Cultura Livros Margarete Hülsendeger Resenha

OS LIMITES DO HUMANO

Margarete Hülsendeger

[…] a incredulidade. Era assim que o ser humano se defendia contra tudo aquilo que revelasse as indescritíveis crueldades a que podia chegar movido pela cobiça e por seus maus instintos em um mundo sem lei.

Mario Vargas Llosa

Uma breve, mas nem por isso menos dolorosa, visão do inferno. Foi esse o meu sentimento ao percorrer as 390 páginas de O Sonho do Celta[1], de Mario Vargas Llosa. Parte narrado em primeira pessoa e parte em terceira, a obra conta a trajetória do diplomata, poeta e nacionalista irlandês Roger Casement (1864-1916) desde a infância num subúrbio de Dublin até seus últimos dias de vida na prisão inglesa Pentonville Prison, acusado de traição.

Dois terços da história se passam dentro da selva: primeiro na selva africana (Congo) e depois na amazônica (Peru). A forma objetiva, quase jornalística, com a qual o autor peruano descreve os abusos cometidos contra os nativos dessas duas regiões é de arrepiar. Uma dessas descrições ocorre em uma prisão no Congo destinada às mulheres – maison d’otages – que Casement visita, como cônsul do Reino Unido, com o objetivo de elaborar um relatório sobre os excessos que vinham acontecendo na selva congolesa. Nessa prisão, diz o narrador, as prisioneiras são mantidas em um espaço tão estreito que muitas delas não podem sentar nem deitar, com todas tendo o “mesmo olhar perdido, sonâmbulo, para além da vida”. Um quadro de horror que não sensibiliza os oficiais belgas, responsáveis pela prisão, mas que afeta profundamente Casement, pois um dia acreditou, “de todo coração”, que os europeus chegaram a África para “salvar vidas e almas, civilizar os selvagens”.

O livro está cheio de imagens de sofrimento e de horror, todas resultado da ação do ser humano sobre seus semelhantes. Vemos homens sendo torturados impiedosamente por outros homens. O amor-próprio sendo reduzido a cinzas até que nada mais reste a não ser a necessidade primitiva da sobrevivência. Páginas de sangue e dor ignoradas pela maioria das pessoas. O impacto das palavras de Llosa é tão grande que no decorrer da leitura, perguntei-me várias vezes como indivíduos ditos civilizados puderam cometer atos de tanta barbárie contra seres de sua própria espécie. Não sei se as feras podem ser tão cruéis, mesmo sendo movidas apenas pelo instinto.

Se na primeira parte Llosa descreve os crimes cometidos pelos belgas no Congo, na segunda, intitulada “A Amazônia”, ele expõe as crueldades praticadas pela Peruvian Amazon Company contra diferentes povos indígenas durante a extração da borracha nos seringais da selva peruana. Em um território isolado, longe das travas impostas pela civilização, a impunidade e a selvageria fazem parte do dia a dia, a ponto de muitos administradores praticarem flagelações, torturas e assassinatos a sangue frio apenas por diversão. Ao ouvir os relatos dessas atrocidades, Roger Casement percebe que, apesar de distantes geograficamente, o Congo e a Amazônia estão unidos por um “cordão umbilical”: os “horrores se repetiam, com variantes mínimas, inspirados no lucro, pecado original que acompanhava o ser humano desde o nascimento, segredo inspirador de suas infinitas maldades”.

É possível dizer que os eventos descritos por Mario Vargas Llosa não são novidade, que situações semelhantes já ocorreram com outros povos e, provavelmente, estão acontecendo agora enquanto escrevo estas linhas. Não duvido, mas isso não invalida a pergunta feita antes: como é possível seres humanos cometerem tais crimes contra seus semelhantes? Vargas Llosa, assim como seu personagem, não responde. Contudo, a epígrafe usada pelo autor na abertura do livro pode nos dar uma pista: “Cada um de nós é, sucessivamente, não um, mas muitos. E essas personalidades sucessivas, que emergem umas das outras, costumam oferecer os contrastes mais estranhos e assombrosos entre si”[2].

Uma interpretação aceitável para essa epígrafe talvez seja compreender a natureza humana como sendo constituída por dois polos, ao mesmo tempo opostos e complementares. Em um deles encontraremos o anjo e no outro o demônio, ambos em eterno conflito. Em algumas pessoas, o demônio aflora com mais frequência e facilidade; em outras, o anjo e, na maioria, os dois se revezam mostrando, de tempos em tempos, suas diferentes faces. No entanto, a descoberta de qual deles irá prevalecer só ocorre quando o homem se encontra diante de situações nas quais será obrigado a ultrapassar as fronteiras de si mesmo. E são esses momentos de escolha entre o bem e o mal, entre o anjo e o demônio, que decidem qual caminho será seguido.

Margarete Hülsendeger – Possui graduação em Licenciatura Plena em Física pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1985), Mestrado em Educação em Ciências e Matemática pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2002-2004), Mestrado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2014-2015) e Doutorado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2016-2020). Foi professora titular na disciplina de Física em escolas de ensino particular. É escritora, com textos publicados em revistas e sites literários, capítulos de livros, publicando, em 2011, pela EDIPUCRS, obra intitulada “E Todavia se Move” e, pela mesma editora, em 2014, a obra “Um diálogo improvável: homens e mulheres que fizeram história”.

E não se enganem, não é preciso se embrenhar na selva para ser testado dessa maneira. Na verdade, todos os dias temos a oportunidade de darmos uma espiada no anjo e no demônio que vivem dentro de nós. Todos os dias decidimos qual deles queremos ouvir.

De qualquer modo, apesar do tema não ser dos mais leves, recomendo a leitura de O Sonho do Celta. O livro é uma aula de história; uma história terrível, vergonhosa e pouco conhecida. Além disso, em Roger Casement identificaremos os atributos de um ser humano “normal”, com suas contradições e idiossincrasias. A habilidade do autor em descrevê-lo, tentando entender suas ações ao longo de uma vida, torna a leitura ainda mais interessante e facilita a nossa identificação com esse personagem extraído da vida real. Todos esses elementos só colocam em evidência as qualidades de Mario Vargas Llosa como escritor, confirmando-o como um dos maiores expoentes da literatura internacional.


[1] LLOSA, Mario Vargas. O sonho do celta. Tradução Paulina Wacht e Ari Roitman. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011.

[2] José Enrique Rodó – Motivos de Proteu.

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