Crônicas Margarete Hülsendeger Margarete Hülsendeger

O VAZIO DA AUSÊNCIA

Tudo em ti era uma ausência que se demorava: uma despedida pronta a cumprir-se.
Cecília Meireles

A morte jamais esteve tão presente quanto nesse ano e meio de pandemia. Acredito que pouquíssimas pessoas podem dizer que não foram tocadas por ela. Não importa se foi alguém muito próximo ou um conhecido com o qual tínhamos pouca intimidade, o fato é que, com mais de meio milhão de mortos só no Brasil, a “Dona Coisa” esteve (e ainda pode estar) muito próxima de nós. Como, então, lidar com essa onda de sofrimento e desalento que parece nunca ter fim? O que dizer ou fazer por todos aqueles que hoje sentem que um pedaço seu partiu para não voltar?

Não há, obviamente, um manual de instruções que possamos indicar para quem vive o luto. A dor da perda é um buraco aberto na alma com o qual se aprende a conviver. Ele jamais fecha, apenas fingimos ignorá-lo. Isso, no entanto, não garante que qualquer lembrança, por menor que seja, não vá despertar a nossa atenção para a angústia que esse espaço – nunca preenchido – ainda é capaz de nos infligir. Para quem sofre, não há palavras de consolo que amenizem a agonia que sufoca, dificultando as ações mais simples do dia a dia. Talvez gestos sinceros – um abraço apertado, um toque carinhoso ou uma lágrima silenciosa – tenham um efeito tranquilizador, mas, como o luto é uma experiência única e intransferível, dificilmente teremos certeza se estamos consolando ou sendo consolados. Nascimento e morte, como disse Milton Nascimento, na música “Encontros e Despedidas” são “lados diferentes de uma mesma viagem”, é preciso demonstrar valor para enfrentá-los.

Para milhões de pessoas, a religião, com seus rituais e crenças, é um caminho seguro no processo de aceitar o inaceitável. Crer no paraíso, lugar onde a pessoa amada estará livre do sofrimento, pode ser um bálsamo para essa sensação de vazio que passa a existir dentro do peito de quem ficou para trás. Os vivos querem o consolo de saber que, mesmo com a perda do corpo físico, o ente querido continua existindo e que aquela separação forçada é resultado de um “plano maior” do qual nada sabemos. A convicção de que existe um propósito oculto também ajuda. Ao entregarmos tudo nas mãos de uma divindade, tentamos diminuir, entre os muitos sentimentos que nos embargam, a culpa de termos sobrevivido enquanto o outro não conseguiu. Daí a necessidade ancestral das cerimônias. Quem continua vivendo precisa colocar um ponto final. Por isso, os rituais não existem para satisfazer os mortos, eles servem para dar algum tipo de tranquilidade e paz de espírito aos vivos. No entanto, até mesmo esse conforto mínimo a pandemia nos tirou.

Por causa do risco do contágio e, por consequência, da transmissão, muitas famílias não puderam sequer velar seus mortos. Foram obrigados a permanecer afastados enquanto assistiam por câmeras de TV (e às vezes nem isso) seus maridos, esposas, filhos, filhas, irmãos, irmãs e amigos serem sepultados (ou cremados). Aceitar essa terrível realidade talvez tenha sido uma das lições mais duras que tivemos de aprender ao longo de todos esses meses. Tantas mortes, em tão pouco tempo, fez com que milhões de pessoas, na impossibilidade de se despedir de seus mortos de maneira apropriada, se agarrassem até mesmo a crenças que não eram as suas. Não foram poucos os que se viram barganhando com Deus (Rama, Jeová, Oxalá ou Alá) na tentativa de impedir que mais um ser querido lhes fosse tirado. Entretanto, parece que “O Destino”, muitas vezes, se faz de surdo, pois continua levando, antes do tempo, aqueles que amamos, aumentando ainda mais o “buraco” que já existe no coração de todos.

Não vou enganar o leitor: esquecer é impossível, pois a dor da ausência sempre estará presente, lembrando o que podíamos ter feito e não fizemos, o que podíamos ter dito e não dissemos. Contudo, conviver com esse vazio é o grande aprendizado que a passagem do tempo nos oferece. Quem perde alguém amado se transforma, pois sabe que um pedaço seu foi levado para longe. Essa transformação, no entanto, não precisa ser necessariamente ruim. Ela pode, por exemplo, nos ajudar a reconhecer o valor daqueles que permaneceram ao nosso lado durante os momentos mais escuros de nossas vidas. Além disso, ela nos obriga a ver os outros e a nós mesmo sob uma nova luz, abrindo espaço para refletirmos sobre o que realmente é importante, essencial, para nos tornarmos seres humanos melhores.

Margarete Hülsendeger – Possui graduação em Licenciatura Plena em Física pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1985), Mestrado em Educação em Ciências e Matemática pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2002-2004), Mestrado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2014-2015) e Doutorado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2016-2020). Foi professora titular na disciplina de Física em escolas de ensino particular. É escritora, com textos publicados em revistas e sites literários, capítulos de livros, publicando, em 2011, pela EDIPUCRS, obra intitulada “E Todavia se Move” e, pela mesma editora, em 2014, a obra “Um diálogo improvável: homens e mulheres que fizeram história”.

Durante esses meses de pandemia milhões de pessoas morreram, e não apenas de Covid, e com elas muitos sonhos e planos foram desfeitos. Isso, contudo, não significa que não possamos levar adiante os desejos daqueles que partiram ou até mesmo acreditar na possibilidade de um reencontro. Cabe a cada um de nós escolher a maneira como vai vivenciar a tristeza provocada pela perda de alguém muito amado. Eu, por exemplo, acredito que é possível reencontrar esse pedaço que me foi arrancado. Vivo com a certeza de que ele me espera em algum lugar e que quando estivermos juntos, voltarei a ser novamente inteira.

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