fera em benevolentes. Isso só é possível por causa do terceiro traço típico das histórias do ciclo do noivo animal. Logo, se observarmos a rosa branca como um símbolo, entendemos que é por meio dela que a Bela e a Fera se conhecem. De fato, a filha pede uma rosa branca ao pai que ao encontrá-la, encontra também a Fera; que ao entregar a rosa branca para sua filha, o pai entrega, simbolicamente, também a Fera. No entanto, o amor da filha é tão grande pelo pai que pede a ele para ambos trocarem de lugar e ela retornar ao Castelo.

Assim, “Bela se junta a Fera só porque ama o pai, mas, ao amadurecer, seu amor troca de objeto principal” – afirma Bettelheim (2017, p. 390). De fato, a troca desse amor mostra, em forma de símbolo, o amadurecimento da personagem em relação ao conhecimento de seu próprio corpo, da sua mente e dos seus sentimento; o que acontece com a criança quando passa pelo período de transição da infância para a adolescência. Nessa fase, ela adquire uma nova identidade: não é mais criança. Agora, é dotada de personalidade, opinião, gostos e comportamentos. Entende, sob o olhar de um adulto, o que é amar.

Nessa perspectiva, Bela despoja de um amor imperfeito que, na realidade, seria impossível acontecer. Amor entre um ser humano e um animal. Entretanto, quando a personagem vai além da natureza humana e passa a amar a Fera como homem, ela “liberta a si mesma e a imagem que faz do homem, das forças repressivas que a envolvem, tomando consciência da sua capacidade de confiar no amor como um sentimento onde a natureza e espírito estão unidos, no mais elevado sentido destas palavras” (HENDERSON, 2008, p. 180).

Importante destacar que nessas circunstâncias o “(…) enamoramento provoca uma idealização do objeto amado. […] O feio vira bonito, essa é a lição primeira do conto” (CORSO; CORSO, 2006, p. 133) e, na nossa opinião, de muita relevância, pois os valores são mais atraentes do que as aparências. Contos como esse “simplesmente ensinam que, para o amor, é absolutamente necessária uma mudança radical de atitudes” (BETTELHEIM, 2017, p. 387). Segundo as concepções dos psicanalistas, a criança é capaz de perceber essa representação sem que algum mediador de leitura explique isso a ela.

 “O Rei Sapo” e a repulsa infantil ao sexo

Segundo Bruno Bettelheim, em 1815, foi publicada uma nova versão do conto: “O Rei Sapo”, pelos irmãos: Jacob e Wilhelm Grimm. Nesse conto, conforme relata o autor, a princesa estava brincando junto a um poço com sua bola de ouro. Logo, a bola caiu dentro dele. Desesperada e sem saber o que fazer, ela chorou na esperança de conseguir resgatá-la. Bem perto do poço, havia um sapo que prometera trazer a bola da princesa de volta se ela o aceitasse como companheiro. Para isso, ela deveria aceitar que o sapo sentasse ao seu lado, bebesse de seu copo, comesse de seu prato e dormisse na sua cama. Para resgatar a bola, a princesa assim concordou; pensando que um sapo jamais poderia ser o companheiro de uma princesa.

Para Bruno Bettelheim:

Nessa história, o processo de maturação é acelerado enormemente. No começo, a princesa é uma bela menininha brincando descuidadamente com uma bola. (É-nos dito que nem mesmo o sol jamais vira algo tão belo como essa menina.) Tudo acontece por causa da bola. Ela é duplamente um símbolo de perfeição: enquanto esfera e por ser feita de ouro, o material mais precioso. A bola representa uma psique narcisista ainda não desenvolvida: contém todos os potenciais, nenhum dos quais foi concretizado ainda. Quando a bola cai dentro do poço fundo e escuro, a ingenuidade é perdida e a Caixa de Pandora se abre. A princesa se lamenta tão desesperadamente a perda de sua inocência infantil quanto a da bola. Somente o feio sapo pode resgatar-lhe a perfeição – a bola – da escuridão que caiu o símbolo da sua psique. A vida se tornou feia e complicada tão logo começou a revelar seus lados mais sombrios (2017, p. 394).

Conforme suas teorias psicanalíticas, Bettelheim (2017, p. 395) afirma que “Ainda presa ao princípio do prazer, a menina faz promessas visando a obter aquilo que deseja, sem se preocupar com as consequências. Mas a realidade se impõe”. Para o autor, a criança tenta evitá-las a partir do momento que fecha a porta ao sapo, mas o rei, na função de superego, sobrepõe-se às vontades da garota a fim de que as promessas sejam cumpridas e a personagem cresça à medida que cumpra os desejos do sapo.

Em se tratando de intimidade, esse psicanalista esclarece que, no primeiro momento, a menina está brincando feliz com sua bola quando a perde para o poço. Em seguida, aparece o sapo que conversa com ela e a questiona sobre o motivo de sua angústia. Logo, devolve a ela a bola e depois vai visitá-la. Pede para comer, beber, sentar-se junto dela, e por fim, para dormir na sua cama. É fato que quanto mais o sapo está fisicamente próximo da princesa, mais ela se sente enojada dele. Isso explica, como afirma Bettelheim, que o despertar para o sexo não está livre de angústia, entretanto, quando a menina atira o sapo na parede, essa raiva transforma-se em amor – o que comprova seu amadurecimento sexual.

De certo modo, segundo Bruno Bettelheim esse conto mostra que o ser humano somente é capaz de amar se for capaz de sentir, mesmo que os sentimentos sejam negativos; antes sentir do que não. Para ele, no início da história, a princesa coloca a bola como o único centro de seu interesse, destituída de qualquer sentimento, pois em nenhum instante ela preocupou-se no que o sapo pudesse sentir com sua promessa, de fato, a princesa pensou somente nela. Por outro lado, conforme o sapo vai se aproximando pessoalmente da menina, seus sentimentos vão se construindo na demonstração de sua raiva, ódio e angústia. Sendo assim, ao obedecer seu pai, sua personalidade (individualidade) vai se constituindo, o que a torna independente, já que suas atitudes vão se formando em correspondência ao seu superego (pai). Sendo assim:

O pai, como em tantas histórias do ciclo do noivo animal, é a pessoa que une a filha ao futuro marido em “O Rei Sapo”. É somente devido a sua insistência que se dá a união feliz. A orientação paterna, que leva à formação do superego – promessas devem ser cumpridas, por mais irrefletidas que tenham sido -, desenvolve uma consciência responsável. Tal consciência é necessária para uma união pessoal e sexual feliz, a qual, sem uma consciência madura, estaria desprovida de seriedade e permanência.
Mas, e quanto ao sapo? (BETTELHEIM, 2017, p. 396).

 Como explica o psicanalista, antes de conviver com a princesa, o sapo também precisa amadurecer – o que só é possível na relação dele com a menina numa condição materna. Afinal, pelo que se conhece das crianças, elas não só comem no prato da mãe, como bebem em seu copo e dormem na sua cama. Dentro de uma combinação simbiótica, essa relação precisa ser negada, ainda que seja dolorosa, para que a criança amadureça, seja ela própria e torne-se independente. Todavia, ela é colocada para fora da cama tal qual acontece com o sapo; no intuito de “libertar-se da escravidão a uma existência imatura” (BETTELHEIM, 2017, p. 397).

Sobre a relação do sapo com a princesa (modos de agir, sentir), Bettelheim (2017, p. 397) destaca que a repugnância da menina ao animal “confirma o quão apropriada é a repulsa quando não se está pronto para o sexo, e prepara para sua aprovação no momento adequado”.

Embora, de acordo com a psicanálise, nossas pulsões sexuais influenciem nossas ações e comportamento desde o início da vida, há uma enorme diferença entre o modo como essas pulsões se manifestam na criança e no adulto. Ao utilizar-se do sapo como um símbolo para o sexo, um animal que existe sob uma forma quando jovem – como girino – e sob uma forma inteiramente diferente quando maduro, a história fala ao insconsciente da criança e a ajuda a aceitar a forma de sexualidade que é adequada à sua idade, tornando-a ao mesmo tempo receptiva à ideia de que, ao crescer, também sua sexualidade deve, em seu próprio interesse, sofrer uma metamorfose (BETTELHEIM, 2017, p. 398).

Para o estudioso, a afinidade que as crianças têm com o animal é diferente das que elas têm com os adultos. De fato, com os bichinhos de estimação, elas agem naturalmente partilhando daquilo que lhes parece liberdade de instinto e prazer; podendo até confundir sua condição humana com o animalesco – o que pode lhe trazer certas angústias. Logo, de acordo com Bettelheim é fundamental transmitir às crianças que o sexo pode parecer repulsivo, mas que se as pessoas descobrirem o modo adequado de se aproximarem dele, isso certamente, mudará. “Aqui, o conto de fadas, sem nunca mencionar ou aludir a experiências sexuais como tais, está psicologicamente mais correto do que boa parte de nossa educação sexual consciente” (BETTELHEIM, 2017, p. 398).

Portanto, para o psicanalista, o sexo pode até ser mostrado como normal, belo, agradável e necessário aos seres humanos, mas a criança o considera repulsivo. Nesse sentido, entre a educação sexual moderna e os contos de fadas, conforme explica Bettelheim, é claro que o segundo é mais convincente a ela. Isso acontece porque as histórias de fadas ao consentirem, assim como as crianças, que o sapo é repulsivo, adquirem a confiança delas e as fazem acreditar que, no tempo adequado, “esse sapo repugnante se revelará o companheiro mais encantador. E essa mensagem é transmitida sem jamais mencionar diretamente nada de sexual” (BETTELHEIM, 2017, p. 399).

 “O Príncipe Querido”: menino-déspota e o narcisismo infantil

De acordo com Diana e Mário Corso (2006), o “Príncipe Querido” é um conto tradicional francês compilado por Andrew Lang, em 1889, e editado em Madri, no ano 2000.Para esses autores (2006), “O Príncipe Querido” conta a história de uma fada que, simulando ser um coelhinho caçado pelos cães de um monarca, testa a bondade do rei se atirando nos braços dele para se proteger. Feito isso, em troca da proteção recebida promete a ele a realização de um único desejo. O monarca pede, então, para que a fada seja a guardiã da bondade no espírito de seu filho, cujo menino era conhecido pela grandeza de seu coração como Príncipe Querido.

Pouco depois, conforme relatam Diana e Mário Corso, o pai morre e a fada presenteia a criança com um anel que lhe causará dor sempre que for má, cruel ou injusta. Entretanto, esse presente é a principal causa do rompimento de controle da fada para com o órfão. Isso porque o príncipe se revolta e mostra seu lado despótico fazendo mal a todos do reino. A fada, antes do monarca morrer, havia falado a ele que a realização de seu desejo dependeria da colaboração do príncipe. Por causa da rebeldia do menino, a fada precisou recorrer a medidas mais drásticas:

condeno-te a que sejas como os animais cujo comportamento imitas. Pela tua fúria, tens sido como um leão e como um lobo pela tua avareza. Como uma serpente, tens te revoltado contra alguém que é como um segundo pai para ti e, por teu mau caráter, te assemelhas a um touro. Portanto, em sua nova aparência adotarás o aspecto desses animais (CORSO; CORSO, 2006, p.137).

Assim, o príncipe que não era mais querido ficou com o corpo de serpente, pés e mãos com garras de lobo, chifres de touro e cabeça de leão.  Dotado desse novo corpo, o garoto precisava controlar o mal que o dominava e fazer atos de bondades para ser promovido a uma nova forma de animal. Depois disso, o príncipe foi morar em um zoológico onde era maltratado por um cuidador de animais. Certa vez, esse homem, que estava em perigo, foi salvo pelo príncipe que por causa desse ato de bondade foi transformado no cãozinho de colo da rainha.

Já no reino, em formato de cão, o príncipe se compadece por uma pessoa que estava com fome e a ajuda dando-lhe alimento. Segundo Diana e Mário Corso (2006), feito isso, o garoto é promovido à última forma animalesca, transformando-se numa pomba. Logo ele ganha o afeto e o amor de uma princesa; era o que faltava para o príncipe retornar ao seu formato físico e assim ambos seguirem felizes para sempre.

Para Diana e Mário Corso (2006, p. 138), “A condição animal neste conto é uma forma de rebaixamento” em que uma criança, antes considerada querida, deixa de sê-la, tornando-se despótica. Logo, o príncipe querido, ao ser colocado na condição de animal, passa a receber ordens e, por amor a própria imagem, começa a praticar atos de bondade. Podemos considerar isso como uma tradução ao narcisismo infantil, pois é essa admiração exagerada por si mesmo que o transforma em uma pessoa justa e afável com seu reino.

Os autores explicam que esse conto mostra o desejo dos pais realizado pela glória dos filhos. Isso pode ser percebido através do diálogo entre o pai do príncipe e a fada. Nele, o rei pede a a fada somente uma coisa: que a bondade do pai permaneça no filho. No entanto:

O Príncipe Querido já era um bom sujeito, por isso fica difícil de compreender porque o pai foi pedir à fada algo que o jovem já tinha. Através desse expediente, as qualidades do filho, que eram características de sua personalidade, ficam alienadas como se ficassem a serviço do desejo do pai. Não é de admirar então que o jovem passe por um período de rebeldia, necessário para diferenciar-se deste pai tão devotamente despótico, a ponto de se fazer representar por um anel que feria o príncipe quando ele se comportava mal. Mas esta é uma das formas possíveis de pensar os seus maus modos. Outra vertente para abordar esta questão nos aproxima dos impasses que as famílias têm vivido hoje no relativo à imposição de limites às crianças (CORSO; CORSO, 2006, p. 138).

Os psicanalistas Diana e Mário Corso (2006, p. 138) explicam que esse “príncipe-menino-déspota, como tantos que mostram sua falta de boas maneiras na nossa vida cotidiana, aparece na leitura de Freud como uma extensão dos desejos dos pais”. Isso porque, no conto, o rei pede à fada que as boas maneiras do filho provenham da magia e, ao contrário do desejo do monarca, ela diz que o príncipe terá que trabalhar para conquistar suas virtudes.

Ao comparar o ser humano ao animal, os autores (2006, p. 138) reforçam que enquanto os animais atuam por extinto, “espécie de lógica natural”, os seres humanos agem por capricho e irracionalidade transcendendo seus controles e limites, “somos o pior tipo de bicho – afinal não existe um altruísmo natural”. A fragilidade da humanidade está expressa no conto, já que o rei prefere a moldagem do caráter de seu filho por uma fada que assume o papel de educadora na ausência dos pais.

Nesse sentido, Diana e Mário Corso descrevem que na modernidade em que vivemos é necessário que os pais imponham limites aos filhos, negando-lhes certos prazeres para que não sejam crianças mal-educadas e adultos que transgridem o comportamento humano. Educar traz consigo a insatisfação que pode se transformar na reivindicação violenta dos desejos da criança. Os pais precisam se manter firmes quando se trata de educar os filhos, pois:

Geralmente, a ideologia desses pais, incapazes de educar, de pôr freio a sua própria extensão narcísica, contém uma ideia rosseauniana de que, deixado à própria sorte, ou com pouca intervenção, o filho, algum dia, revelará uma boa natureza. Infelizmente, não é o que acontece e, quando os pais se dão conta, os esforços precisam ser redobrados para uma correção de rumo (CORSO; CORSO, 2006, p. 138).

Para Diana e Mário Corso (2006, p. 139), embora esse conto possua características particulares de conto de fadas, trata-se de é uma fábula moral. De qualquer forma, revela que “Se um filho tiver sua majestade de bebê atrelada ao narcisismo de seus pais e se tiver a missão de gozar por eles, pressupõe-se […] que deverá receber seus dons por magia”. No entanto, na impossibilidade disso acontecer, pois, de fato, a educação não se forma por meio do sobrenatural, o filho terminará como um bichinho de estimação a serviço dos prazeres de seus pais ou como uma besta na jaula, caso não queira satisfazê-los.

 

Considerações finais

Levando-se em consideração o estudo apresentado, é de suma importância que os professores, enquanto mediadores,  trabalhem com os contos de fadas na escola desde a primeira infância da criança. Entretanto, alguns educadores não sabem como fazê-lo e além de contar a história para o público infantil explica a ele todos os seus significados simbólicos, pois desconhecem que essa explicação deva ser deixada para a interpretação da própria criança, já que se trata de algo singular. Isso porque, os significados que a narrativa apresenta individualmente a cada uma, fornece a ela toda coragem necessária para enfrentar as adversidades que a vida ocasiona a si fazendo com que o pequeno leitor amadureça emocional e psicologicamente.

Todavia, mesmo que a interpretação dos contos de fadas deva ser deixado para o próprio leitor/ouvinte fazê-la, o educador precisa compreender seus significados para entender o que se passa na mente da criança ao ler ou escutar uma história. Sendo assim, quais são, então, o critérios para se interpretar um conto de fadas?

De acordo com Marie von Franz, percebemos que o professor pode-se utilizar do tempo e do espaço, localizado no “Era uma vez”, como a primeira regra de interpretação para os contos de fadas. Além disso, o educador pode-se utilizar também de uma das quatro funções da consciência: o tipo-pensamento, o tipo-sentimento, o tipo-sensitivo e o tipo intuitivo. Isso tudo como uma estratégia, um guia para a interpretação do professor, jamais para a criança.

Referências

BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. 34. ed. Rio de Janeiro; São Paulo: Paz e Terra, 2017.

COELHO, Nelly Novaes. Literatura infantil: teoria, analise, didática. São Paulo: Moderna, 2000.

CORSO, Diana Lichtenstein; CORSO, Mário. Fadas no Divã – psicanálise nas histórias infantis. São Paulo: Artmed, 2006.

FRANZ, Marie von. A interpretação dos contos de fadas. Rio de Janeiro: Achiamé, 1981.

HENDERSON, Joseph L. Os mitos antigos e os homens modernos. In: JUNG, Carl Gustav. O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008. p. 140-195.

JUNG, Carl Gustav. O homem e seus símbolos. Tradução de Maria Lúcia Pinho. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.

COSTA, P.B.A.F

* Formada em Letras e Pedagogia pela Universidade Federal de Rondônia. Pós-Graduada em Psicopedagogia Clínica e Institucional pela UNINTER. Pós-Graduada em Libras pela Faculdade de Santo André – Vilhena/RO. Orientadora Educacional do Instituto Federal de Rondônia. E-mail: patricia.berlini@ifro.edu.br

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